Para a crítica da “democratização” da mídia
Germano Rama Molardi*
Costumeiramente, o debate sobre a democratização da mídia se faz desconsiderando uma questão central: sobre em que lugar se insere a mídia dentro do modo de produção capitalista e, principalmente, sobre a lei imanente a esse modo de produção que nega qualquer possibilidade de uma livre concorrência entre os capitalistas sem o surgimento de monopólios, o que consequentemente explica econômica e politicamente a concentração dos meios de produção em qualquer lugar que impere a sociedade de classes.
Como lembra o líder revolucionário Vladimir Lenin:
“A livre concorrência é a característica fundamental do capitalismo e da produção mercantil em geral; o monopólio é precisamente o contrário da livre concorrência, mas esta começou a transformar-se diante dos nossos olhos em monopólio, criando a grande produção, eliminando a pequena, substituindo a grande produção por outra ainda maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto que do seu seio surgiu e surge o monopólio: os cartéis, os sindicatos, os trusts e, fundindo-se com eles, o capital de uma escassa dezena de bancos que manipulam milhares de milhões. Ao mesmo tempo, os monopólios que derivam da livre concorrência não a eliminam, mas existem acima e ao lado dela, engendrando assim contradições, fricções e conflitos particularmente agudos e intensos. O monopólio é a transição do capitalismo para um regime superior”
Antes de discutir sobre isso, no entanto, cabe a explicitação sobre porque é uma contradição imanente do capitalismo a criação de monopólios. O processo de produção de mercadorias no modo de produção capitalista é dividido entre o capital constante (tudo aquilo que o capitalista emprega como meio de trabalho) e o capital variável (o conjunto de trabalhadores que trabalham para um mesmo capitalista, única parte da dinâmica de funcionamento do capital que é responsável pela produção de valor e, portanto, indispensável para esta). Investir no processo produtivo significa, para o capitalista, reduzir o valor da força de trabalho, de modo que em uma igual duração da jornada de trabalho, o produtor individual consiga produzir um maior número de mercadorias para o capitalista que poderão, portanto, ser vendidas por um preço menor. No entanto, o capitalista individual em questão não investe em seu processo produtivo ao mesmo tempo que o fazem seus concorrentes. A capacidade desse investimento se fará possível por determinantes mais ou menos dados historicamente. Como explica Marx, “o capitalista que emprega o método de produção aperfeiçoado é, portanto, capaz de apropriar-se de uma parte maior da jornada de trabalho para o mais trabalho do que os demais capitalistas no mesmo ramo de produção. Ele realiza individualmente o que o capital realiza em larga escala, na produção do mais-valor relativo. […] A mesma lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, que se apresentou ao capitalista, juntamente com o novo método de produção, sob a forma de que ele é obrigado a vender sua mercadoria abaixo de seu valor social, força seus concorrentes, como lei coercitiva da concorrência, a aplicar esse novo método”.
Dessa forma, vê-se, afirma Marx, a tendência que tem o capital de aumentar a suas forças produtivas tendo em vista o barateamento não só da mercadoria, mas também do trabalhador. O desenvolvimento da força produtiva do trabalho tem como objetivo a diminuição do tempo que o trabalhador opera as máquinas para si em prol do aumento de tempo em que ele trabalha gratuitamente para o capitalista individual.
O revolucionário alemão expõe que a produção de mercadorias em grande escala só é possível no capitalismo e que a acumulação é, portanto, um pressuposto desse modo de produção. Da transição de um modo de produção a outro mais complexo, surgem diversos capitalistas individuais pelas condições mais ou menos dadas historicamente, sendo que cada capital individual é uma concentração maior ou menor dos meios de produção e dotada de comando correspondente sobre um exército maior ou menor de trabalhadores. O processo de acumulação de capital gera novas acumulações, de modo que o crescimento do capital social se consuma no crescimento de muitos capitalistas individuais. Portanto, com a acumulação do capital aumenta em maior ou menor proporção, o número de capitalistas”.
Mais adiante, no entanto, o autor expõe que a fragmentação do capital social em muitas partes é contraposta por sua atração, se abandona a concentração simples, de modo que exista a supressão de capitalistas menores por capitalistas maiores, numa conversão de muitos capitais menores em poucos capitais maiores.
Marx vai reiterar no final aquilo que havia sido dito no início, a concorrência entre os capitalistas é travada por meio do barateamento das mercadorias, uma vez que o preço da mercadoria é pressuposto da produtividade do trabalho que, por sua vez, depende da escala de produção. Ou seja, os capitalistas maiores derrotam, portanto, os os capitalistas menores. Tal processo explica resumidamente, tendo em vista as limitações postas pelo artigo de opinião que aqui construo, a concepção marxista de concentração e centralização dos meios de produção, uma vez que, para além do mais-valor que o grande capitalista individual em questão expropria do trabalhador, a concorrência centraliza, em parte, a riqueza de outros capitalistas menores derrotados na competição com o capitalista maior. Cabe agora, também resumidamente, trabalhar na relação que tem a mídia com esse processo de concentração e centralização imanente ao sistema capitalista.
MÍDIA E CAPITALISMO: UMA RELAÇÃO QUE NÃO PODE SER DEIXADA DE LADO.
A teoria marxiana não estabelece juízos de valores a respeito das formas de sociedade que antecederam o modo de produção capitalista. O que Marx constrói teoricamente é a concepção de complexidade e superação, em que a sociedade burguesa é aquela “[…] mais desenvolvida, mais diferenciada de produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação etc.”.
Conforme avança, a sociedade burguesa atinge novos patamares de inserção na vida da sociedade como um todo (isso se dá na sua fase imperialista). José Paulo Netto explica que nessa fase não é somente a fase da produção que deixa de ser subordinada ao capital, porque “a tendência manipuladora e controladora que lhe é própria desborda os campos que até então ocupara (no capitalismo concorrencial), domina estrategicamente a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental para penetrar a totalidade da existência dos agentes sociais particulares”.
Logo, é de se concluir que a Imprensa não só não escapará dessa lógica, como também terá o papel fundamental de fazer essa articulação ideológica entre a instância da produção e a instância da circulação, bem como desempenhará o papel de intermediária entre os capitalistas (que precisam vender suas mercadorias e o fazem também através da propaganda) e a classe trabalhadora que irá consumir no mercado as mercadorias dos capitalistas que a explora.
No entanto, não tendo o espaço para desenvolver sobre o papel ideológico da mídia, quero manter-me no debate que relaciona a concentração dos meios de comunicação na mão de poucas pessoas com a concentração dos meios de produção que sofrem do mesmo pressuposto, de modo a fazer o leitor entender que ambos fazem parte da mesma classe. Para isso, vou me utilizar do exemplo brasileiro de distribuição dos meios de comunicação.
Segundo Marinoni “a estrutura de oligopólio na televisão brasileira consolidou-se nos anos 80 e pouco variou até os dias de hoje, sendo marcada basicamente pelo estabelecimento de um sistema central (GÖRGEN, 2009) de poucas redes nacionais privadas (Globo, SBT, Bandeirantes e Manchete, depois substituída pela RedeTV!) e tendo tido apenas a chegada da Record e da EBC como mudança representativa”.
Compreende-se aqui, portanto, que as determinações do capital sobre a Imprensa não são determinações recentes. O Brasil, país de capitalismo dependente, vai consolidar seus mais diversos setores da burguesia – entre eles a mídia –, bem como atingir a sua fase monopolista, somente de maneira tardia. O que existe hoje, segundo dados trazidos no artigo “Concentração dos meios de comunicação de massa e o desafio da democratização da mídia no Brasil” de Bruno Marinoni, do Instituto Intervozes, escancara uma clara concentração dos meios de comunicação na mão de poucas famílias.
A Rede Globo engloba hoje 123 emissoras, em 5.490 municípios (98,56%) e atinge 202.716.683 habitantes (99,51%). Dessas concessões, apenas cinco são próprias do Grupo Globo, sendo que 118 são de outros grupos. Enquanto a rede representa 22,6% (praticamente 1/4) do total de 543 outorgas no Brasil, as 5 pertencentes ao Grupo Globo representam 0,009% (cerca de 1/100). A rede SBT possui no total 114 emissoras de televisão, 8 próprias (embora o nome da família Abravanel conste na lista de sócios de 9), cobre 97% do território, 190 milhões de pessoas. Percebe-se como há pouca diferença entre esses números e os da rede líder, não refletindo a assimetria de poder de mercado existente. A Rede Record fica também muito próxima desse cenário com suas 108 emissoras, das quais 12 são próprias. Já a Rede Bandeirantes de Televisão possui 49 emissoras, 14 próprias, e cobre 3.572 municípios, atingindo 181 milhões de habitantes (89% da população), semelhante ao que é apresentado pela RedeTV!, 40 emissoras, 5 próprias, e pela EBC – Empresa Brasil de Comunicação5 , que envolve 50 emissoras de TV, sendo 4 próprias.
Apegando-me somente ao caso da maior empresa de comunicação do Brasil, a Rede Globo, cabe ressaltar o lucro dessa empresa somente no ano de 2016, que chegou a R$ 1,954 bilhões, como anunciou a própria empresa em uma matéria no site “Globo.com”. Tal faturamento é alcançado com uma quantidade enorme de veículos de comunicação nas mais diversas plataformas, pelas quais a Rede Globo transmite – escamoteados na imparcialidade – sua linha de pensamento para a quase totalidade de 200 milhões de brasileiras e brasileiros, sem contabilizar o alcance que tem essa empresa de mídia fora do país.
MUDAR DE CANAL OU MUDAR DE SISTEMA?
A pequena exposição serviu para desmistificar uma relação que precisa ser frequente quando analisamos a mídia, tendo em vista que ela é uma instituição burguesa utilizada como canal da ideologia da classe dominante, da qual inclusive faz parte. Imbricada, portanto, na lógica do capital, ela vai estar amplamente determinada pelas lógicas desse sistema.
Isso implica, portanto, que é cabível relacionar as leis imanentes ao modo de produção capitalista que determinam a acumulação de capital por parte dos detentores dos meios de produção com a forma como tais leis se refletem no que tange aos detentores dos meios de comunicação. Esse texto nem de longe tem a intenção de apresentar uma resposta pronta a esse debate amplamente debatido pelos mais diversos setores da esquerda. Do contrário, é um rascunho de um conjunto de ideias que podem servir a outras pensadoras e pensadores da comunicação, considerando a importância ideológica dela para a manutenção da sociedade de exploração e opressão que é a sociedade capitalista.
Por mais desejável que se faça a luta por uma democratização da mídia como proposta de mediação frente a todo poderio político-econômico que a mídia hegemônica apresenta, poderíamos nos questionar até que ponto é válido nos inserirmos nos interstícios deixados pela mídia hegemônica – se é que há interstícios – para apresentarmos uma proposta de comunicação diferente, independente e autônoma das mesmas leis que regem essa grande mídia. Além disso, seria fundamental questionarmos a relação que teriam os comunicadores com as novas regulamentações. Não tenho dados para sustentar tal tese, mas seria também importante um estudo sobre a forma de atuação de veículos alternativos ao que se propõe na mídia hegemônica e a relação que estes estabelecem com os trabalhadores da comunicação que decidem por seguir tal caminho.
Por enquanto, o que fica claro é que garantir uma comunicação a serviço da classe trabalhadora passa necessariamente pela derrocada do modo de produção capitalista, que determina a forma como atua a mídia hegemônica, bem como explora o conjunto de trabalhadores da comunicação – como qualquer outro trabalhador do campo ou da cidade. Ademais, a garantia de uma comunicação a serviço da classe dominada passa pela construção de uma sociedade concretamente emancipada e, portanto, sem a existência de uma classe que explora e oprime as produtoras e produtores de toda riqueza social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
– Lenin, Vladimir Ilich. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular 2012.
– Marinoni, Bruno. Concentração dos meios de comunicação de massa e o desafio da democratização da mídia no Brasil. Intervozes: novembro de 2015
– Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
– Wellen, Henrique. Para a crítica da “economia solidária”. São Paulo: Outras Expressões, 2012.
*Militante do PCB em Santa Maria – RS.