A PRIVATIZAÇÃO DO FUTEBOL E O FIM DO FUTEBOL ARTE

Não se sabe ao certo qual a verdadeira origem do futebol. Comenta-se que na China antiga, na antiguidade Greco-Romana, entre os povos pré-colombianos, já se jogava um antecessor do futebol moderno, que alguns historiadores afirmam ter se originado na Inglaterra.

Entre nós, o futebol chegou através da influência inglesa no século XIX. Inicialmente, era um esporte de elite, e se comentava que o brasileiro, por conta de sua miscigenação,não poderia se adaptar ao esporte bretão. O que nós vimos foi o contrário: diversos mestiços e negros se tornaram estrelas do futebol que se popularizou no Brasil e em todo o mundo, e hoje é o esporte conAXtemporâneo que movimenta bilhões de dólares, sendo alvo de diversos escândalos.

Eu não vivi o futebol-arte, anterior à década de 1970. Cresci ouvindo meu pai, meus tios e as pessoas mais idosas falarem do futebol do passado, de uma época em que ofutebol era considerado arte, e não era ainda o grande entretenimento de hoje. Eu não tive oportunidade de conhecer craques do quilate de Zizinho, Leônidas, Pelé, Euzébio, Puskas, Yachin, Tostão, Garrincha, Dida, Ademir, Gerson, Jairzinho, Rivelino, Beckenbauer e outros. Por ter nascido após 1970, sou de uma geração que aprendeu a admirar o futebol quando ainda existia o futebol “romântico”, onde os jogadores se identificavam com as torcidas, os estádios eram lotados e as camisas dos clubes não eram iguais a uma árvore de natal totalmente descaracterizada, cheia de patrocínios. Os jogadores davam entrevistas no campo de futebol, nos vestiários. As entrevistas eram espontâneas e, às vezes, ingênuas. Hoje, é obrigatório dar entrevista com os patrocinadores ao fundo ou na mesa, com orientação de empresários.

Craque era uma coisa que surgia de forma espontânea nos subúrbios das grandes cidades. O crescimento desordenado sob a lógica do capital gerou as desigualdades sociais, retirou áreas de lazer, acabando com os campos de futebol em muitos bairros proletários. Com isso, muitos jovens dos bairros proletários não têm mais essa opção de lazer (sem o campinho de futebol), outros, se quiserem se tornar jogadores de futebol, têm que se inscrever numa escolinha, onde ficam moldados num futebol rígido, sem inspiração, dominadopor empresários gananciosos.

Hoje, o perfil de quem sonha em ser um jogador de futebol, aqui na América do Sul (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai…), não é jogar no Flamengo, Vasco, Botafogo, Atlético Mineiro, Cruzeiro, Corinthians, Palmeiras, Grêmio, Internacional, Sport, Santa Cruz, Bahia, Vitória e outros. No caso da Argentina, nos clubes River Plate e Boca Juniors, Independiente; no Uruguai, o Penarol e o Nacional de Montevidéu, no Paraguai, o Olímpia e outros. Em todos esses clubes, o sonho do atleta é jogar no exterior. No futebol europeu, o caso que melhor representa isto é o de Messi, do Barcelona, onde ele “dá o sangue”, e na seleção Argentina ainda não rendeu e nem se esforça para tal (na Copa de 2010 foi um fiasco). Hoje, os jogadores estrangeiros que jogam na Europa e na Ásia não têm nenhuma identidade com as seleções dos seus países. Em férias, dispensam as convocações, como foi o caso do lateral brasileiro Marcelo, que se recusou jogar a Copa América pela seleção brasileira. Na maioria das seleções os jogadores que disputaram a última Copa América jogavam no futebol europeu e não no continente americano; é o interesse do capital avançado sobre todos os setores da sociedade. Esta última Copa América foi horrível do ponto de vista técnico. Não foi a Venezuela que melhorou seu futebol, foram as seleções tradicionais como o Brasil, Argentina e Uruguai que demonstraram a queda do nível do futebol-arte em nome do futebol de resultados. Se a próxima copa for de baixo nível, não podemos nos surpreender. Vejam o nível dos jogadores que disputaram a última Copa América em 2011, sem grandes jogadas e jogos sem grande inspiração, além de jogadores sem criatividade.

Para quem nasceu depois de 1970, e começava acompanhar o futebol, havia ainda ídolos nos clubes e uma constelação de craques. Só para citar alguns: Zico, no Flamengo, Roberto Dinamite, no Vasco, Reinaldo, no Atlético Mineiro, Falcão, no Internacional, Sócrates, no Corinthians, e tantos outros. Quando começou a transferência dos jogadores para o exterior, eles jogavam dos 20 aos 30 anos aqui, o que enriquecia os campeonatos locais, e depois faziam o pé de meia em outro país. Foi o caso de Pelé, Zico, Beckenbauer, Platini, Sócrates, Falcão, Cerezzo, Junior, Maradona e outros. Depois, retornavam e encerravam suas carreiras e tinham vínculos com as torcidas de seus países e seus clubes.

Antes, o que era um grande espetáculo tornou-se apenas um entretenimento para as grandes massas, cada vez mais afastadas dos estádios de futebol. Os ingressos vão ficar cada vez mais caros, gerando um esporte elitizado. É o que vamos assistir daqui pra frente, estádios sendo remontados só para atenderem a este processo de elitização com aeliminação das gerais. Isto vai ocorrer durante os próximos campeonatos nacionais, Olimpíadas, Copa do Mundo. Aqui no Brasil e em todo mundo é um processo irreversível, sendo guiado pela lógica do grande capital. Os mais pobres terão que acompanhar pela televisão aberta ou por assinatura, já ocorreram estes fatos em outras copas. Quem não lembra o processo vergonhoso da policia isolando os mais pobres na última copa em 2010, na África do Sul?

Não adianta reclamar, falar na volta do futebol-arte. Enquanto não acabar o capitalismo, a tendência é o interesse financeiro predominar, o que afeta o futebol desde a base. O caminho é o futebol de resultados medíocres predominar, a exemplo da Copa de 1994: quem viu cabeças de área como Falcão, Andrade, Carpegiani, Vitor, Dudu, Rocha e tantos outros, hoje é obrigado a ver Dunga, Ramires ou Felipe Mello. Isso demonstra o quanto o futebol-arte vem morrendo. Até hoje a seleção brasileira campeã de 1994 não é lembrada,no entanto, a seleção brasileira de 1982, mesmo não sendo campeã, é lembrada até no exterior. Por isso ficamos com saudades de uma época que não volta mais, a do futebol-arte que vem morrendo não só no Brasil, como em todo mundo.

O que era autêntico, improvisado nas artes, acabou. O futebol brasileiro e mundial se encontram totalmente privatizados pelas grandes corporações econômicas, utilizados por empresários gananciosos que se aproveitam da ingenuidade de jovens e de suas famílias de baixa renda (quem não se lembra dos casos de jovens abandonados na Europa?). Estes empresários não estão nem aí para o fanatismo do torcedor pelo clube, e hoje as torcidas organizadas são utilizadas nas grandes manipulações dos cartolas e nas armações dentro dos clubes, comercializando, comprando, vendendo jogadores; fazendo com que os torcedores se afastem de seus times do coração. Hoje, por conta da comercialização do futebol, nãodecoramos a escalação dos times, não se criam ídolos, mas sim jogadores para serem vendidos. Além desses fatores, outro fator que compromete o comparecimento das pessoas aos estádios de futebol é a violência e a alienação, acompanhada de fanatismo das torcidas organizadas.

Só para citar alguns nomes em nosso continente, vimos grandes jogadores como os uruguaios Hugo de Leon, Daniel Gonzales, Rubens Paz, Frantchescolli, Dário Pereira, Pedro Rocha. Ficamos assustados quando surgia um Furlan, por exemplo. Como os argentinos Maradona, Ardiles, Tarantini, Ramon Diaz, Mário Kempes… Ou os brasileiros Leandro, Júnior, Falcão, Sócrates, Zico, Mário Sérgio, Júlio César, Adilío, Pita, Palhinha, Roberto Dinamite, Reinaldo e tantos outros. Hoje, somos obrigados a ver os craques artificiais, como Kaká, Messi, Cristiano Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Daniel Alves, Neymar e tantos outros.

Dá nojo de ver a quantidades de passes errados em uma partida de futebol. Assistir uma Copa do Mundo era uma oportunidade para ver uma constelação de craques, e muitos ficaram marcados em nossa memória: Cruyff, da Holanda; Platini, Giresse e Tigana, da França; Rummenigge e Breitner, da Alemanha; Belanov, Blonin e Darsaiev, da União Soviética; Lato e Boniek, da Polônia; Baresi, da Italia; Eusébio, de Portugal; Bobby Charlton, da Inglaterra; Hugo Sanches, do México; Michael Laudrup, da Dinamarca, e tantos outros.

A lógica capitalista afeta a relação dos indivíduos com as artes. Sob isso, o futebol é apenas um puro negócio fabricado pela indústria cultural, como qualquer objeto que temum único propósito: obter lucros apenas para entreter o público, desviando-os dos reais problemas do mundo.

O que dava graça nos estádios era o torcedor de baixa renda. Esses estão cada vez mais afastados dos estádios, seja pelo aumento dos ingressos e diminuição das áreas voltadaspara eles, seja pela imposição das emissoras de televisão em aliança sórdida com os cartolas e as máfias que controlam o futebol mundial, que impõem horários absurdos e preços abusivos de ingressos, o que dificulta o acesso dos torcedores aos estádios de futebol.

O futebol de hoje é dominado por cartolas e uma mídia que procura esconder os fatos da realidade, como ocorreu no jogo Flamengo x Santos, em 2010, quando todos ficaram assustados com o resultado de 5 x 3 para o Flamengo. Feliz foi o comentário de Coutinho, ex-jogador do Santos da era Pelé. Palavra de Coutinho: “Hoje, todos ficam assustados e alegres quando assistem uma grande partida de futebol”.

O nível do futebol atual se encontra baixíssimo. É preferível assistir os jogos do passado no youtube. A Seleção Brasileira não é a do povo (ela é do Itaú, da Coca Cola, do Saara e de outros patrocinadores). As seleções do Brasil, da Argentina, do Uruguai e outras seleções com tradição no futebol têm a obrigação de jogar um bom futebol, pois elas trazem no histórico os nomes dos craques do passado. Hoje, o futebol atual, com raras exceções, resume-se aos cartolas, torcidas organizadas mafiosas e jogadores medíocres, onde poucos jogam alguma bolinha e a grande mídia trata de transformar em craques de vitrine, iludindo as novas gerações que não tiveram o privilégio de ver os craques do passado.

O futebol atual está privatizado pela lógica do capital, que se apropriou desta importante arte popular, que invadiu todos os grandes clubes em todo o mundo.

A era dos grandes craques acabou.

*José Renato André Rodrigues – Professor de Filosofia

Comitê Central do PCB