Um desfecho melancólico: notas sobre o momento histórico e os desafios da esquerda
Por Plínio de Arruda Sampaio Junior.
I. A derrocada do governo de conciliação de classe e a ascensão da República dos Delinqüentes
Encerrando um período de relativa estabilidade social, econômica e política, iniciado em 2003 com a chegada de Lula à presidência da República e consolidado em 2005 com a recuperação do crescimento, a sociedade brasileira assistiu, a partir de 2013, ao crescente aumento da efervescência social; à inflexão do ciclo de expansão dos negócios que havia propiciado um modesto dinamismo econômico, após décadas de marasmo; e à acelerada decomposição do pacto político que havia viabilizado a transição negociada do regime militar para o Estado de direito. Desde então, o fim da letargia social, o espectro de uma estagnação de longa duração e a exacerbação da instabilidade política acirraram a luta de classes.
O temor de que a crescente onda de inquietação social pudesse fugir do controle e abrir brechas para a emergência das classes subalternas no cenário histórico(como ocorreu na surpreendente rebelião urbana de 2013)alarmou as classes dominantes em relação ao risco de uma insubordinação dos pobres. As concessões feitas às classes subalternas teriam ultrapassado o limite do razoável, colocando na ordem do dia a urgência de conter o ímpeto das reivindicações sociais e cortar pela raiz o processo de ascensão das massas. Atiçados pelos grandes veículos de comunicação de massa, com a luz verde da grande burguesia, os bem de vida partiram para a ofensiva.
O novo contexto histórico aguçou a guerra fratricida entre as alas esquerda e direita do establishment. Na ausência de discrepâncias substantivas de projeto político -posto estarem ambos perfeitamente enquadrados nos parâmetros mais gerais do neoliberalismo – a luta entre os partidos da ordem pelo controle do Estado assumiu a forma de uma acirrada disputa para definir quem seria o operador político mais credenciado para administrar o ajuste do Brasil às novas exigências do capital, internacional e nacional, em tempos de crise. Para além das paixões cegas que alimentam falsos antagonismos, a diferenciação entre as duas facções que polarizam a disputa política girou em torno da forma de combinar “cooptação” e “força bruta” como mecanismos de dominação das classes subalternas.
Na guerra para decidir quem ficaria no comando do Estado, a primeira batalha foi vencida pela ala moderada do partido da ordem, com a reeleição de Dilma Rousseff para a presidência da República em 2014. Foi uma vitória de Pirro. Ao adotar o programa econômico de seu adversário, Dilma isolou-se de sua base social e abriu caminho para uma contraofensiva reacionária. De tanto ceder à chantagem do mercado e da fisiologia, a presidente acabou comprometendo seu próprio lugar na coalizão liberal-fisiológica. O vazio político gerado pelo esvaziamento de sua autoridade foi ocupado por Eduardo Cunha e Michel Temer. A sua sorte foi definitivamente selada quando, contrariando o Planalto, o PT decidiu que seus deputados não apoiariam o presidente da Câmara dos Deputados na Comissão de Ética. Antes que Dilma tivesse completado quinze meses de seu segundo mandato, sua base de sustentação parlamentar deslocou-se ainda mais para a direita e o governo ruiu. O Supremo Tribunal Federal abençoou o processo. A democracia de baixíssima intensidade revelava-se ampla demais para as exigências da situação. A burguesia teve de recorrer a uma forma de governo abertamente espúria.
A queda de Dilma foi assimilada pelo conjunto da sociedade sem comoção. Para além de ações isoladas de alguns movimentos sociais, a maioria da população permaneceu apática aos eventos que agitavam Brasília. Um desavisado que chegasse ao país sequer perceberia que a chefe de Estado acabava de ser deposta. A docilidade do PT foi surpreendente. Não houve nem um esboço de resistência. Dilma deixou o Planalto de maneira protocolar. Entre os dirigentes e parlamentares do PT, a energia dedicada à batalha pela narrativa do golpe foi superior ao esforço de evitá-lo. No momento decisivo, Lula fingiu-se de morto, mais preocupado em negociar sua própria situação com os futuros donos do poder do que em confrontá-los. Com a honrosa exceção do Advogado Geral da República, José Eduardo Cardoso, que se jogou de corpo e alma na defesa “do cumprimento do devido processo legal”, os demais componentes do governo parecem não ter alterado a rotina, a começar pela própria presidente, que, mesmo nas piores horas da crise, não abriu mão de seus exercícios matinais. A imagem de Dilma pedalando placidamente pelas vizinhanças do Alvorada, enquanto seu destino era decidido no covil do Congresso Nacional, é uma metáfora de sua falta de estatura para o cargo. A presença de parlamentares do PT, expoentes da batalha contra o impeachment, confraternizando com parlamentares da tropa de choque dos golpistas, na festa Junina oferecida pela ministra recém deposta Kátia Abreu, revela a promiscuidade e a leviandade dos atores do drama.
O afastamento da presidente encerrou melancolicamente treze anos de ilusão de que a esperança venceria o medo. O sonho de que um governo de conciliação de classes seria capaz de criar um Brasil para todos terminou em pesadelo. Os ventos fortes que levaram Lula ao poder no início dos anos 2000 não foram aproveitados para romper o círculo de ferro do capitalismo dependente. O melhorismo petista não questionou as estruturas responsáveis pela perpetuação do status quo. Os nexos inextricáveis entre negócios, segregação social e dependência externa permaneceram incólumes, e as mazelas do subdesenvolvimento reapareceram com força redobrada. Da noite para o dia, o sentimento triunfalista de que o Brasil caminhava para o desenvolvimento sustentável deu lugar à sensação generalizada de que, na verdade, o país afunda no descalabro.
Em nome da ordem e do progresso, os aventureiros que assumiram o poder, sem nenhuma legitimidade para radicalizar uma política que havia sido rejeitada nas urnas, partiram com voracidade contra os direitos dos trabalhadores, as políticas sociais e a soberania nacional. Os ministérios econômicos foram entregues à sanha do mercado e os demais, aos apetites da fisiologia. A altíssima coincidência de nomes-chaves entre os próceres que compõem o ministério de Temer e os que fizeram parte das administrações petistas evidencia que o novo governo não é a negação do anterior, mas sua metástase. Um é consequência do outro. Ao dar as costas para seus eleitores, Dilma abriu a Caixa de Pandora e liberou as taras do capital. Ao levar ao paroxismo a terceirização do governo em favor do PMDB, o PT tornou-se supérfluo. Tornando-se mera peça decorativa, Dilma perdeu a credencial para permanecer no Planalto. A radicalização do ajuste neoliberal requer a ação de um Estado de Exceção abertamente autocrático. A gritante discrepância entre a imoralidade e absoluta falta de compostura do “andar de cima” e o rigor e disciplina exigidos do “andar de baixo” deve intensificar ainda mais a luta de classes.
Para além das bravatas para consolar militantes frustrados, a decisão de manter as alianças políticas e eleitorais (em âmbito estadual e municipal) com os partidos golpistas evidencia a plasticidade e desfaçatez com que o PT aceitou a nova realidade. O compromisso de fazer uma “oposição responsável”, comprometida com a “racionalidade econômica” e com o “respeito às instituições”, reitera a identidade do PT com os imperativos do capital. Ao sancionar a violência institucional de que foi vítima, reconhecendo-a como um fato consumado que, por mais paradoxal que seja, faz parte das regras do jogo, o PT acatou os parâmetros democráticos ainda mais rebaixados de um Estado de exceção que não hesitará em apelar para novas violências e fazer o que for necessário para garantir a estabilização da economia e a pacificação da nação. Incorporando definitivamente o espírito de seus algozes, Dilma caiu enaltecendo a Lei de Responsabilidade Fiscal e fazendo juras de fidelidade às exigências do mercado. Num esforço desesperado para voltar ao poder, chegou a afirmar que manteria o famigerado Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda. Em plena recessão, a patética reiteração do princípio liberal do equilíbrio fiscal como clausula pétrea de um governo responsável legitimou o processo de criminalização de toda e qualquer gestão econômica que não coadune com os ideais da doutrina neoliberal – o discurso ideológico que, por ironia do destino, fundamentou a farsa institucional que justificou a sua deposição. O PT encerrou seu ciclo no poder central rendido ao pragmatismo do fim da história e de tudo que o acompanha. Na oposição, o partido de Lula será o complemento necessário e funcional da situação. No próximo período, caber-lhe-á um duplo papel: evitar a qualquer custo o aparecimento de forças políticas que possam credenciar-se como alternativas antissistêmicas; e servir como reserva política estratégica na eventualidade de um agravamento da crise nacional exigira volta do grande líder como forma de apaziguar as massas exaltadas. Para tanto, o partido terá apenas que adaptar sua estratégia política – impostura à esquerda e usurpação à direita – às novas circunstâncias da vida nacional.
II. A batalha pela narrativa da crise
As narrativas canhestras, que racionalizam a posição dos antagonistas engalfinhados na disputa que levou à deposição de Dilma, em nada contribuem para a compreensão das graves contradições que condicionam a vida nacional.
Os que atribuem a crise econômica brasileira a desequilíbrios fiscais, supostamente provocados por créditos suplementares tachados de “pedaladas fiscais”, como propõe o simplório discurso dos liberais tupiniquins, ecoado dia e noite nos meios de comunicação, ignoram que a crise fiscal não é causa, mas efeito da crise econômica. A justificativa da deposição de Dilma como passo necessário para a solução da crise econômica e recuperação do crescimento ignora que a austeridade fiscal diminui a demanda agregada e, em consequência, reforça a tendência recessiva que deprime as expectativas de investimento dos empresários. A alegação de que os créditos suplementares – as “pedaladas fiscais” – caracterizariam crime de responsabilidade desconsidera que a prática é corriqueira na administração pública brasileira, generalizada em todas as esferas de governo, e não é tipificada na Constituição como motivo para a deposição de uma autoridade eleita.
O discurso moralista que imputa a corrupção generalizada ao aparelhamento do Estado pelo PT omite que Lula e Dilma apenas sancionaram a promiscuidade entre o público e o privado de seus antecessores. A corrupção sistêmica é uma característica inerente ao Estado brasileiro, permeia todos os poros da administração pública e envolve todos os partidos da ordem. O enaltecimento dos promotores federais que conduzem a operação Lava Jato e do Juiz Sérgio Moro como figuras acima do bem e do mal, comprometidas com o saneamento da política nacional, omite o fato gritante de que o rigor com os malfeitos do PT é proporcional à condescendência com os malfeitos de seus opositores. Na melhor tradição da justiça brasileira, a República de Curitiba opera segundo a norma “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. Os que esperam uma solução jurídica para a grave crise ética que assola a nação fazem lembrar as aventuras fantásticas do Barão de Münchhausen, que se salvou do pântano onde afundava, puxando-se pelos cabelos. A corrupção faz parte da regra do jogo e o poder judiciário não está acima da Lei. Problemas políticos, relacionados com a forma de organização do poder, só podem ser resolvidos com decisões políticas. Sem a corrupção sistêmica, a dominação burguesa entra em colapso.
Em contrapartida, os que reduzem a crise política a uma crise de governabilidade, provocada pela falta de escrúpulos de uma oposição golpista que, numa conjuntura econômica delicada, apostou todas as fichas no “quanto pior melhor”, como repete a ladainha petista, escondem o fato notório de que o governo Dilma caiu porque foi incapaz de administrar suas próprias contradições – problema potencializado pela surpreendente inépcia de seu alto comando. Ao subordinar a razão de Estado aos imperativos do grande capital, o governo petista ficou sujeito à desestabilização assim que sua estrita funcionalidade ao mercado ficou comprometida. Ao vincular sua base de sustentação parlamentar ao que há de mais corrupto e fisiológico na política brasileira, ficou sujeito à fuga das ratazanas assim que o barco começou a fazer água. Ao manter intacto o monopólio dos grandes meios de comunicação, na ingênua suposição de que a docilidade com os maganos da mídia teria como contrapartida sua relativa neutralidade na guerra pelo poder, ficou completamente desarmado para impedir sua execração pública. Por fim, e, sobretudo, ao negar a organização independente dos trabalhadores como força motriz das transformações sociais, o PT fomentou a fragmentação e o desalento das massas, comprometendo a mobilização da única força social potencialmente capaz de enfrentar uma conspiração urdida nas altas esferas do poder.
A narrativa de que a presidente foi vítima de um “golpe” não é falsa, mas omite o fato de que o primeiro golpe – o estelionato eleitoral – foi cometido pela própria Dilma ao jurar na campanha eleitoral que não faria o ajuste fiscal “nem que a vaca tossisse”. Denunciar o segundo golpe, ocultando o primeiro, deixa na penumbra o fato de que a verdadeira vítima dos atentados contra a democracia é a classe trabalhadora, que votou de maneira inequívoca contra o ajuste neoliberal. Na conspiração contra os direitos dos trabalhadores, Dilma e Temer são cúmplices, pois o segundo golpe apenas arrematou o primeiro. Mais ainda. A denúncia do golpe parlamentar como um atentado à democracia, sem a devida ponderação sobre o caráter restrito da democracia brasileira, não permite perceber a essência da crise que abala o sistema representativo: a impermeabilidade do Estado brasileiro às demandas populares. Supervalorizar os aspectos formais da democracia brasileira, sem a devida explicitação sobre seu conteúdo real, é uma forma capciosa de esconder os atentados perpetrados pelo PT contra a classe trabalhadora e manter o debate político hermeticamente enquadrado na lógica fechada do cretinismo parlamentar.
III. A crise em perspectiva histórica
Postas em perspectiva histórica, a derrocada do governo do PT e a ascensão da República dos Delinquentes devem ser vistas como um capítulo da severa crise econômica e política que abala a vida nacional. Antes de dificuldades conjunturais, que poderiam ser resolvidas num curto espaço de tempo com a substituição de administradores inoperantes e a adoção de medidas técnicas e institucionais, os problemas brasileiros refletem contradições estruturais, complexamente determinadas por forças externas e internas à sociedade nacional. Para o bem ou para o mal, tais contradições não serão resolvidas sem transformações de grande envergadura nas estruturas econômicas, sociais e políticas.
A perspectiva de um cenário econômico de grande instabilidade, que coloca no horizonte a possibilidade de uma estagnação de longa duração, resulta fundamentalmente da absoluta impotência do Brasil para defender-se dos efeitos devastadores da crise que paralisa a economia mundial. Após décadas de crescente exposição à fúria da concorrência global, a economia brasileira perdeu os elos estratégicos de seu sistema industrial e comprometeu a eficácia de seus centros internos de decisão, ficando sem meios objetivos e subjetivos para colocar em prática uma política econômica capaz de defender os interesses nacionais. Sem mecanismos endógenos de expansão da demanda agregada, a mola propulsora do crescimento passou a depender de fatores exógenos à economia nacional. Nessas condições, enquanto o comércio internacional permanecer deprimido, não há como recuperar de maneira sustentável o processo de geração de renda e emprego. Ao relegar o Brasil a uma posição ainda mais rebaixada na divisão internacional do trabalho, a “integração profunda”, comandada pelos Estados Unidos, deve agravar a dependência comercial do país em relação à expansão da demanda de produtos agrícolas e minerais no mercado internacional.
A expectativa de uma crescente instabilidade política é determinada pela crise estrutural que abala o sistema de representação. Ao evidenciar a presença de um gigantesco mal-estar social, a intensificação da luta de classes coloca em questão a funcionalidade do pacto de poder que viabilizou a transição lenta, segura e gradual do regime militar para a democracia de baixa intensidade da Nova República. O caráter estrutural da crise política fica patente na total incompatibilidade entre os princípios que fundamentaram a Constituição de 1988 – a conquista de direitos da cidadania, a ampliação das políticas públicas e a afirmação da soberania nacional – e as diretrizes que orientaram a ofensiva neoliberal iniciada por Collor, consolidada por Fernando Henrique Cardoso e continuada por Lula e Dilma – a investida do capital contra os direitos dos trabalhadores, o ataque do rentismo sobre os fundos públicos e o avanço do mercado sobre o Estado. As Jornadas de Junho de 2013 acirraram as contradições. Os jovens foram às ruas para exigir o cumprimento da Constituição. No entanto, os imperativos do capital em tempo de crise apontam em direção contrária. O caráter irreconciliável das vontades políticas que polarizam a luta de classes não deixa margem para acomodação. A acelerada decomposição do governo Dilma e o caráter espúrio de seu sucessor expressam o antagonismo irreparável entre vontades políticas inconciliáveis: a exigida nas ruas e nas urnas e a exigida pelo chamado mercado, manifestada nos ultimatos das agências internacionais de avaliação de risco e na ladainha neoliberal martelada dia e noite nos grandes meios de comunicação. Enquanto tal antagonismo não for resolvido, de uma forma ou de outra, não há a menor possibilidade de que o Brasil possa vivenciar um novo ciclo de expansão e paz social.
Dentro dos parâmetros da ordem global, a solução para a crise brasileira passa pela reciclagem do padrão de acumulação liberal-periférico e pela recomposição do padrão de dominação autocrático-burguês.
Nos marcos do liberalismo, as crises econômicas são enfrentadas invariavelmente com um aprofundamento das reformas liberais. O fundamental é ajustar a economia e a sociedade aos novos imperativos do padrão de concorrência global ditado pelo grande capital. No curto prazo, o ajuste coloca a necessidade de recompor a taxa de lucro do capital e abrir novos negócios para os capitais excedentes, com políticas de arrocho salarial, cortes de gasto público, diminuição da carga tributária sobre as empresas, recomposição do rentismo lastreado em dívida pública, ampliação da privatização e aprofundamento do processo de liberalização. No longo prazo, o ajuste consiste em adequar a economia brasileira à sua nova posição na divisão internacional do trabalho, o que coloca no horizonte a necessidade de aumentar o grau de especialização das forças produtivas, reduzir a soberania do Estado nacional e rebaixar o nível tradicional de vida dos trabalhadores, adaptando-o à condição mais precária de uma economia primário-exportadora. Entre o curto e o longo prazo, a sociedade fica no limbo, sujeita à temporalidade abstrata do capital monopolista em tempos de crise, cuja essência consiste no tempo necessário para a destruição do excedente absoluto de capital que emperra a retomada do processo de acumulação. Em outras palavras, no médio prazo, a economia fica sujeita à estagnação por prazo indeterminado. Ao acelerar e aprofundar o processo de reversão neocolonial, o projeto do grande capital coloca no horizonte a transformação definitiva do Brasil numa megafeitoria moderna.
À ofensiva do capital sobre o trabalho no plano econômico corresponde ofensiva simétrica no plano político. A fim de harmonizar os interesses da burguesia brasileira com os do capital internacional, as classes dominantes terão de aprofundar a liberalização e a internacionalização da economia, esvaziando ainda mais a soberania nacional. O novo padrão de satelitização deve obedecer às diretrizes dos acordos bilaterais de livre comércio, impulsionados pelos Estados Unidos. Com a finalidade de evitar a rebeldia das massas e perpetuar a passividade das classes dominadas, o novo padrão de dominação deverá aprofundar o Estado de Exceção, intensificando o processo de criminalização das lutas sociais e políticas. O sentido mais geral desse movimento já foi dado pela política antiterrorista aprovada por Dilma Rousseff nos estertores de seu governo. Por fim, para dotar a economia brasileira de um mínimo de estabilidade, protegendo-a das instabilidades provocadas pela concorrência global, sobretudo de seus efeitos catastróficos sobre os agentes econômicos mais débeis, a relação entre os setores modernos e atrasados que compõem o parque produtivo nacional terá de ser redefinida. Os setores modernos de alta produtividade expostos à concorrência global serão regidos pelos padrões formais estabelecido sem acordos internacionais, enquanto os setores anacrônicos de baixa produtividade, associados ao fornecimento das grandes empresas exportadoras e ao atendimento do mercado interno protegido da concorrência de importados, serão relegados à crescente informalidade. No momento, é impossível vislumbrar a equação política capaz de resolver essas questões. Quando o velho resiste à morte e o novo não tem força para nascer, a sociedade fica sujeita a forças indeterminadas e prevalece uma grande confusão.
IV. O Desafio da esquerda socialista
Os imperativos do capital em tempos de crise estrutural colocam na ordem do dia a necessidade de uma ofensiva sobre o trabalho. Dentro dos parâmetros do liberalismo, as alternativas da sociedade ficam restritas à forma de graduar o ritmo e a intensidade do ajuste neoliberal. Não há, todavia, nenhuma margem para questionamento sobre o sentido do ajuste – a retirada de direitos adquiridos e o aprofundamento do processo de reversão neocolonial. Para realizar seu desiderato, o capital tem um projeto político bem definido – o ajuste econômico; um método eficaz para implantá-lo – a terapia de choque que mobiliza a violência econômica e política como forma de submissão dos trabalhadores e usurpação da soberania nacional; e uma complexa organização política para executá-lo – o Estado de Exceção, como comitê executivo da burguesia.
As necessidades dos trabalhadores em tempos de ofensiva liberal colocam na ordem do dia a urgência de uma resposta prática que impeça o avanço da barbárie capitalista. A solução democrática para o impasse histórico em que o país se encontra passa, portanto, por uma completa ruptura com o padrão de acumulação liberal-periférico e com o padrão de dominação autocrático que lhe corresponde. Daí a urgência de um grande debate sobre o projeto político, o método e as formas de organização capazes de realizar tal tarefa. A questão torna-se ainda mais candente quando se leva em consideração o fato de que o programa que inspirou a luta da esquerda nas últimas décadas e que permanece hegemônico- o programa democrático-popular – parte da avaliação oposta.
A concepção de que existiriam condições objetivas e subjetivas para compatibilizar capitalismo, democracia e soberania nacional – a essência do programa democrático-popular – parte de dois supostos fundamentais: a convicção de que o Brasil possui as bases materiais de um capitalismo autodeterminado; e a crença de que, restabelecido o estado de direito, a luta de classes passou a ser regida por uma lógica baseada na busca do bem comum. A avaliação de que não existiriam obstáculos materiais e bloqueios políticos intransponíveis para a implantação da justiça social levou à conclusão de que o capitalismo não condenava fatalmente o povo brasileiro à pobreza.
Uma leitura equivocada da realidade histórica induziu as forças de esquerda a uma brutal subestimação das dificuldades que seriam encontradas para transformar a realidade. A superestimação do significado da industrialização pesada, que impulsionou o forte dinamismo da economia brasileira entre 1950 e 1980,levou à miragem de que existiria margem de manobra para combinar acumulação de capital, distribuição de renda e autonomia nacional. As esperanças geradas pelo volta dos militares aos quartéis alimentaram a ilusão de que finalmente a sociedade brasileira teria criado condições subjetivas para a realização de reformas sociais que redundassem em expressiva melhoria nas condições de vida do conjunto da população. O retrospecto das últimas quatro décadas não deixa, entretanto, margem a dúvida. Imerso num processo de reversão neocolonial, o Estado brasileiro ficou completamente refém dos negócios do grande capital, perdendo, de uma vez por todas, a capacidade de fazer políticas públicas subordinadas aos imperativos da universalização de direitos universais e às necessidades ditadas pelos interesses estratégicos da nação.
Para que a história não se repita como farsa, é preciso superar a teoria e a prática que levaram ao trágico naufrágio do PT. Enquanto os trabalhadores não se convencerem de que é impossível resolver os problemas fundamentais do povo sem uma ruptura radical com a ordem capitalista, a política permanecerá presa ao circuito fechado de escolhas binárias que não alteram o curso da história. Enquanto os trabalhadores não se convencerem de que é impossível romper a ordem estabelecida sem questionar o caráter restrito da democracia, a luta de classes permanecerá enquadrada nos marcos de uma institucionalidade perversa que esteriliza o potencial revolucionário das terríveis contradições que brotam em uma sociedade em acelerado processo de reversão neocolonial. Para estar à altura dos desafios históricos, o polo trabalho precisa materializar sua vontade política em um projeto simples e bem definido que tenha como norte a busca da igualdade substantiva – direitos já; precisa definir uma estratégica de luta capaz de enfrentar a terapia de choque – a ocupação, a desobediência civil e a rebelião das massas como centros nevrálgicos da luta de classes; e precisa construir uma organização que unifique todas as organizações de trabalhadores comprometidas com a busca da igualdade substantiva em um grande movimento pela revolução brasileira.
Texto originalmente escrito para a Revista Novos Temas, do Instituto Caio Prado.