Maria Orlando Pinassi: “As instituições foram assaltadas pelo capital”
Embasbacado com as armações de um Congresso absolutamente descolado da realidade da cidadania, o Brasil assistiu a segunda absolvição do presidente Michel Temer pelos seus legisladores, isso poucos dias depois da recuperação do mandato de Aécio Neves, ambos inequivocamente imiscuídos na teia da corrupção que tanta indignação causa. Na entrevista a socióloga e professora da UNESP Maria Orlanda Pinassi constata toda a desolação e lamenta que ainda veremos novos e variados capítulos de aprofundamento da barbárie generalizada.
“O propósito da Operação Lava Jato teve endereço: o sucateamento da Petrobrás, do pré-sal e das empreiteiras historicamente ligadas à exploração do setor energético do país. O objetivo sempre foi a privatização da empresa e suas subsidiárias, entregá-las ao capital internacional, do jeitinho que está acontecendo neste momento. O resto é pão e circo para os pobres de espírito e alienados que acham que o objetivo de Moro é o Lula”, contextualizou.
Tal como em entrevistas recentes, a socióloga endossa a noção de um papel cada vez mais impotente das esquerdas, incapazes de propor novos e atualizados debates e atada por uma fé na institucionalidade que beira o inacreditável diante de tantos resultados negativos.
“Sinceramente, não acho que as esquerdas joguem qualquer papel digno de nota há um bom tempo. Estão perdidas, sem direção, sem função, à deriva de um politicismo frouxo, teimando em fazer parte de um parlamento irremediavelmente apodrecido para as causas que julga defender. E, pior, insistem neste tom desafinado ao se jogarem nas articulações rumo a 2018”, criticou.
Fazendo coro a outros analistas, Pinassi coloca a polarização política dos últimos tempos, comum a outros países da vizinhança, como uma cortina que encobre o que de fato está em jogo.
“O quadro demonstra o equívoco cometido pelos apologetas do período anterior que defendiam a aliança dos trabalhadores com setores produtivos da burguesia interna (FIESP), supostamente insatisfeita com a hegemonia do capital financeiro, especulativo (…) É o fim do contrato social ou o que isso significou na tradição autocrática do Estado brasileiro”, sintetizou.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 30-10-2017.
Eis a entrevista.
Como você recebeu o resultado da votação da câmara que barrou a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer?
Nada surpreendente. Surpreenderia se o expediente utilizado por aquela gente para livrar Temer de seus crimes não tivesses se tornado tão corriqueiro. Não quero minimizar o fato, mas o episódio do dia 26 de outubro, tanto quanto o do dia 13 de julho, foi mais um espetáculo dantesco de um Congresso com o qual a política aliancista do PT convivia muito bem. Eram todos ou quase todos da base aliada. A diferença é que antes do impeachment havia um maior acanhamento e a delinquência não ficava assim tão evidente.
Se eu fosse weberiana, diria que aquelas figuras grotescas que estão lá em Brasília, decidindo as nossas vidas, desmontando cada um dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, direitos que resistiram aos ataques neoliberais das últimas décadas, correspondem ao tipo político ideal da crise estrutural do capital. Ao menos na periferia, onde a contrarrevolução produz os maiores e mais lesivos estragos, um bom exemplo são os políticos que professam esse tal de neopentecostalismo, uma paródia de mau gosto do protestantismo de Lutero.
Além disso, vejo ainda dois problemas gigantescos ligados à questão. O primeiro é a desfaçatez com que se usa, à luz do dia, dinheiro público para comprar uma cambada de parasitas cínicos. São bilhões de reais negados às necessidades mais elementares da população em franco processo de empobrecimento, desproteção, desorganização e, depois destes espetáculos todos levados ao ar todos os dias em rede nacional, uma profunda e paralisadora desesperança.
Aqui reside o segundo problema que me parece ser o ovo da serpente, a semente de um fascismo que é popular e muito perigoso. Para explicar, sempre recorro a um trecho de Dostoievski em Recordações da Casa dos Mortos onde ele diz o seguinte: “quando um homem perde qualquer objetivo e qualquer esperança, não é raro que, por tédio, se transforme num monstro”.
Como se pode ver, o caso Temer, assim como o de Aécio e de outros tantos denunciados e acobertados pelo Congresso e demais instâncias jurídicas do país, têm consequências muito mais sérias do que se poderia supor à primeira vista. E as coisas não acontecem assim por mero acaso.
Como fica a Operação Lava Jato diante da sociedade com tal resultado?
A Operação Lava Jato cumpre muito bem o seu papel na intrincada urdidura que envolveu a transição do governo Dilma a Temer. É peça chave na articulação que promove a judicialização da política e a politização da justiça. Atende à demanda moral dos paneleiros que foram às ruas brandir palavras de ordem, quase sempre muito confusas, contra a corrupção. Movimentos idênticos pipocaram pela Venezuela, Argentina, Equador e são parte de um processo de desestabilização política na América Latina.
Sérgio Moro, o juiz impoluto, criação mítica, cuja carreira acadêmica foi realizada tão a jato quanto a operação que comanda, foi o muso desse movimento que entrou e saiu de cena tão rápido quanto durou o impeachment de Dilma. Moro e sua equipe (Dallagnol e Rodrigo Janot) distraem o público com seus intermináveis mandados de busca e apreensão, conduções coercitivas, prisões temporárias e prisões preventivas.
Suas operações se consolidam como a grande fonte das denúncias de crimes envolvendo a espúria (e óbvia) relação entre o público e o privado, todas comprovadas à exaustão. O problema, como disse anteriormente, é que as denúncias quase sempre são engavetadas nas instâncias que se seguem.
O propósito da Operação Lava Jato teve endereço: o sucateamento da Petrobrás, do pré-sal e das empreiteiras historicamente ligadas à exploração do setor energético do país. O objetivo sempre foi a privatização da empresa e suas subsidiárias, entregá-las ao capital internacional, do jeitinho que está acontecendo neste momento. O resto é pão e circo para os pobres de espírito e alienados que acham que o objetivo de Moro é o Lula.
Do lado das esquerdas, o que pensa do papel que jogaram de um ano pra cá?
Sinceramente, não acho que as esquerdas joguem qualquer papel digno de nota há um bom tempo. Estão perdidas, sem direção, sem função, à deriva de um politicismo frouxo, teimando em fazer parte de um parlamento irremediavelmente apodrecido para as causas que julga defender. E, pior, insistem neste tom desafinado ao se jogarem nas articulações rumo a 2018.
O rei está nu, e isso ficou claro já nas jornadas de 2013 quando as esquerdas organizadas foram às ruas empunhando timidamente suas bandeiras vermelhas e entrando em disputas vãs com os verde-amarelos. Depois, a barbárie não tardou e ela não é fenômeno exclusivamente político, muito menos passageiro. A barbárie emana do Congresso que atende às demandas do empresariado transnacionalizado e ataca todos os direitos da classe trabalhadora.
O resultado mais evidente é a formação de uma enorme massa de trabalhadores desempregados que vagueia pelo país e pelo exterior em busca de trabalho e da paga de um dia; de homens e de mulheres “flexíveis” que estão fora dos sindicatos, das lutas organizadas, dos grandes eventos. É dessa base social, formada de sujeitos resultantes do dilúvio, sujeitos pouco sedutores e muito diferentes dos idealizados historicamente que estão distantes. Eu arriscaria dizer que há um estranhamento mútuo entre essas massas e as esquerdas.
Podemos dizer que Lula, PT e CUT conseguiram domesticar os outros setores da esquerda brasileira?
Sim e não. Lula, o PT, a CUT e o MST cumpriram sua parte na domesticação de setores sindicalizados, da luta pela reforma agrária e da política parlamentar. Essa é a tríade que juntamente com as Pastorais reorganizou setores populares da sociedade brasileira dos anos de 1980, após duas décadas de regime civil-militar controlando o país. Já se falou muito sobre as políticas de consenso do lulismo e das consequências nefastas que provocaram sobre as lutas sociais, sobretudo quando o PT e seu largo entendimento de aliancismo assumiram o Planalto.
As esquerdas não alinhadas com tal projeto fizeram forte oposição ao modelo, mas sempre dentro da institucionalidade, seja sindical, político-partidária ou do movimento social de luta por terra e moradia. A linha sempre foi da menor resistência.
No entanto, as coisas mudaram, e muito. Tanto quando o PT, a CUT e o MST, as esquerdas, por seu antigo acomodamento na via pacífica, defensiva, esbarram justamente no esgotamento da institucionalidade. O Estado ultraneoliberal, burguês, ladrão de dinheiro e pilhador de direitos serve exclusivamente às demandas da burguesia e do capital em amplo espectro. Esta forma de plutocracia não tem mais nada a oferecer para as lutas reivindicativas, desenvolvimentistas e defensoras de princípios democrático-populares.
O quadro, enfim, demonstra o equívoco cometido pelos apologetas do período anterior que defendiam a aliança dos trabalhadores com setores produtivos da burguesia interna (FIESP), supostamente insatisfeita com a hegemonia do capital financeiro, especulativo. O projeto do capital em curso no Brasil traz todos os interesses burgueses entrelaçados e os contempla a todos, como, de resto, se fez no passado recente, apesar da cisão fictícia. Mas hoje tomaram de assalto todas as instituições para servi-los. É o fim do contrato social ou o que isso significou na tradição autocrática do Estado brasileiro.
Que desdobramentos você vislumbra para o país e sua população até o próximo período eleitoral? Acredita na hipótese levantada por Vladimir Safatle de que “2018 pode não existir”?
Não vejo nenhuma mudança de rumo no país, nem até e nem depois de 2018. Toda essa dinheirama gasta para manter Temer no cargo é sinal de que se pretende realizar todas as contrarreformas em curso dentro da “normalidade” instituída pelo que podemos chamar de contrarrevolução democrática.
De um modo ou de outro, há uma militarização montada no Brasil há já um bom tempo. Na verdade, ela nunca se recolheu, mesmo com a redemocratização dos anos de 1980. Mas, estou falando aqui de uma forma atual de militarização fortemente amparada em tecnologias de repressão. Sabemos que a periferia da periferia esconde muitas Faixas de Gaza. Os métodos utilizados lá, cá e no Haiti são os mesmos. Sabemos também que todo o empenho com a segurança pública é para inverter dinheiro no complexo industrial militar e reprimir bairros da classe trabalhadora mais pobre, mais vulnerável, mais atingida pela barbárie imposta pelo capital.
Além da delinquência que se refestela em Brasília e nos interstícios dos poderes estaduais e municipais, a “política da ordem” conta hoje com uma rede muito bem articulada de provocadores profissionais que impõem com base na violência e do constrangimento a escola sem partido, a homofobia, o racismo, o machismo, a intolerância com religiões afrodescendentes, o fim dos direitos humanos. O MBL, por exemplo, acabou de emplacar o fim da punição com zero nas redações do ENEM que violarem os direitos humanos.
Veja, qual ameaça popular se interpõe à conclusão desse governo ventríloquo do grande capital? Não vejo nenhuma. O que eu poderia destacar de verdadeiramente significativo são as lutas indígenas pela retomada de suas terras contra o hidro e agronegócio e a mineração. Essa é uma forma de enfrentamento não reivindicativa que se encontra fora da institucionalidade, que não espera nada do Estado e está sob o controle direto de suas lideranças que não estabelecem qualquer relação hierárquica com os demais membros envolvidos. Por isso mesmo eles estão sendo perseguidos e exterminados, sem que se erga um dedo sequer em solidariedade às suas lutas.
Neste momento, de avanço descomunal sobre os recursos naturais do país em que se alavanca todo um aprofundamento da lógica da produção destrutiva, se as esquerdas prestassem mais atenção a estas formas organizativas teriam muito mais a aprender do que a ensinar.
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