Esquerda e comunicação digital na pandemia

imagemCartaz de Alexander Rodchenko (1925)

Por Golbery Lessa

O isolamento social vivido durante a pandemia da Covid 19 intensificou alguns desafios comunicacionais contemporâneos para os indivíduos refratários ao mundo digital. Pela falta de alternativas, muitas pessoas se impuseram a tarefa de superar a falta de conhecimento técnico em comunicação digital no trabalho, na família e em outras instituições. Descobriram amplas possibilidades e as vivenciaram com um misto de rejeição e adesão. Os desafios pegaram parte da esquerda desprevenida e deixaram mais claro seu atraso técnico nessa área. Diante da importância social e política do fenômeno, é relevante fazer um balanço dessa defasagem tecnológica e das respostas práticas oferecidas, principalmente para que os erros não sejam repetidos e as oportunidades de difusão de ideias possam ser mais bem aproveitadas.

A conhecida abordagem de Michel Löwy sobre o romantismo revolucionário é fértil para tematizarmos a relação da esquerda com o desenvolvimento tecnológico (ver, por exemplo, a obra Revolta e Melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, de Michael Löwy e Robert Sayre). Algumas correntes anticapitalistas rejeitam aspectos da modernidade, inclusive o avanço tecnológico. Existem dimensões libertárias importantes nessa perspectiva teórica, principalmente no que se refere à decidida rejeição ao evolucionismo, ao cientificismo e ao etnocentrismo. Entretanto, e Michel Löwy não aborda esse aspecto da questão, o romantismo anticapitalista tende ao erro de identificar modernidade e capitalismo e, em consequência, rejeitar ou menosprezar dimensões da liberdade humana presentes em elementos da civilização moderna, como a escola formal, a centralidade da ciência e as liberdades democráticas.

O romantismo, apesar de suas dimensões críticas, nos atrapalha no entendimento da relação entre capitalismo e tecnologia, na medida em que considera a valorização do avanço técnico como necessariamente legitimadora do positivismo e da acumulação de capital (ver, por exemplo, o livro Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, no qual a abordagem romântica adquire sofisticada justificativa filosófica). Essa via leva à rejeição de qualquer desenvolvimento tecnológico ou ao apego à tecnologia do passado, que presumivelmente seria menos cruel e menos subordinada à lógica mercantil porque expressaria um momento menos avançado do capitalismo. Nesse ponto incide, contraditoriamente, um tipo particular de evolucionismo, que considera todo desenvolvimento como decadência.

Essas mediações possibilitam maior aproximação do nosso foco: o apego ao analógico e a rejeição ao digital presentes em alguns setores da esquerda contemporânea expressam a busca de resgatar um passado supostamente menos mercantil, que é identificado de modo fetichista a um momento anterior da tecnologia, como se esta determinasse as relações de produção e não o contrário. Para complicar mais a questão, o passadismo não parte de um pressuposto empírico totalmente equivocado, o que lhe empresta mais plausibilidade. Como o desenvolvimento do capitalismo é desigual e combinado em todos os aspectos, de fato, alguns complexos sociais no seu passado eram menos alienados do que posteriormente. Basta lembrar o aumento da manipulação na indústria cultural a partir da segunda metade do século XX. Evidentemente, o equívoco não reside na valorização de dimensões “artesanais” e “menos capitalistas” do passado, mas na fixação idealista neste momento pretérito, que leva à rejeição de possibilidades concretas do presente e, entre outras coisas, ao anacronismo tecnológico.

Antes do surgimento das redes digitais, o passadismo tecnológico não gerava um problema comunicacional particular, pois a difusão das ideias era feita por uma técnica analógica vigente há séculos, a imprensa, ou via radiodifusão e televisão, meios monopolizados pela burguesia. O surgimento da internet e, particularmente, das redes sociais digitais, mudou radicalmente a situação, transformando a rejeição desse meios de comunicação numa bandeira conservadora do setor romântico da esquerda (que existente em todos os partidos, sindicatos, movimentos sociais e outros coletivos) e isso abriu enorme flanco desguarnecido para o avanço da direita na web e, em consequência, na disputa por hegemonia. Assim, por exemplo, enquanto a extrema direita brasileira vem usando exitosamente as redes sociais digitais desde 2013, dando saltos de engajamentos durante o golpe de 2016 e a eleição de 2018, a parte tecnologicamente passadista da esquerda só aprendeu a fazer lives e teleconferências em 2020, obrigada pelo isolamento social. Contraditoriamente, sem a pandemia a resolução dessa defasagem tecnológica teria levado muito mais tempo, pois seria atrapalhada pelos pressupostos filosóficos referidos.

Como sabemos, existe também o erro oposto, igualmente fetichista, de considerar o espaço digital como potencialmente superador das relações sociais capitalistas. Essa postura tomou parte da esquerda nos anos 1990. O avanço implacável de empresas monopolistas como a Microsoft e o Google e a mercantilização da internet se juntaram à explosão do racismo e da xenofobia na internet, já no século XXI, para dinamitar mais esse sonho utópico do cientificismo.

É necessário acompanhar a postura dialética de Marx para tentarmos superar a antinomia. São as relações sociais que determinam a existência, a natureza, a difusão e a função de cada tecnologia; nenhum padrão tecnológico em particular determinará por si o equilíbrio de forças entre as classe sociais, a existência de mais ou de menos alienação, o alcance ou não do equilíbrio ecológico, o crescimento ou o recuo da economia, a permanência de um modo de produzir ou sua superação. Não faz sentido apegar-se a tecnologias anacrônicas para combater o capitalismo e nem perceber as novas como atalhos para o socialismo e a sustentabilidade ecológica. A convivência política com o padrão tecnológico de cada presente é um imposição objetiva da história da qual as forças políticas populares não podem se esquivar sem se descolarem de suas principais tarefas; ele pode e deve ser questionado e rejeitado em quaisquer de suas dimensões, mas é equivocado abstrair suas condicionantes sociais e dimensões socialmente incontornáveis sob o capitalismo, como é o caso da comunicação digital na contemporaneidade.