Os debates pela paz – parte I
Publicado por Marcha Patriótica – janeiro de 2015
Por: Pacho Tolosa
Parte I
O ano de 2015 inicia com a expectativa comum da imensa maioria do povo colombiano de que o atual processo de paz se consolide e avançe firmemente para a solução política. Porém, a superficialidade midiática com que se apresenta este transcendente trânsito de nossa história contemporânea pretende intencionalmente ocultar enormes ameaças e debates substanciais que hoje precisam ser contornados para se chegar ao ansiado acordo de paz.
O chamado do presidente Santos, com o aval de seus assessores internacionais e sua imprensa palaciana para acelerar o processo, só pode ter curso caso agilizem e avancem francamente nos grandes temas irresolutos e necessários para a solução política, definidos muito bem pelo delegado governamental Humberto De la Calle, como assuntos de grande complexidade. O governo e seu aparato de propaganda não podem continuar apresentando a assinatura do acordo final como uma questão mecânica ou de tempos naturais, mas como um processo atravessado pelas vontades, polêmicas, decisões e ações dos sujeitos políticos trançados no conflito armado. A mesa de Havana não é a pequena máquina temporizada para produzir a paz express com a qual tanto sonhou o bloco hegemônico, mas um campo de batalha político entre pares, onde se depura hoje o debate sobre o poder na Colômbia e se define o fim de uma extensa e vergonhosa etapa histórica de nosso país.
O longo caminho percorrido não pode eclipsar o ainda difícil trecho que falta ser avançado para conquistar a meta, mas, que pelo contrário, considera o grande valor dos passos até agora dados com os acordos parciais e demais feitos de paz. Porém, ao tempo, exige a apresentação nítida das discussões essenciais que deverão ser processadas para o feliz término dos diálogos.
Especialista em maquiagem midiática, o presidente parece mais interessado em apaziguar os inimigos da paz, que em abordar madura e decididamente realidades patentes para a finalização do conflito armado na Colômbia. O estabelecimento, seus meios de difusão e seus analistas fretados, vêm escondendo debates obrigatórios e apresentando à opinião pública suas posições unilaterais como verdades dadas, acordos consumados ou regras incontestáveis: nem referendo, nem justiça transicional, nem desmobilização, nem marco legal, nem o orçamento do pós-conflito aparecem mencionados nos acordos até agora assinados, e são hoje meras propostas governamentais. Tanto engano propagandístico se deve ao temor de desmontar sua mentira repetida até o cansaço da vitória militar do estado colombiano, que mostra mentirosamente a mesa de Havana como um genuflexório para a rendição da insurgência e a vã esperança que de tanto cacarejar suas propostas na imprensa estas serão aceitas.
Debates são os que ainda faltam. Pecando de atrevido, apresento pelo menos 5 nós gordianos de discussão que fisgam qualquer atento observador do processo, 5 nós gordianos que devemos desatar para a construção da ansiada paz neste ano de 2015:
1. O descenso da guerra e o cessar-fogo bilateral
2. O autêntico marco legal para a paz está por ser construído
3. O conceito de “Entrega de armas” e “Fim do conflito”
4. O ascenso e o encontro do diálogo com o ELN
5. Participação popular, referendo e ANC (Assembléia Nacional Constituinte)
1. O descenso da guerra e o cessar-fogo bilateral.
O esquema sionista de “dialogar como se não combatesse, combater como se não dialogasse” imposto pelo governo nacional, além de ser macabro, atenta contra o próprio processo e só alimenta os incentivadores da guerra, inimigos da mesa de negociações. Parte da consolidação da confiança em um processo de paz regido pela cláusula de que “nada está acordado, até que tudo esteja acordado”, envolve que o conjunto da população se sinta rapidamente aliviada do drama cotidiano da guerra.
Caso as duas partes se encontrem comprometidas – tal como manifestam – em chegar a um acordo para o fim do conflito, carece de todo sentido a continuidade das ações de guerra com suas usuais perdas humanas. O caráter bilateral deste armistício é apenas a consequência lógica da simetria requerida para a interlocução em uma mesa entre duas partes em conflito armado. As recentes manifestações do presidente Santos, somadas à posição levantada pela insurgência desde o inicio dos diálogos e o crescente clamor popular para um cessar-fogo bilateral efetivo antes mesmo do acordo final, colocam a declaração desta necessária trégua em primeira linha para a consolidação e fortalecimento do processo.
A oposição dos setores do uribismo e das Forças Armadas a esta conquista importante para o processo de paz, embora tenha sua causalidade nos benefícios econômicos e políticos que lhes outorga a guerra, passa também pela resistência de reconhecer na prática a falsidade de seu discurso que decretou “o fim do fim” da guerrilha já faz 7 anos, assim como o vazio de todo seu sermão antiterrorista. O fundo neste como em todos os debates será o mesmo: Havana não é o altar de rendição das FARC, mas a possibilidade de um acordo nacional para a paz.
Paralelo à discussão do imperioso armistício para fortalecer e blindar o processo de qualquer possível desestabilização, urge o avanço em um acordo especial humanitário de descenso ou desmonte da guerra que esteja dirigido a conter alguns dos efeitos mais sentidos do confronto que, inclusive, não seriam contemplados no cessar-fogo bilateral. Este acordo seria condizente ao artigo 3 dos Protocolos de Genebra e poderia incluir entre outros tópicos a retirada de minas, os prisioneiros de guerra, o uso desproporcional da força e armamento assimétrico, ou a participação de menores no conflito. A instalação da comissão técnica com comandantes de ambos os grupos é o cenário mais que propício para concretizar todos os compromissos necessários para o caminho da paz da Colômbia, além de definir os múltiplos detalhes operativos que requerem acordos desta profundidade, assim como as condições da necessária verificação internacional e nacional para seu cumprimento.
O cessar-fogo bilateral prévio ao acordo final será um claro funil sobre a real vontade de paz das partes. O presente cessar-fogo bilateral das FARC-EP dissipou as dúvidas semeadas por seus mais ferrenhos críticos em torno da unidade de comando e disciplina de todas as unidades. Frente ao Estado, estão os maiores questionamentos: depois de muitos anos se colocará à prova a subordinação das Forças Armadas ao poder civil e o grau de coesão destas frente ao processo de paz. Sua atuação em meio a um armistício demonstrará o anacronismo de uma força hipertrofiada para um país em paz, e colocará sobre a mesa o debate da reorientação e reestruturação da força pública de acordo com suas autênticas funções constitucionais e patrióticas.
2. O autêntico marco legal para a paz está por ser construído.
A construção da paz e o fim do componente armado do conflito é, antes de tudo, um processo político que, como todas as grandes transformações históricas no mundo, longe de submeter-se aos ordenamentos jurídicos pré-estabelecidos, gesta uma nova normatividade legal condizente à mudança gerada na época. Em contrapartida a esta realidade e fiel a esta nefasta tradição da oligarquia santanderista, especialista em disfarçar com delicadezas jurídicas seus golpes políticos, a partir de várias tribunas jornalísticas e institucionais se propala uma matriz midiática que apresenta a submissão à atual legalidade e o cárcere para os insurgentes como único destino possível do acordo de paz.
Desconhecendo todas as experiências históricas internacionais de acordos de paz, invocando complacentemente o Estatuto de Roma e a Corte Penal Internacional, se exibem estes mecanismos como um “grande Leviatã jurídico” que desautoriza qualquer acordo de paz que não signifique encher as já lotadas prisões colombianas. Estes mitos judiciais induzidos na opinião pública para amedrontar incautos e promover sua proposta de “justiça transicional”, não possuem maior pretexto que o de impor limitações à solução política a nosso conflito.
Ao ser a Colômbia o primeiro processo de paz a superar o Estatuto de Roma, nossa mesa de diálogos não está submetida como tal a rígidos antecedentes, nem a jurisprudência internacional prévia a esse respeito, pelo qual a corresponde construir soberanamente os caminhos que permitam colocar fim ao conflito. As hipotéticas tensões que possam surgir com a Corte Penal Internacional ou qualquer instância judicial estrangeira – pensando, por exemplo, na justiça norte-americana – não podem nos levar à conclusão de que o acordo de paz deve subordinar-se aos múltiplos ordenamentos legais externos à soberania colombiana, conciliação tecnicamente impossível, sem esquecer que os estados nacionais como sujeitos de direito internacional conservam, de fato, a soberania jurídica e coercitiva, inclusive em casos de condenação expressa pelas autoridades da justiça internacional, como mostram múltiplos exemplos contemporâneos. Não podemos esquecer que a aplicação relativa da jurisdição internacional se dá, também, entre outras razões pela subtração de seu cumprimento pelas grandes potências que, como os EUA e Israel, recorrem a crimes de lesa humanidade. Nos termos do sobrinho do presidente e diretor do periódico Semana, Alejandro Santos, exímio porta-voz do governo: “Convenientemente, se exagerou a espada de Dâmocles da justiça internacional…é mais tigre de papel[1]”.
Por que tanta preocupação governamental por limitar a paz a sua versão dos novos componentes penais da jurisdição internacional, quando o Estado colombiano violou flagrantemente o direito internacional para regular a guerra durante tantos anos, desconhecendo os protocolos de Genebra e demais normatividades? É uma interpretação leonina da harmonização jurídica do conflito na Colômbia a qual o doutor De la Calle chama de padrões internacionais aceitáveis. Para o governo é “aceitável” sua interpretação do Estatuto de Roma, assim como também anular os Direitos Humanos Internacionais, os tratados de Genebra e a tradição jurídica internacional que outorgariam beligerância às FARC-EP.
Os mecanismos da justiça internacional, tão invocados pelo governo e seus comentaristas – sobre os quais o Estado colombiano fez reserva até 2009 –, só cursam rumo à impunidade sobre crimes de lesa humanidade caracterizados por sua amplitude, sistematicidade e premeditação contra a população civil – dificilmente imputáveis à insurgência – recordando que os processos de verdade e reparação são parte substancial do tratamento jurídico contra estes, e não mera submissão jurídica e penitenciária apregoada pelos falsos advogados do governo.
Na soberania política e jurídica da Colômbia, no poder constituinte do povo soberano está a saída para este labirinto jurídico no qual querem fechar a solução política: nossa autodeterminação como povo nos possibilita recorrer a mecanismos de inibição aceitos no direito internacional, o reconhecimento do pluralismo jurídico de fato existente no conflito e a nação colombiana como parte do tratamento judicial aos eventos da guerra, e ao dever da verdade, reparação e não repetição – com a participação decisiva das vítimas do conflito como alternativas distintas à oficial espiral punitiva que defendem os inimigos da paz.
Este princípio é aplicado com maior força frente às argúcias jurídicas derivadas da normatividade interna. Pensar que o princípio de acordo com um movimento armado que não foi vencido em combate é a submissão à “justiça” contra a qual se levantou e que precisamente foi incapaz de reduzi-lo, além de um crasso erro político é um ato que beira a estupidez. Se as FARC-EP aceitassem o atual ordenamento jurídico não existiria conflito armado e a mesa de diálogo não seria necessária. O fim do conflito não se trata de encarcerar e julgar guerrilheiros, mas, pelo contrário, passa entre outras coisas por libertar os retidos e demais prisioneiros políticos, assim como cessar o julgamento dos opositores.
Para os amantes da paz, este é um direito fundamental dos colombianos e bem supremo, superior a qualquer âmbito jurídico. A paz se consagra na mesma Carta de 1991 como um fim mesmo do Estado e com força vinculante, como norma integrada ao bloco de constitucionalidade. Este bem supremo estreitamente vinculado hoje ao avanço do processo de Havana, obriga jurídica e politicamente à reavaliação de toda a normatividade engendrada pela presente guerra.
Agora, como foi pactuado pela mesma Mesa, não se trata de troca de impunidades. As vítimas do conflito social armado deverão ser reparadas com a verdade e a garantia de não repetição, porém isto não se traduz na submissão dos assinantes do acordo de paz a um regime jurídico e a um ramo judicial, como os existentes na Colômbia, que hoje são questionados por sua ilegitimidade não apenas pelos rebeldes. O crime político em sua concepção genuína permite resolver as situações requeridas pela incursão dos insurgentes à vida política legal, porém isto implicará construir um novo marco legal para a solução política conforme os alcances do acordo final e com a participação decisiva de todo o povo soberano.
O que fica claro é que o autêntico marco legal para a paz não é o Ato Legislativo 01 de 2012, aprovado unilateralmente por um legislativo espúrio, e que toda a jurisprudência nacional que cerceou e deformou a categoria do delito político a partir da sentença C-456/97, deve ser removida. Havana não é a submissão à atual legalidade do Estado (e seu ilegítimo ramo jurídico) nem dos insurgentes e nem dos demais setores por ela violentados. Pelo contrário: é a abertura do processo constituinte e legal para a gestão de uma legalidade própria para o fim do conflito.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)
[1] Programa Las Claves. Canal Capital. 20 de janeiro de 2015.