Os debates pela paz – parte II

Marcha Patriótica – fevereiro de 2015

Por: Pacho Tolosa

Parte II

3. Ascenso e encontro do processo de paz com o ELN e o EPL.

Uma grande interrogação na perspectiva da solução política ao conflito armado, passa pelo desenvolvimento do processo de paz com o ELN – que se encontra em sua fase exploratória, – assim como pela abertura de conversações com o EPL. A arrogância do governo, baseada na mentira de sua suposta vitória militar, não é um bom princípio para a ascensão de um processo de paz com grupos insurgentes que, como o ELN e o EPL, manifestaram sua vontade de diálogo[1] e se mantém em atividade política e militar há 5 décadas. O caráter social e político do confronto armado na Colômbia obriga, como nos diálogos de Havana, a construir igualmente com estas guerrilhas uma agenda substantiva que incorpore as problemáticas que originaram e incentivaram a guerra, exigindo que o estado colombiano renuncie a sua visão minimalista de “paz expressa” também com estas guerrilhas.

Ainda que para o caso do ELN o processo leve mais de 2 anos e o início dos diálogos tenha sido anunciado há mais de 9 meses, hoje é pouco o que conhecemos sobre o avanço destas conversações que requerem o acompanhamento do conjunto do povo colombiano. A única evidência é a atitude ambivalente por parte do estado para a concretização desta mesa, razão que exige maior pressão popular para a formalização e fortalecimento destes diálogos, assim como para o início das conversações de paz com a guerrilha do EPL, que avançam rapidamente para o cessar-fogo e das hostilidades.

Embora as próprias particularidades do ELN como movimento político em armas e expressão concreta de um acúmulo de lutas sociais, tornem pertinente o desenvolvimento de uma mesa com uma agenda específica, também é claro que para além da existência de múltiplas mesas de diálogos, é inexorável que estas terminem condensando-se em um grande processo pela solução política. A solução política e a construção da paz são um processo histórico complexo que requererá a cooperação e confluência de todos os envolvidos no conflito, e a atual tática governamental de dilatar as conversações com as outras guerrilhas não faz outra coisa que engessar o fim desta guerra, que supostamente tem pressa para ser concluída.

O encontro e a participação da sociedade na construção da paz expressos pelo ELN, não são uma diferença com as FARC-EP, como apregoavam os analistas descontextualizados, mas uma nítida coincidência entre as 2 guerrilhas, e destas, com todo o espectro democrático do país. Esta necessária discussão e participação decisiva do povo soberano, que as duas insurgências enfatizam muito bem, poderia ser a base do encontro das 2 mesas.

Obviamente, os mecanismos de união das distintas mesas em um único processo de paz serão, certamente, debates volumosos e também sutilezas que requererão a participação tanto das delegações de paz como do conjunto do povo colombiano. Porém, estas discussões e propostas necessárias para a paz só poderão amadurecer caso o estado abandone os rodeios e dê início ao diálogo com as guerrilhas do ELN e o EPL.

4. A concepção de “Entrega de armas” e de “Fim do conflito”

No ponto 3 consagrado no Acordo Geral de Havana, denominado Fim do Conflito, se condensam talvez vários pontos da mais fria discussão, dado o víes e a malícia com que o governo apresentou os diálogos de paz à opinião pública. É preciso destacar que este terceiro ponto contém 7 seções[2], que se referem a múltiplos aspectos de seu debate, tornando-se inevitável avançar em mínimos esclarecimentos conceituais sobre nosso conflito social político armado, que o governo e a grande imprensa preferem ignorar.

A primeira reflexão é que em Havana avançamos para o término do componente armado do conflito, porém não em sua totalidade, que se compõe de dimensões políticas e sociais. Ao dar-se o acordo de paz não vem nenhum pós-conflito, mas continua e se desenvolve o conflito social e político só que despojado de seu elemento bélico. A complexidade do processo de diálogos se trata precisamente de fixar as regras do jogo para que o conflito social e político colombiano possa diminuir de forma pacífica, o que implica inexoravelmente o desmonte das estruturas sociais e políticas que levaram a confrontação ideológica e de classe para a guerra. Este esclarecimento, inclusive, foi exposto nitidamente pelo delegado presidencial no início dos diálogos e irmão mais velho do presidente, Enrique Santos Calderón, quando afirmou em seu último panfleto de propaganda: “O fim do confronto armado não será o fim do conflito social e político. Este continuará e, possivelmente, se intensificará, em forma de protestos sociais, paralisações camponesas, greves operárias ou mobilizações cívicas de diferentes tipos[3]”. Sob o risco de soar contraditório, do que se trata é de terminar a guerra para desenvolver o conflito.

Em segunda instância e em consonância com esta concepção, o debate do fim do conflito não se enquadra como o apregoa o governo na definição manualesca de DDR (Desarmamento, Desmobilização e Reinserção), mas que dado o caráter histórico da confrontação, sua raiz social e política, assim como a própria correlação de forças no campo de batalha desta guerra de mais de 50 anos, tal como expõe a agenda do ponto 3, abordarão aspectos tão diversos que englobam a liberdade dos prisioneiros de guerra das FARC-EP , os “ajustes institucionais requeridos pela paz” ou o “esclarecimento do fenômeno do paramilitarismo”, entre outros.

Torna-se evidente a densidade e alcance da polêmica neste ponto, já que sintetiza a própria história do conflito armado para sua solução. Estamos diante de um processo histórico que não se reduz a meros artifícios administrativos, mas que requer compromissos e tempos distintos aos que hoje empreende a Casa de Nariño (nota da tradução: Palácio do Governo). Papel central será assumido, sem dúvida, pela comissão técnica militar que trará vários aspectos específicos necessários para o fim do conflito armado, porém também o informe da Comissão História do Conflito e suas vítimas, dando orientações sobre a origem e combustíveis desta guerra, assim como chaves para sua queda e seu desmonte.

Em terceiro lugar, como denominador comum em todos os debates pela paz, não se pode perder de vista a bilateralidade do processo. O ponto do fim do conflito não é o ponto de rendição das FARC-EP e nem sequer de entrega de suas armas, mas do término de uma guerra que não teve um único grupo em combate, o que implica a construção de medidas para desativar todas as partes envolvidas. Uma leitura séria dos parágrafos do ponto 3 deixaria claro que, quando os compromissos competem exclusivamente a uma das partes da mesa, esta fica expressa no documento, o que permite entender que as ações resenhadas genericamente correspondem a ambas as partes do Acordo Geral.

Em tal sentido, o item de “Entrega de armas” não precisa que seja a entrega de armas da guerrilha, e sim que deve ser aplicável para ambas as partes, com a clareza política de que a entrega não significa desarmamento e nem rendição, mas sua não utilização. Falta dizer que a não utilização das armas dos combatentes não dependerá somente da determinação de uma das partes, mas do caráter bilateral e da defesa do cessar-fogo e das hostilidades. Precisamente pelos perigos que contemplam a construção da paz, dificilmente as partes em conflito aceitarão ficar inertes. Porém, indefectivelmente, o processo de paz busca comprometer-se a não continuar usando as armas para seus objetivos políticos, ou seja, cessar da violência política. E aqui destaco que deve ser um compromisso bilateral, já que o estado e as classes dominantes foram os primeiros a juntar política e armas, “combinar as formas de luta” em um país cuja existência como república descansa sobre o atentado de Sucre e onde, em 2015, continuam ocorrendo assassinatos de dirigentes sociais e populares, como no recente caso do companheiro Carlos Pedraza, do Congresso dos Povos. Se a grande imprensa semeia hostilidade e alega desconfiança nas FARC-EP, deveria esgrimir que fundamentalmente a insurgência e os setores populares têm razões de sobra contrastadas historicamente, para duvidar da probidade do governo e exigir todas as medidas para evitar um novo genocídio político. Os guerrilheiros da comissão técnica militar, denominados Comando de Normalização, não estão pedindo o desarmamento de sua contraparte, mas que esta atue como uma instituição militar em um país sem identidade, marcado pela guerra civil, ou seja, que as forças oficiais deponham suas armas que brandiram por mais de 50 anos contra a oposição política. Disso se trata a normalização que os delegados governamentais chamam de transição e que teria início com o cessar-fogo bilateral indefinido.

Antes que os repórteres mal intencionados apresentem esta clareza conceitual como um truque in extremis das FARC-EP para, segundo seus termos, “enganar o país”, acudamos outra vez ao mesmíssimo Enrique Santos, que testemunha como esta diferenciação esteve presente para as partes sentadas na mesa desde a própria construção da agenda[4]. Também suponho que se tenha decantado com nitidez a diferença entre reincorporação das FARC-EP à vida civil – no econômico, no social e no político – como reza o acordo, e a desmobilização, conceito que não aparece no acordo e que, segundo anunciado pelos porta-vozes insurgentes, não está na agenda da guerrilha, já que planejam manter-se como movimento político e não dissolver-se ante um possível acordo, justamente porque, como já apontado anteriormente, o conflito continuará depois de um possível acordo.

Para esclarecer, neste sentido é importante apelar para as experiências internacionais que rompem com o fetiche da burguesia colombiana de entrega das armas e submissão à justiça. No Ulster, o IRA decretou o cessar-fogo desde 1997 para impulsionar o processo de paz que se expressou no Acordo de Sexta-feira Santa, em 1998, que incluiu, entre outros temas, reformas policiais e administrativas para Irlanda do Norte e a libertação dos prisioneiros políticos, incluídos aqueles condenados a várias prisões perpétuas. Não obstante, a guerrilha irlandesa só renunciou oficialmente à luta armada em 2005, quando os grupos paramilitares unionistas se desmantelaram e, em 2008, se desintegrou como corpo armado, no marco de um governo de coalizão protestante-católica formado em 2007 e do qual participava o Sinn Féin, seu partido político. Os republicanos irlandeses deixaram e não entregaram as armas em meio do acompanhamento internacional, situação aceita por sua contraparte, o poderoso Reino Unido, que avançou em seus compromissos contraídos pelos acordos de paz.

No Nepal, entre a assinatura do acordo de paz, em 2006, e a entrega do PLA[5] das chaves de seus depósitos de armas, em 2011, a uma comissão pluripartidária, convocou-se uma Assembleia Constituinte formada sob um sistema misto de eleição que eliminou a monarquia motivadora da guerra e o Partido Comunista do Nepal-Maoísta – organização política que dirigia a guerrilha – entrou para participar da nova coalizão do governo. Tanto Prachanda como Bhattarai, chefes máximos da guerrilha maoista, foram não só constituintes como os primeiros-ministros entre 2009 e 2013, e garantiram o cessar-fogo bilateral, assim como o aquartelamento da guerrilha e exército do Nepal pela entrega de armas.

Algo similar ocorreu na África do Sul, onde Umkhonto WeSizwe, MK, braço armado do Congresso Nacional Africano, embora tenha suspendido as atividades militares desde 1990, só se desintegrou depois de 1994, sob o governo de Nelson Mandela que foi seu comandante em 1961. Não podemos esquecer que isto foi possibilitado pelos acordos de paz que abriram o processo constituinte de democratização da África do Sul. Graças aos diálogos iniciados com a libertação dos prisioneiros políticos do MK e do CNA, se promulgou uma constituição provisória em 1993 que permitiu o voto livre, a eleição de Mandela e convocou a Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição sul-africana de 1996. É sob este contexto de transformações políticas e de abertura de garantias democráticas que se produziu a entrega de armas do MK.

Em El Salvador, a entrega de armas do FMLN, sob a verificação internacional, foi acompanhada por uma profunda reforma das forças militares e da polícia do estado centro-americano, pactuada nos acordos de 1992. Nos Acordos de Paz de Chapultepec foi consagrada a transformação doutrinária, depuração e redução substancial das Forças Armadas de El Salvador, FAES, com a supressão das forças de elite, a eliminação da Guarda Nacional e da Polícia do Tesouro, assim como a criação da Polícia Civil Nacional, corpo desmilitarizado formado por um terço de combatentes guerrilheiros. Como pode observar, a entrega de armas não é um ato em si mesmo, mas um processo histórico complexo que parte da suspensão de ações militares insurgentes e de cessar-fogos bilaterais, mas não a rendição à contraparte. É preciso ressaltar que esta mudança foi acompanhada por reformas estruturais que ofereceram as reais garantias de incorporação das guerrilhas e movimentos sociais à vida política aberta, ou seja, pelo desmonte da violência política como recurso do sistema no poder. Para além dos aspectos técnicos em termos sócio-estruturais, a “entrega de armas”, enquanto termos de violência política, sempre será um processo bilateral.

Ainda que o governo e seus meios de comunicação neguem, a reforma das Forças Armadas está sobre a mesa: é disso que também se trata a entrega de armas e a saída política. A necessária transformação da força pública certamente implicará o debate com um importante setor do atual bloco hegemônico, dada a progressiva incorporação do estamento militar como facção de classe dentro da coalizão dominante e a apropriação de certo militarismo fascistóide como parte do discurso ideológico da direita colombiana. Equivocadamente, o ministro Pinzón pretende construir a paz sem que se mova uma vírgula nem com relação a ele nem a seu complexo militar industrial. A aposta do governo e dos militares ante um eventual acordo de paz é reacomodar o hipertrofiado exército sem reduzir seu número através da mercenarização de nossos soldados via “cooperação internacional”, como é visto nos acordos militares com a ONU, OTAN e demais; a promoção da venda de serviços e a promoção das chamadas alianças público-privadas como é exposto hoje no denominado GSED (Grupo Empresarial e Social da Defesa)[6]; e mediante a projeção da chamada “segurança urbana e rural” sob o sofisma das novas ameaças criminosas.

A reengenharia das Forças Armadas para a paz não pode ser guiada pela disputa entre as facções militares pelo controle de funções e orçamentos, nem deter-se ante os interesses políticos e econômicos criados por generais dos distintos corpos ou contratados do setor, que é o que transparece a maioria das propostas governamentais. Fazendo uma comparação com o fechamento imperfeito do ciclo da violência, a solução política em curso deve significar no mínimo uma transformação essencial da força pública através de um novo pacto, que substitua aquele acordo antidemocrático selado por Lleras Camargo com seus generais em plena Guerra Fria. É necessário, no mínimo, uma séria reforma doutrinária, de estrutura e de tamanho, em um debate aberto no país iniciado na mesa de Havana, com as contribuições inestimáveis da comissão técnica militar integrada por comandantes dos dois grupos em conflito, porém que requererá a participação do povo soberano na Assembléia Nacional Constituinte para a paz. Sem forçar muito a compreensão de leitura, alguns supõem que estas mudanças inevitáveis nas Forças Armadas fazem parte “das reformas e dos ajustes institucionais necessários para fazer frente aos desafios da construção da paz”, expressos no ponto 3.5 da agenda de discussão firmada pelo governo e guerrilha.

Fonte: http://marchapatrioticaenelvalle.blogspot.com.br/2015/02/debates-para-la-paz-ii-parte-por-pacho.html

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)


[1] A respeito, ver não só os múltiplos pronunciamentos do ELN que tiveram ampla difusão, mas a carta aberta do Comando Geral do EPL e do Comitê Executivo Central do PC do C (ML), de julho de 2014, onde assinam não apenas uma proposta de diálogo de paz como de Assembleia Nacional Constituinte para a solução política ao conflito.

[2] O ponto 3 do Acordo Geral que define a agenda de diálogo reza textualmente: “3. Fim do conflito. Processo integral e simultâneo que implica: 1. Cessar-fogo e das hostilidades bilateral e definitivo. 2. Entrega das armas,. Reincorporação das FARC-EP à vida civil – no econômico, social e político – de acordo com seus interesses. 3. O Governo Nacional coordenará a revisão da situação das pessoas privadas da liberdade, processadas ou condenadas por pertencer ou colaborar com as FARC-EP. 4. Paralelamente, o Governo Nacional intensificará o combate para acabar com as organizações criminosas e suas redes de apoio, incluindo a luta contra a corrupção e a impunidade, em particular contra qualquer organização responsável por homicídios e massacre ou que atente contra defensores de direitos humanos, movimentos sociais ou movimentos políticos. 5. O Governo Nacional revisará e fará as reformas e os ajustes institucionais necessários para fazer frente aos desafios da construção da paz. 6. Garantias de segurança. 7. No marco do estabelecido no Ponto5 (Vítimas) deste acordo, se esclarecerá, entre outros, o fenômeno do paramilitarismo. A assinatura do Acordo Final inicia este processo, o qual deve desenvolver-se em um tempo prudente acordado pelas partes”.

[3] SANTOS CALDERON, Enrique. Assim começou tudo. 2014. Pág. 124.

[4] “O ponto de entrega das armas foi, não por acaso, o mais demorado e complicado nos encontros exploratórios. Não aceitaram que figurasse o termo rendição no texto do acordo” ibid.Pág. 124.

[5] Exército Popular de Libertação, por sua sigla em inglês. Braço armado do Partido Comunista do Nepal-Maoísta (CPN-M por sua sigla em inglês) guerrilha que desenvolveu a chamada Guerra Popular entre 1996 e 2006 no país asiático.

[6] Como afirma o próprio Pinzón em sua reportagem na revista Dinero do mês de janeiro: “Quando nos referimos ao Ministério de Defesa da Colômbia estamos falando, talvez, de uma das maiores empresas do país e da região, e a maior empregadora da Colômbia: meio milhão de pessoas – militares, policiais e civis –, um orçamento da ordem dos $28 bilhões, um setor que possui 10 empresas concentradas no Grupo Empresarial e Social da Defesa – GSED –, com rendas de $7 bilhões, obviamente uma porcentagem importante em termos de pensões, porém que gerou em fins de 2014 rendimentos superiores a $180.000 milhões e exportações próximas a $30.000 milhões. Além disso, conta com a que pode ser a maior EPS do país, com cerca de 1,4 milhões de usuários”. Cerca de 65% dos rendimentos correspondem a contribuições da Nação, o que implica um crescente investimento privado neste conglomerado militar. Artigo MINDEFESA INC. Revista Dinero. Edição 461. Janeiro de 2015.

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