A prisão do general Alzate por parte das FARC gera um novo momento nos diálogos de Havana

Sabe-se que escrever no calor da marcha sempre traz riscos. No entanto, uma análise objetiva da história e da conjuntura pode oferecer elementos de compreensão que não se distanciam muito do que realmente está ocorrendo com o movimento político contraditório, podendo até orientar alguns desdobramentos imediatos ou de longo prazo da situação estudada. Desta maneira, pretendemos contribuir com a análise da conjuntura política pela qual atravessa a Mesa de Diálogos de Havana entre o Governo de Juan Manuel Santos e as FARC-EP. Para isso, faz-se necessário um retorno histórico sobre alguns pontos fundamentais das experiências anteriores e, em geral, sobre pontos fundamentais do desenvolvimento da guerra.

Ante as diferentes interpretações e opiniões políticas, pretendo expor algumas ideias que permitam articular a história com o presente, de frente para construção de uma análise, a mais objetiva possível, da atual situação protagonizada pela detenção do General Alzate por parte das FARC-EP, em 16 de novembro, departamento do Chocó.

A seguir, tentarei responder algumas das teses centrais sobre as quais se sustentam várias análises que pretendem comparar (de forma equivocada) a ruptura e desdobramentos dos diálogos de paz entre o Presidente Andrés Pastrana e as FARC-EP em San Vicente del Caguán, entre 1999 e 2002.

  • A correlação de forças (do político e do militar) mudou dramaticamente com a finalização dos diálogos do Caguán. Os erros das FARC fertilizaram o terreno para a chegada de Uribe.

A alteração do panorama político-militar supostamente apresentou como resultado um contexto expressamente favorável para o Estado, que abriu um novo ciclo no qual a institucionalidade burguesa se sobrepôs à insurgência a partir de qualquer ponto de vista. O crescimento da capacidade militar do Estado é um fato que em si não pode ser negado. Ainda assim, merece ser tratado com bastante cuidado, pois acreditar na superioridade absoluta do Estado, necessariamente leva a crer em um triunfo definitivo da guerra, coisa que não acontece e, ao que parece, não vai acontecer. No entanto, a causa e consequência da escalada militar com a reestruturação das forças militares estatais, não pode ser confundida até chegar ao ponto de expressar (como fazem algumas análises) que tal situação se deve aos erros políticos e fundamentalmente militares das FARC, mais que às virtudes do Estado e das forças do monopólio midiático da informação.

Afirmar que no ano de 2002 (com o encerramento dos diálogos por parte do presidente Pastrana) a insurgência não soube analisar o momento, motivo pelo qual priorizou as ações militares sobre as ações políticas, evidencia desconhecimento sobre as transformações da organização subversiva e a confrontação armada. Basta mencionar dois pontos fundamentais na história das FARC para compreender os principais movimentos políticos que realizaram, chamando a atenção que um deles se situa precisamente no marco dos diálogos de 1999-2002. O primeiro, que já é de amplo conhecimento, é a proposta da União Patriótica. Não cabe aqui mencionar a importância e qualidade política do movimento guerrilheiro no período, porém deve ser dito que talvez tenha sido o auge no campo “estritamente político”. O segundo momento foi o lançamento de diferentes estruturas “políticas” que, de acordo com os planos estratégicos, seriam os canais através dos quais se avançaria na construção para a denominada “Nova Colômbia” por parte das FARC articulada com o povo. O lançamento do Partido Comunista Clandestino Colombiano (PCCC), assim como o do Movimento Bolivariano pela Nova Colômbia (MB), constituem uma reestruturação estratégica frente ao reconhecimento da luta política competente e massificada. Diferente dos anos anteriores, as FARC já não se colocam como um apêndice do Partido Comunista Colombiano (PCC). Estruturam suas próprias organizações políticas para o que denominam uma “combinação de todas as formas de luta”, para a tomada do poder. Desde então e até os nossos dias, tais estruturas clandestinas mantém ações permanentes em quase todo o território nacional, independente que tenhamos conhecimento delas, sejam compartilhadas ou não.

Parece que um dos momentos de orientação política de maior envergadura no interior da insurgência foi na conjuntura dos diálogos de Caguán, ao contrário do que vem sendo afirmado pelos diferentes setores através de diversos meios de comunicação.

Não pode passar despercebido que o fortalecimento do Estado se dá graças à reengenharia político-militar planejada a partir de Bogotá e Washington, por meio do Plano Colômbia posto em marcha imediatamente após da ruptura dos diálogos de paz do Caguán. A maior estratégia militar da institucionalidade colombiana, uma das reestruturações mais evidentes na história recente, foi produzida durante os anos de 2001 e 2002, sendo orientada pelo capital monopolista que, com o discurso antinarcótico, combate frontalmente as guerrilhas e, inclusive, as expressões políticas legais.

Chama a atenção que no campo político o presidente Pastrana colocava como principal conquista da luta antissubversiva a inclusão das FARC na lista de organizações terroristas. O próprio presidente Pastrana reconhecia a crescente capacidade (política e militar) com a qual os insurgentes violavam o poder do Estado, frente ao qual, era necessário gerar respostas contundentes. Não é segredo para ninguém que a maior força militar das FARC se deu em fins da década de 1990, condição que mudou posteriormente à ruptura do Caguán, sem querer dizer com isso que a guerrilha tenha se submetido.

A ascensão da autocracia uribista não corresponde então aos erros militares das FARC, mas a um cuidadoso plano estratégico iniciado com Pastrana e articulado com George Bush, que desdobra a nível mundial a doutrina antiterrorista, como suposta resposta ao ocorrido em Wall Street, no 11 de setembro de 2001. O fim dos diálogos e a doutrina antiterrorista são o melhor panorama com o qual poderia se encontrar Uribe Vélez, que soube aproveitar o momento para intensificar a guerra. Ao anterior, soma-se o fortalecimento do paramilitarismo que, durante os anos de 1990, vinha em uma escalada militar. Assim, o contexto que se tem é a fusão do narcotráfico e a política reacionária, criando e fortalecendo a máquina paramilitar que vinha sendo pensada antes mesmo do Caguán. Em 2002, geraram-se todas as condições políticas e militares para a ofensiva belicista do Estado.

No marco da guerra frontal iniciada por parte da nova reengenharia militar legal (exército e polícia) e ilegal (paramilitares), a população civil é que se viu mais afetada, sofrendo com os massacres, desparecimentos, remoções e assassinatos (chamados de falsos positivos). Ante este panorama, o pensamento crítico é asfixiado dentro e fora dos centros acadêmicos, até o ponto de eliminar do debate político a análise das motivações e dos atores da guerra. Estaríamos equivocados em acreditar (e se assim o fizéssemos, estaríamos caindo em uma ilusão abstrata) que, diante deste contexto, as organizações sociais e a população em geral assumiriam publicamente o respaldo a um projeto revolucionário. Ante a ameaça das forças militares e paraestatais, a primeira resposta generalizada é a abstração – entenda-se aqui como abstenção – de uma opinião política da população civil frente à guerra. Este fato não pode ser confundido com legitimação (para o Estado) ou refração (para a insurgência). O que pretendo expressar é que a população civil poderia se identificar e, talvez, acompanhar um ou outro ator armado. Identificar-se sem expressar publicamente ou simplesmente abster-se de uma posição determinada. Seria um grande erro afirmar que a balança política estava claramente inclinada para um dos dois lados (insurgência ou Estado), ainda que a campanha antissubversiva ocorresse permanentemente através dos meios de comunicação. Neste caso, se o que se trata é de interpretar o sentir popular e os verdadeiros interesses da grande maioria da classe trabalhadora, parece-me que a principal afirmação válida é o fim da guerra e o melhoramento das condições de vida tanto no campo como na cidade. Querendo ou não, de maneira consciente ou inconsciente, deve-se reconhecer que per se, estes objetivos da grande maioria da população se tornam vulneráveis e antagônicos aos interesses do Estado e da classe hegemônica.

  • Com a suspensão dos diálogos, produto da detenção do General Alzate, Santos demonstra o controle que o governo tem sobre a mesa de Havana (sobre a qual supostamente teve a iniciativa política e militar), enquanto a insurgência deve manter todo o custo das conversações.

Não corresponde a uma análise objetiva negar o forte impacto político e militar gerado pelo Estado através do Plano Colômbia e a estratégia belicista de Uribe Vélez. Agora, tampouco é possível sobredimensionar suas capacidades e verdadeiros alcances, até colocar as forças militares e o Estado em seu conjunto como o grande vitorioso da guerra interna. Sendo assim, não haveria possibilidade alguma de instalar uma mesa de diálogos em Havana, pois ninguém negocia com seu inimigo quando já conseguiu dominá-lo. A abertura dos diálogos demonstra a incapacidade mútua (Estado e Guerrilha) de submeter seu adversário através da via armada. Ainda que o Plano Colômbia e os dois governos de Uribe tenham redimensionado a dinâmica da guerra, o que fica claro é que o Estado, em companhia da maior força militar do mundo (as forças militares estadunidenses), empreendeu sua máxima energia possível, obtendo resultados bem diferentes aos esperados. Apesar das promessas pretensiosas de acabar com as guerrilhas em 6 meses, depois de quase 10 anos de arremetida frontal, saltou à vista pública o óbvio: a única solução possível à guerra é a via do diálogo. A estratégia guerrerista do Estado foi um fracasso absoluto.

Parece que a suposta iniciativa do governo de Santos no início da mesa de Havana pode ser relativizada, a não ser que se pense que as FARC entraram no processo como consequência direta do suposto enfraquecimento militar ou como a última alternativa de incidência política no país. Ambas as hipóteses são epidérmicas, pois basta observar as estatísticas (inclusive estatais) das consequências da guerra, como por exemplo, número de combates, feridos e mortos de ambas as partes. León Valencia, um liberal convicto, através de sua fundação fez um interessante e interessado levantamento de dados a esse respeito, que se não mostram de forma definida o panorama da guerra, trazem consigo algumas informações interessantes.

Se não parece tão clara a iniciativa e o controle de Santos no início da mesa de diálogos, será possível pensar que o suposto domínio foi gerado no transcurso das conversações? Não acredito e, ao contrário, penso que se evidenciou o enfrentamento profundo entre o governo e as FARC. Este fato pode ser percebido ao longo dos comunicados conjuntos, os informes parciais e, finalmente, com a publicação dos 3 pontos pré-acordados que, hoje em dia, são documentos de fácil acesso na web. Nos documentos de conhecimento público se expressa o resultado de um claro enfrentamento político entre posições diametralmente opostas, que conseguiram encontrar alguns pontos mínimos que podem permitir o fim da guerra e algumas reformas político-econômicas urbanas e fundamentalmente rurais na Colômbia.

Conhecendo a estirpe e a consciência de classe do presidente Santos e, além disso, recordando sua atuação nas diferentes instâncias governamentais que desempenhou, com especial destaque ao Ministério de Defesa durante o governo de Uribe, dificilmente pode-se argumentar que o expresso nos acordos parciais de Havana corresponde a sua plena vontade. Tampouco o que ali se proclamou corresponde às posições políticas e ideológicas das FARC. Não acredito equivocar-me ao reconhecer na mesa e nos pré-acordos de Havana um verdadeiro campo de enfrentamento, em uma batalha política da qual sai um ator vitorioso e incontestável.

Crer que a suspensão dos diálogos por parte de Santos, como consequência da detenção do general Alzate, é uma mostra de superioridade e controle por parte do governo, obedece a uma leitura parcial da totalidade do que tem sido o processo dos diálogos. É necessário lembrar que em dado momento, as FARC também propuseram uma pausa (tendo como motivo as escutas feitas por um hacker acerca dos integrantes da mesa) e, inclusive, introduziram temas transcendentais sobre os quais o presidente Santos tomou uma atitude de desatenção ou de contradição (por exemplo, com relação à Comissão Histórica da Verdade, diferente da Comissão da Verdade proposta pelo governo). Se o ângulo da análise se desenvolve sob a mesma perspectiva com a qual se compreende uma suposta dominação de Santos na mesa, desde já seria possível dizer que o referendo (último ponto de debate na Mesa de Havana) obrigatoriamente será um Referendo e não uma Assembleia Constituinte, tema que, independente de seus resultados, certamente será rico em contradições e desafios.

Deve ficar claro que as determinações do conflito colombiano obedecem a critérios políticos que se expressam no campo militar. Ambos elementos andam juntos e de forma simultânea. Se tal afirmação corresponde à realidade, deve-se discutir a tese que sustenta a suposta prioridade militar que as FARC têm dado aos confrontos. O desenvolvimento do conflito armado mostra de forma clara que todos os atores da guerra teceram com rigor planos estratégicos e desenvolvimentos táticos de índole política e militar, seja para manter-se no poder ou para gerar sua derrota.

Não acredito na hipótese da guerra como um fim em si mesmo (pelo menos para as insurgências, sejam elas FARC, ELN ou EPL). Para os camponeses do sul do Tolima ou dos “santanderes”, que durante os anos 60 formaram os grupos guerrilheiros, a guerra foi uma resposta ante as múltiplas agressões. Para seus sucessores, esta ainda se mantém como uma das poucas alternativas através das quais se enfrenta o poder hegemônico. Caso se trate de considerar a guerra como um fim em si mesmo, nossa visão deve se dirigir ao Estado, pois hoje mais que nunca encontra no “keynesianismo militar” um salva-vidas que permite manter-se à tona em meio à crise (sistêmica) em que se encontra.

Agora, considerando o anterior, o que significa a detenção do general Alzate pelas FARC?

Seria errado defender que a detenção do general Alzate seja um indicador direto do aumento e fortalecimento militar da guerrilha nos últimos anos. Embora, seja necessário considerar que é a primeira vez que um general da república cai nas mãos de uma organização insurgente. Neste caso (apesar do militar se encontrar desempenhando suas funções), não se pode perder de vista que a detenção se deu em condições atípicas no marco da guerra. Assim, tampouco é possível defender que simplesmente seja questão de azar ou má sorte do militar, pois o fato objetivo é que as FARC têm uma incidência política e certo controle territorial em Chocó, como em tantas outras regiões do país. Uma organização insurgente que diariamente desempenha ações político-militares deve ser reconhecida, como fez o governo de Santos, como uma organização que, ao modo da ciência política, constitui um fator real de poder.

A novidade não é um militar cair em poder da guerrilha, sendo “dado de baixa” ou ferido. Neste caso, a novidade é que seja um general. Uma semana antes da detenção de Alzate em Chocó, ocorreu a prisão de dois soldados rasos em Arauca, fato que também foi devidamente veiculado e que foi resolvido depois de alguns dias, quando as FARC libertaram os prisioneiros através da Cruz Vermelha Internacional e dos delegados dos países garantidores do processo de paz (Cuba e Noruega).

Ambos os casos (a prisão dos dois soldados e do general Alzate), a partir da perspectiva que questionamos, constituiriam graves erros militares que, no marco dos diálogos de paz, se traduzem em erros políticos. E se esta linha de raciocínio for levada até as últimas consequências, toda ação militar se desdobraria em feitos repudiáveis, como efetivamente o mostra a grande imprensa, chegando à conclusão de que a própria existência da insurgência significa um erro político-militar ou, talvez, um desvio irresoluto na luta de classes.

Sem estender-me em explicações já conhecidas, basta recordar que é a forma na qual se desenvolveu política e economicamente o país, que gera as condições e motivos estruturais que abrem caminho para a guerra. O que neste momento deve ser posto como principal tema de debate é a contradição com a qual se comporta o Estado frente à Mesa de Diálogos. Pois, enquanto organizam uma arremetida militar para submeter as guerrilhas através das armas, mostram-se ante o mundo como a principal vítima, ao serem alcançados pelas ações insurgentes no marco da guerra.

A proposta do cessar-fogo bilateral, reiterada pela insurgência e exigida por diversos setores sociais, certamente será ponto central no debate, uma vez que sejam retomadas as conversações em Havana. Já se fez explícito o inconformismo das FARC ao defender que com o ocorrido, o governo de Santos acabou com a confiança no processo, situação ante a qual Timoleón Jimenez, máximo comandante das FARC-EP, afirma que “as coisas no poderão ser retomadas assim, é preciso fazer diversas considerações”.

As organizações sociais e os diferentes setores políticos democráticos e de esquerda devem gerar um processo de apropriação ou reapropriação com participação direta na Mesa, exigindo uma saída política à guerra e a instauração das transformações profundas que o país necessita.

NÃO NOS FICA OUTRA ALTERNATIVA SENÃO EXIGIR A CONTINUIDADE DOS DIÁLOGOS, O CESSAR-FOGO BILATERAL, O FIM DA GUERRA E A CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA PROFUNDA.

*Militante de Marcha Patriótica.

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)