Até na Justiça, candomblé é alvo de intolerância

Adeptas docandomblé participam da cerimônia em Salvador

Para Justiça Federal do Rio,candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado como fundamento evenerar a uma só divindade suprema.

Por JeanWyllys

Foto:Valter Pontes/ Agecom Salvador

Aintolerância religiosa e os preconceitos em relações ao candomblé e àumbanda sempre infiltraram os poderes da República e as instituições doEstado que se pretende laico. E talvez pelo fato de essa infiltração tersido sempre negligenciada, apesar dos seus efeitos nocivos, ela tenhafeito desabar um cômodo do Judiciário: a Justiça Federal do Rio de Janeirodefiniu que umbanda e candomblé “não são religiões”. Tal definição – quemais se parece com uma confissão pública de ignorância – se deu emresposta a uma decisão em primeira instância doMinistério PúblicoFederal que solicitou a retirada, do Youtube, de vídeos de cultosevangélicos neopentecostais que promovem a discriminação e intolerânciacontra as religiões de matriz africana e seus adeptos, já que o CódigoPenal, em seu artigo 208, estabelece como conduta criminosa, “escarnecerde alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedirou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiarpublicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Em vez dereconhecer a existência da ofensa – e não há dúvida para qualquer pessoacom um mínimo de discernimento e senso de justiça de que a ofensa existe -a Justiça Federal do Rio de Janeiro desqualificou os ofendidos; considerouque não “há crime se não há religião ofendida”. Para tanto, a JustiçaFederal do Rio conceituou umbanda e candomblé como cultos a partir de doismotivos absolutamente esdrúxulos (ou seria melhor dizer a partir de doispreconceitos?): 1) candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado comofundamento (aqui a Justiça Federal ignora completamente que religiões dematriz africana são fundadas nos princípios da transmissão oral doconhecimento, do tempo circular, e do culto aos ancestrais); e 2)candomblé e umbanda deveriam venerar a uma só divindade suprema e ter umaestrutura hierárquica (aqui a Justiça Federal do Rio atualiza a percepçãodos colonizadores do século XVI de que os indígenas e povos africanos nãotinham fé, não tinham lei nem tinham rei). Pergunto: Há, na decisão daJustiça Federal, pobreza de repertório cultural, equívoco na interpretaçãoda lei ou cinismo descarado?

A decisãojudicial fere claramente dispositivos constitucionais e legais, além deviolar tratados internacionais como a Convenção Americana sobre DireitosHumanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificada peloBrasil em 1992 e que dispõe sobre a garantia de não discriminação pormotivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões, políticas ou dequalquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica,nascimento ou qualquer outra condição social. Esse pacto diz ainda que odireito à liberdade de consciência e de religião implica na garantia deque todos são livres para conservar sua religião ou suas crenças, ou demudar de religião ou de crenças, bem como na liberdade de professar edivulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tantoem público como em privado. A Convenção Americana sobre Direitos Humanosafirma que ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possamlimitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou demudar de religião ou de crenças. A liberdade de manifestar a própriareligião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitaçõesexistentes em leis e que se mostrem necessárias à proteção da segurança,da ordem, da saúde ou da liberdade.

Ou seja, sehá uma liberdade religiosa a ser limitada é a daquelas religiões que usamdos meios de massa para difamar e promover a intolerância contra outrasreligiões e divulgam práticas que põem em risco a saúde coletiva, comopedir que pessoas abandonem tratamento de câncer ou aids em nome deorações!

Aoratificar esse Pacto, o Brasil assumiu desde 1992 o papel de um país quetem a obrigação de respeitar direitos. Infelizmente, o Poder Judiciário,que tem a função de “dizer o direito”, de aplicar as leis, assim não ofez, simplesmente negando a interpretação dos ditames constitucionais edisposições supranacionais de direitos humanos.

Já foinoticiado que o Ministério Público Federal recorreu dessa decisão, masprecisamos ficar atentos a essas manobras que perseguem, acuam e tentamdestruir o que não está de acordo com o que o fundamentalismo religiosodetermina como correto. E não resta dúvida de que essa decisão judicial éfruto do fundamentalismo religioso que avança sobre os poderes daRepública. Não podemos nos esquecer de que todos estamos sob a garantia deque podemos promover reuniões livremente para realizar cultos de qualquerdenominação – um direito individual e coletivo previsto na ConstituiçãoFederal, artigo 5º, inciso VI.

O ataque àumbanda e ao candomblé é também um ataque de viés racista por se tratar dereligiões praticadas sobretudo por pobres e negros. Mas é, antes, umadisputa de mercado. O que os fundamentalistas pretendem com os ataques àUmbanda e ao Candomblé é atrair os adeptos – e, logo, o dinheiro deles – para suas igrejas. E comovivemos sob uma cultura cristã hegemônica, que se fez na derrisão erepressão das religiões indígenas e africanas, é óbvio que as igrejasfundamentalistas levam a melhor nessa disputa de mercado e em suasestratégias de difamação.

O queesperamos do Judiciário é o mínimo de justiça que possa colocar freios àintolerância e à ganância dessas igrejas e seus pastores; e possaassegurar a pluralidade religiosa pautada no respeito e sem hierarquiasentre as religiões.

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ha-ofensa-e-fundamentalismo-na-decisao-contraria-a-umbanda-e-ao-candomble-7480.html