A história inexplicável do povo do Vietnam contemplada e evocada por Wilfred Burchett

imagemMiguel Urbano Rodrigues

O grande jornalista australiano Wilfred Burchett conheceu profundamente a história e o povo vietnamita e os seus mais destacados dirigentes do nosso tempo. As condições e características históricas que permitiram que tivesse sempre resistido e vencido agressões externas e a ocupação do seu país constituem uma notável singularidade desse povo heróico, e o longo antecedente do seu mais glorioso feito: a derrota militar imposta à mais poderosa potência imperialista, os EUA. Um exemplo e um património que todo o revolucionário sincero deve procurar conhecer, na sua singularidade e na sua universalidade.

Catapulta para a liberdade – como sobreviveram os vietnamitas.
O título desse livro de Wilfred Burchett, editado em Portugal pela Caminho em 1979, é demasiado extenso, não atrai. Mas a obra agarra o leitor desde o início.

Conheci Burchett numa das suas visitas a Portugal após a Revolução de Abril sobre a qual escreveu um livro e muitos artigos.

Ele quis ir ao Alentejo para visitar UCPs da Reforma Agraria. Tive a oportunidade de conviver com ele durante dois dias. Falamos muito de Revolução e contra-revolução madrugada adentro, numa cooperativa de Montemor-o Novo onde pernoitamos apos uma jornada exaustiva.

Estabelecemos uma relação amistosa e passou a colaborar gratuitamente em o diario. Enviou-nos trabalhos seus até 1983, ano em que faleceu em Sofia, na Bulgária.

No prefácio de Catapulta para a Liberdade, o jornalista britânico James Cameron discorda do título. O Vietnam, afirma, «não catapultou, aguentou».

Burchett foi um dos jornalistas revolucionários mais perseguidos pelo imperialismo. O governo australiano retirou-lhe o passaporte e a nacionalidade. Durante anos viajou com um documento vietnamita. Posteriormente, Fidel Castro entregou-lhe um passaporte cubano.

VINTE SECULOS DE INVASÕES
Burchett não escreveu uma história da guerra de libertação do Vietnam.

Tenta explicar porque eles venceram sempre. Ao longo de dois mil anos foram invadidos por nações muito mais poderosas.

Os chineses ocuparam o país durante seculos. Invadiram-no umas cinquenta vezes. Foram derrotados e expulsos.

Os mongóis, que em cavalgada prodigiosa tinham esmagado todos os adversários do Adriático ao Pacifico, construindo um império gigantesco, foram derrotados em três invasões e expulsos.

Os tailandeses também invadiram e foram expulsos.

Os franceses ocuparam o país durante oito décadas; foram derrotados e retiram-se.

Os americanos também ali sofreram uma derrota militar. Mantiveram-se durante dez anos no sul do país, cometeram crimes hediondos e retiraram-se derrotados e humilhados.

Burchett pergunta como foi possível aos vietnamitas defender vitoriosamente, durante tantos seculos, a sua pátria, “o seu estilo de vida, o seu idioma, o seu humor e a sua maneira de pensar?»
O seu livro é sobretudo uma tentativa de resposta a essa questão embaraçosa.

Subindo pelo tempo, recordou os antepassados dos atuais vietnamitas. Eles principiaram a cultivar o arroz um milénio antes dos chineses. Construíram diques e escavaram canais para irrigação antes dos sumérios e dos babilónios
AS FRONTEIRAS DO ABSURDO
Transcorreram mais de 40 anos da tomada de Saigão e os historiadores não conseguiram ainda explicar o inexplicável. Não há precedentes na história da humanidade para epopeia comparável à vietnamita: a vitória politica e militar de um pequeno povo, pobre e economicamente atrasado, sobre os Estados Unidos, a mais poderosa e rica potencia mundial.

Burchett seleciona episódios na cadeia ininterrupta de guerras justas. Evoca o choque com os guerreiros do imperador mongol Kubilai Khan e com os ming chineses.

Dedica dois capítulos à «presença» dos franceses. Eles chegaram como conquistadores, alegando que vinham em missão civilizadora. Mentiram. Os vietnamitas eram em meados do seculo XIX um dos povos mais cultos da Ásia. O sistema educacional era democrático. Privilegiava a literatura e formava professores, economistas, diplomatas, filósofos, funcionários competentes. Na Idade Média, a qualidade do ensino nas universidades vietnamitas era comparável à das europeias. Os colonialistas franceses destruíram esse sistema educacional, semearam o analfabetismo, saquearam os recursos naturais e impuseram uma administração brutal. Nas escolas diziam às crianças vietnamitas que descendiam dos gauleses e forçavam-nas a aprender os nomes das cidades, dos rios, das montanhas da França, mas não os do seu país.

Burchett, que percorreu dezenas de vezes o Vietnam de Hanói ao delta do Mekong, do Planalto Central às planícies costeiras, acompanhou como jornalista a batalha de Dien Bien Phu cujo desfecho anunciou o fim da dominação francesa.

Pham Van Dong, o ex-presidente, companheiro de Ho Chi Minh, lembra que ao longo do tempo o seu povo travou uma luita permanente contra catástrofes naturais e os invasores, mas venceu sempre.

O Vietnam foi o primeiro estado a estabelecer o serviço militar obrigatório, criando uma reserva de camponeses–soldados que guardavam as armas nas próprias casas.

As proezas dos seus heróis roçam o sobre-humano. Trieu Qung, Le Duk Tho, Giap e Van Tien Dung trazem à memória os heróis míticos da guerra troiana. Eles e outros foram os Aquiles, Heitores, Ulisses e Eneias do Vietnam. Com a diferença de que na pátria de Ho Chi Minh, sobrepondo-se a todos, houve sempre um herói coletivo: o povo.

GIAP, ESTRATEGO GENIAL
Vo Nguyen Giap, o estratego que muitos historiadores militares consideram superior a Napoleão, é tema de um capítulo. Mas o estratego genial foi também um pensador que condensou nos seus livros reflexões sobre as suas vitórias, que são estudadas nas academias militares do Ocidente. O Problema Camponês, por exemplo, é um trabalho analítico do qual transparece a ilimitada confiança do autor no seu povo, nomeadamente no campesinato, como força mais poderosa do que as armas. O estudo das três campanhas contra os mongóis influenciou o seu conceito de «guerra do povo» que ele elevou a um nível de perfeição.

Burchett recorda que ouviu de Giap uma pormenorizada descrição da batalha de Dien Bien Phu. A preparação foi lenta, porque o transporte de armas pesadas através de uma região inóspita foi muito difícil. As tropas francesas encontravam-se no fundo de um vale apertado entre montanhas. Quando Giap ocupou as alturas e fechou o cerco, os franceses ficaram presos numa ratoeira. A sua capitulação foi apenas uma questão de tempo.

Burchett, que o conheceu intimamente, conta que Giap nas suas campanhas, incluindo a do Tet contra os americanos, forçou os adversários a opções contraditórias que os conduziram à derrota: «se dispersavam ele obrigava-os a concentrarem-se; se optavam pela concentração ele obrigava-os a dispersar, conservando sempre a iniciativa estratégica».

O TIO HO
Ho Chi Minh merece uma atenção especial de Burchett.

«Revelou-se – sublinha – o herói que a situação pedia. Não se pode escrever nada coerente a respeito do Vietnam de hoje sem compreender o que foi a obra de Ho Chi Minh, aquilo que ele fez para tornar o Vietnam e os vietnamitas naquilo que são hoje. O Tio Ho representou a síntese dos grandes patriotas da história multisecular do seu país».

Raramente um líder em qualquer outra nação conquistou um prestígio tao grande e permanente como ele.

Jovem ainda, correu pelo mundo para tentar conhecer os homens e os povos. Fê-lo viajando num veleiro como ajudante de cozinheiro. Trabalhou então nos EUA, na Inglaterra e em França onde se tornou militante do Partido Comunista.

Nunca sentiu aversão pelo povo francês. No contacto com a classe trabalhadora percebeu que essa gente francesa, explorada pela burguesia, era estimável, muito diferente dos colonialistas que oprimiam a sua pátria.

Visitou também a União Soviética onde estudou marxismo, a ideologia que seria a do partido revolucionário que anos depois fundou no seu país.

Na China, como secretário de Mikhail Borodine, então representante da III Internacional junto de Chiang Kai Chek, aprendeu muito.

Quando o sucessor de Sun Yat Sen começou a massacrar os seus ex.aliados comunistas, Ho passou à clandestinidade, desenvolvendo um intenso trabalho de formação de quadros que depois seguiam para o Vietnam. Mas acabou por ser preso e sofreu horrores nos presídios da ditadura de Chiang.

Transcorreram quase vinte anos até ao dia em que Ho considerou estarem reunidas as condições mínimas necessárias para iniciar a luta armada contra os franceses Segundo ele, a preparação política era insuficiente e as concepções militares estavam erradas, os quadros careciam de formação para uma luta prolongada.

Uma das virtudes do revolucionário deve ser a paciência.,
Para o Tio Ho o êxito da primeira ação devia ser decisivo de modo a empolgar todo o povo. E assim aconteceu.

Quando em Dezembro de 1944 Giap comandou na província de Cao Bang o ataque a dois fortes franceses, apoderando-se todas as armas e equipamento das guarnições, essa vitoria teve uma imensa repercussão. A data ficou a assinalar o nascimento do futuro Exercito Popular do Vietnam.

Foi o início de uma luta armada, primeiro contra os franceses, depois contra os americanos, que somente terminaria em Abril de 1975,trinta anos depois.

O DESAFIO VITORIOSO AO IMPOSSIVEL
Apos o Acordo de Genebra de 1954 que reconheceu a independência da Republica Democrática do Vietnam no Norte e manteve a monarquia no Sul, os Estados Unidos, inconformados com a derrota da França, decidiram intervir, opondo-se à reunificação do país.

Uma guerra devastadora que abalaria o mundo principiou com a chegada dos conselheiros militares americanos. Na realidade eram tropas de combate, mais de 22.000 oficiais e soldados. Posteriormente começou a intervenção direta, oficial, por decisão do presidente Johnson, aprovada pelo Congresso
Os EUA cometeram no país crimes monstruosos. Numa guerra genocida destruíram centenas de aldeias, massacraram centenas de milhares de vietnamitas, queimaram florestas com napalm, envenenaram terras férteis e rios com produtos tóxicos, patrocinaram o assassínio do presidente Ngo Dinh Diem.

No auge da intervenção o corpo expedicionário americano superou o meio milhão de homens.

Mas ante a incapacidade de obter a vitória fácil que os generais do Pentágono tinham previsto, os invasores começaram a bombardear Hanói.

Acumularam derrota sobre derrota.

A solidariedade com o povo do Vietnam martirizado ganhou uma dimensão mundial. As manifestações contra a guerra, exigindo a Paz, mesmo nos EUA, adquiriram uma amplitude gigantesca.

Washington acabou por se sentar à mesa das negociações com os delegados vietnamitas
A retirada das últimas tropas americanas ficou assinalada por situações caóticas. O presidente Thieu já tinha alias fugido para Taiwan.

O escritor australiano dedica os últimos capítulos à fase final da guerra de libertação.

Washington acreditava que o Sul se poderia manter sem a presença militar americana. O governo de Saigão contava com um exército de 1.300.000 homens, dotado das armas mais modernas, e de uma força aérea poderosíssima. A desproporção de forças era transparente.

Mas, uma vez mais, a marcha da Historia desmentiu os computadores do Pentágono.

Ho Chi Minh e Giap admitiam que a vitória sobre Saigão poderia tardar dois anos. Enganaram-se.

A chamada Ofensiva da Primavera, em 1975, começou no Planalto Central, o que surpreendeu o governo de Thieu. Numa única batalha, em Buan Me Thuot, o exercito de Saigão foi esmagado e as forças da Região Militar do Planalto Central foram totalmente destruídas na sua fuga para as planícies costeiras,
Os acontecimentos precipitaram-se. Uma serie de fulminantes vitórias conduziram o Exercito Popular, então comandado por Van Tien Dung, outro grande estratego, às portas de Saigão.

A cidade caiu a 30 de Abril.

Ho Chi Minh dissera no seu testamento que finda a guerra «temos de construir o nosso país dez vezes mais belo».

Burchett absteve-se de prever o futuro. Mas a concretização desse novo desafio será ainda mais difícil do que a grande saga popular de seculos de guerras sempre vitoriosas contra a lógica da Historia.

Serpa, Março de 2016

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