Teoria econômica e desonestidade
Prabhat Patnaik [*]
A teoria econômica é um assunto em que as classes dominantes estão sempre tentando promover explicações ideologicamente motivadas ao invés de científicas. Essas explicações, é claro, podem ser, e têm sido, encaixadas numa totalidade integrada de uma estrutura teórica alternativa não científica a que Marx chamou de “economia vulgar”, pois distinta da economia política clássica. Mas mesmo a economia vulgar tenta lidar sistematicamente com os fenômenos observados, à sua própria maneira “vulgar”. O que é infinitamente pior é quando se procuram explicar os fenômenos observados de uma maneira ideologicamente motivada, mas mesmo isso não é feito de forma sistemática (consistently), mas sim oportunista. É quando a teoria econômica se rebaixa passando da mera “vulgaridade” para a “desonestidade” – e tal rebaixamento é a marca característica da teoria econômica deste período neoliberal. Limitar-me-ei aqui a apenas três exemplos.
Meu primeiro exemplo diz respeito à pobreza. Em 1973-74, a Comissão de Planeamento da Índia definiu pobreza como a incapacidade de ter acesso a 2.400 calorias por pessoa por dia na Índia rural (na prática, porém, aplicou uma norma inferior de 2.200 calorias) e 2.100 calorias por pessoa por dia na Índia urbana. Pode-se discordar desses números em particular, mas pelo menos eles proporcionaram uma referência objetiva que podia ser usada nos dados coletados pelas grandes pesquisas quinquenais por amostra da National Sample Survey (NSS) para estimar as tendências no índice de pobreza. E este percentual de pobreza mostra um aumento inconfundível no país ao longo do período neoliberal até 2011-12 (e até mesmo ao que consta até 2017-18, ano em que os dados foram suprimidos pelo governo), ou seja, ao longo de todo o período neoliberal para o qual os dados da grande amostra do NSS estão disponíveis.
Contudo, após a sua estimativa inicial, a Comissão de Planejamento mudou para uma definição alternativa de pobreza: correspondendo às referências calóricas, havia níveis de gasto per capita no ano base, os quais foram chamados de “linhas de pobreza” para a Índia rural e urbana. Estas linhas de pobreza do ano base foram então atualizadas para os anos subsequentes pela utilização de um índice de preços ao consumidor a fim de dar novas linhas de pobreza para cada ano subsequente, e aqueles que caíam abaixo dessas novas linhas de pobreza foram considerados “pobres”, mesmo quando a ingestão de calorias associada a cada uma dessas linhas de pobreza atualizadas estava em declínio constante. Por outras palavras, considerava-se que as pessoas estavam saindo da pobreza mesmo quando sua ingestão de calorias estava em queda. Apesar das críticas, este método – de utilizar índices de preços ao consumidor e não preocupação com o declínio da ingestão de calorias na pobreza atualizada – foi continuado.
Claramente, os números do índice de preços ao consumidor estavam subestimando o verdadeiro aumento do custo de vida. O resultado líquido dessa mudança de procedimento, que teve o selo de aprovação do Banco Mundial e que apresentava um quadro embelezado do neoliberalismo, foi o absurdo com que hoje nos confrontamos: a Índia continua a ser o 107º no índice de fome mundial entre os 120 e tantos países para os quais esse índice é calculado (e mesmo nos anos pré-pandemia anteriores sua classificação estava em torno dos 100), embora afirme ter reduzido drasticamente a taxa de pobreza de 56,4% para áreas rurais e 49% para áreas urbanas em 1973-4 para 25,7 por cento e 13,7 por cento, respectivamente, em 2011-12, e ter continuado com esta tendência decrescente.
O argumento usado pelos economistas oficiais é que, à medida em que as pessoas ficam em melhor situação, elas se afastam do consumo de grãos alimentares e, portanto, de meras considerações de ingestão de calorias, para gastar mais em saúde, educação infantil e assim por diante; o declínio na ingestão de calorias indicaria portanto uma melhoria e não uma deterioração nos padrões de vida. Esta afirmação, evidentemente, é completamente negada pela experiência: tanto transversalmente dentro do país quanto entre países, a ingestão calórica per capita invariavelmente aumenta com o rendimento real per capita. Mas vamos ignorar este fato.
A questão é que, quando a grande amostra do NSS de 2009-10 mostrou um aumento na taxa de pobreza rural mesmo pela estimativa oficial em comparação com 2004-5, 33,8 por cento em 2009-10 comparado a 28,3 por cento em 2004-5 (no critério de ingestão de calorias o aumento foi de 69,5 por cento para 75,5 por cento), o governo ordenou a realização de uma grande pesquisa por amostragem completamente nova, alegando que 2009-10 fora um ano de seca. A nova pesquisa foi devidamente realizada em 2011-12, que foi um ano bom para a safra. No entanto, ironicamente, 2009-10 em si não foi um ano de crescimento ruim: ele testemunhou um crescimento de 8,6% no valor agregado bruto a custo de fatores e de 1,5% no segmento “Agricultura e atividades afins”!
Ao ordenar a nova pesquisa, o governo havia, por inferência, aceitado o argumento de que rendimentos mais baixos reduzem a ingestão calórica, ao mesmo tempo em que mantinha a posição exatamente oposta, articulada por economistas oficiais, de que rendimentos mais altos reduzem a ingestão calórica. Nenhuma tentativa foi feita para reconciliar estas duas posições aparentemente opostas; e nesta aceitação oportunista de cada uma, quando convém, reside a desonestidade da teoria econômica no período neoliberal.
Meu segundo exemplo de desonestidade vem da OMC. Ela faz uma distinção entre subsídios que “distorcem o mercado” e “não distorcem o mercado” fornecidos por governos aos agricultores. As transferências diretas de dinheiro dadas nos países avançados, os EUA e a UE, ao setor agrícola são consideradas não distorcedoras do mercado e, portanto, aprovadas sem questionamento pela OMC. Mas os subsídios proporcionados ao setor agrícola em países do terceiro mundo como a Índia, que assumem a forma de apoio aos preços e subsídios aos preços dos fatores de produção (insumos), são considerados distorcedores do mercado e, portanto, sujeitos a um teto especificado pela OMC. Assim, os EUA dão uma transferência anual de cash próxima dos US$100 bilhões para os seus poucos agricultores e a OMC não levanta quaisquer objeções; mas tem dúvidas persistentes sobre o sistema de preços de compras da Índia, que são essenciais não só para dar viabilidade à agricultura camponesa como também para a manutenção de um sistema público de distribuição.
Supõe-se que a razão para esta distinção esteja no fato de que subsidiar a agricultura através do mecanismo de preços afeta a posição do equilíbrio do mercado e, portanto, o nível de produção, ao passo que conceder subsídios diretos em dinheiro não afetaria a posição do equilíbrio do mercado. Uma vez que se supõe que o equilíbrio de mercado implica uma aplicação ótima de recursos na economia, o apoio do governo na forma de transferências de cash seria preferível, pois não perturbaria o equilíbrio de mercado nem elevaria a produção para além do que dita o mercado.
Contudo, esta distinção é totalmente desonesta. Além do fato de que mesmo teoricamente essa distinção não poder ser feita, pois mesmo transferências diretas de cash afetam o nível de produção, é sabido que em muitos anos algumas culturas como trigo e algodão nos EUA apresentaram valor agregado negativo, ou seja, o valor dos insumos materiais que entram na produção tem excedido o valor da produção agrícola. O equilíbrio de mercado em tais situações deveria implicar produção zero como resultado; o fato de o produto ter sido positivo deve-se inteiramente às transferências diretas de cash que viabilizam os agricultores. Portanto, o argumento de que transferências diretas de cash não distorcem o mercado é absolutamente destituído de base; elas têm um efeito óbvio na produção. Pretender o contrário como faz a OMC é portanto não apenas errado como também oportunista; destina-se a servir os interesses dos países avançados, fechando os olhos para os seus subsídios agrícolas enquanto criticam subsídios agrícolas de países como a Índia.
Meu terceiro exemplo vem da política agrícola do governo indiano. O argumento avançado em favor da eliminação do regime de preços mínimos de apoio para grãos alimentícios, que existe desde há muito, era que encorajava os camponeses a continuarem a produzir cereais em vez de mudarem para outras culturas mais lucrativas. Sair da produção de grãos alimentícios em um país como a Índia, afligido por fome aguda, é obviamente absurdo. Se há procura insuficiente de cereais de modo a que os stocks em poder do governo se acumulem, então a solução não está em reduzir a produção dos mesmos, mas sim em colocar mais poder de compra nas mãos do povo. Mas vamos ignorar isso por agora.
Se os camponeses passassem da produção de grãos alimentícios para a de não-grãos alimentícios, mesmo que pudessem ser beneficiados no imediato devido à maior lucratividade destes últimos, eles perderiam quando houvesse uma queda no preço dos mesmos, a menos que houvesse um regime de Preço Mínimo de Apoio (Minimum Support Price, MSP) implementado e em vigor também para estes. Em outras palavras, o argumento para a mudança de grãos alimentícios para grãos não alimentícios é completamente diferente do argumento para ter um regime MSP. Se o governo pretende que os agricultores abandonem os grãos alimentares, então a solução é introduzir MSP para culturas não alimentares e, em seguida, manipular os MSPs de forma a que sejam induzidos a mudar para grãos não alimentares. Acabar com o MSP que já existe em grãos alimentícios para induzir uma mudança para grãos não alimentícios é a maneira errada de fazê-lo. Mas não é apenas errado, é também oportunista, porque promove a agenda da OMC, de acabar com o apoio aos preços para os agricultores, com o argumento completa e deliberadamente falso de que os agricultores ficarão em melhor situação com a remoção desse apoio de preços. Na verdade, mesmo que ganhassem no imediato com tal remoção, estariam expostos a graves riscos de perda posteriormente.
A desonestidade em nome da teoria econômica é a marca da era neoliberal, a qual usa um exército de economistas de modo algum desinteressados para promover a sua agenda.