Deixar queimar, deixar morrer

imagemChristian Ingo Lenz Dunker

Blog da Boitempo

O incêndio e a destruição total do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro constituem uma incalculável e irreparável perda. E essa perda tem responsáveis, que não são apenas os actuais. Um dos sinais de uma política antipopular é o desprezo pela cultura. Não admira que alguns dos mais boçais representantes da reacção brasileira tenha acolhido quase com alívio este incêndio.

O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro é o símbolo e a realização material do governo Temer, mas também de uma forma de vida que parece ter chegado ao seu ápice, exibindo-se em todo seu poder e sua glória. Em agosto de 2018 o museu queimou 90% de seu patrimônio histórico ali acolhido.

Os Afrescos de Pompéia resistiram à erupção do Vesúvio no século 1 a.c., mas não resistiram a este novo jeito “administrativo” de governar que consiste em simplesmente não repassar verbas destinadas para um determinado fim. Como em Pompéia e Herculano, a escolha é seletiva e anônima, pois em meio à engrenagem negocial quem lembrará que o ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão veio a ocupar um Ministério antes extinto? Ou que o cargo de presidente do Instituto Nacional de Museus estava vago há dois anos? O corte desproporcional de recursos, mesmo em comparação com outras áreas, reduzidos à metade nos últimos cinco anos, torna este um incêndio criminoso.

Trata-se de um procedimento análogo ao que ocorre com o discurso da corrupção. Se alguém desvia verbas para outros fins, ainda que dentro do interesse público, isso caracteriza um crime; mas se alguém suspende o repasse de verbas para as universidades, como é o caso da UFRJ, mantenedora do Museu Nacional, isso é sentido apenas como “contenção de gastos”. É isso que significa redução do tamanho do Estado: deixar queimar a cultura, deixar morrer as pessoas. Sua realização material mais imediata é deixar queimar nossos bens simbólicos e depois lamentar a tragédia como se fosse outro que a tivesse levado a cabo. Está aberto ao público e à visitação geral esse novo monumento que são as ruínas do Museu Nacional. Junto com as ruínas da UERJ e do Hospital Universitário da USP elas formam parte do novo patrimônio histórico nacional, obra final dessa política que agora tenta se reeleger com DEM, PSDB, PMDB e quejandos. Bolsonaro, um dia depois do incêndio, diz que não há nada a fazer e que vai extinguir o Ministério da Cultura. Fica claro que não se trata apenas de limitação ocasional, mas de uma política afirmativa contra o que os museus simbolizam: memória e reflexão, cultura e estudo, crítica e pensamento. Quando apenas três partidos têm propostas para a cultura isso se torna ainda mais evidente.

Luiz Felipe Pondé deve estar contente com o fim dos jantares de “inteligentinhos” discutindo se a múmia de Atacama tinha 3 ou 4 mil anos de idade. Marco Antonio Villa teve seu dia de glória e sua noite dos cristais, quando queimaram-se os últimos 30 crânios dos índios Botocudos, esses devastadores de florestas, nômades malvados. A instituição científica mais antiga do país, criada em 1818 por Dom João VI, só podia ser de esquerda, pois estava sendo investigada pelo Ministério Público Federal há dois anos. Devia ser feminista também, afinal abrigava Luzia, a ancestral humana mais antiga das Américas. Com certeza era defensora das cotas, pois guardava o trono de Daomé, onde se sentaram os governantes da África Ocidental no século XVIII. Tive que ouvir, com os olhos que esta terra há de comer, como comeu o Tropeagnathus Mesembrinus, que o incêndio só aconteceu porque o dinheiro da Lei Rouanet e do Proac foi desviado pelo Chico Buarque para o pessoal da esquerda.

Nove rolos de pergaminhos da Torá, adquiridos pelo Imperador Dom Pedro II, foram salvos do incêndio porque estavam em restauração na Biblioteca do Horto. Mas será uma questão de tempo para eles juntarem-se ao Museu da Língua Portuguesa ou ao Museu do Ipiranga, que, sob os auspícios da USP, caiu no golpe do “aumente o número de vagas que depois eu aumento o repasse”. Como aparece nos comentários ao post de Leandro Karnal: “Onde tem comunista a destruição é total, já prenderam o reitor e seus asseclas?”. Ou seja: primeiro a gente tira todo o dinheiro deles, depois a coisa cai, daí a gente põe a culpa neles mesmos.

99% da população do Rio de Janeiro jamais verá o sarcófago egípcio de Sha-amun-em-su. Mas, ainda assim, desta soberba ignorância emergirá a sabedoria suprema: ‘Lula ou Bolsonaro é tudo igual”, como tive que ouvir em canto gregoriano recente. Tudo queima como os dois lados de uma folha de papel. Não vale a pena deixar estes 1% de privilegiados continuarem a ter acesso à cultura, à história e aos museus. A inconsequência com o passado é apenas o simétrico da imprevidência com o futuro. O orçamento de ciência e tecnologia é 19% menor e segundo o diretor da Capes, se não houver nova redistribuição de verbas, a pesquisa brasileira vai parar em agosto de 2019. Jamais esqueceremos o papel do ministro da Educação, Rossieli Soares, que operou a reforma do Ensino Médio no mesmo espírito da queima de processos e de desprezo pelo papel da universidade na formação de políticas públicas. Enquanto isso Gilberto Kassab (PSD-SP), ministro da Ciência e Tecnologia, ora pro nobis. A chamada “PEC do fim do mundo” é a institucionalização desse modo de fazer política de brincadeirinha. As verbas estão destinadas, mas o ministro ou o secretário não repassa, porque há uma trava legal. Se der errado, a gente diz que os gestores não souberam buscá-la, ou então não foram espertos o suficiente para encontrar financiamento na iniciativa privada.
O orçamento para lavar os 83 carros dos deputados federais é quase três vezes maior do que o do Museu Nacional e apenas um deputado estadual do Rio de Janeiro se ocupou com uma emenda parlamentar ao Museu. Aqueles que lutam contra a “lava” da corrupção não percebem que existe uma corrupção “branca”, uma “corrupção dentro da lei”, que suspende repasses previstos em lei para depois lamentar seus efeitos caóticos. Este é o caso do plano nacional anti-drogas, da política nacional de segurança, da política de educação e particularmente das universidades. Confunde-se, metodicamente, política de Estado com políticas de governo, de tal maneira que quando perguntamos “Quem responderá por isso?” a resposta silenciosa e obscena é: “Os mesmos que mataram Marielle e Anderson”.

Deixar queimar, deixar morrer. Este deveria ser o nome correto dessa imitação de austeridade. Nesta tanatopolítica, como propôs Fábio Franco, o truque consiste em criar um sentimento de pobreza e de penúria, que é a própria execução seletiva da lei, para em seguida matar pessoas. Isso significa deixar de fora, por exemplo, funcionários do judiciário ou caminhoneiros, mas prejudicar a implantação do Sistema Único de Saúde, do Sistema Único de Assistência Social ou a Saúde Mental. Argumente que a reforma trabalhista trará mais empregos e, quando isso não acontece, culpe governos anteriores ou conjunturas internacionais. Não é acaso que enquanto nossos indicadores educacionais regridem e a mortalidade infantil cresce, 20% da população acha que a solução está no mandamento de armar-se uns aos outros ou que nosso inimigo é a Venezuela. Falta teoria. Falta prova empírica. Falta demonstração persistente de teses. Falta o museu da indecência do pensamento. Mas isso também será esquecido pelo método da queima de arquivos.

O crime perfeito precisa apagar suas pistas, sem deixar para trás provas. Essa é a verdadeira lava a jato, depois torce e passa fogo. Isso consiste em esquecer nosso passado, recriar momentos de opressão como necessidades históricas e atacar artistas e intelectuais, que afinal são os que têm por função e ofício nos lembrar de onde viemos, para nos ajudar a pensar para onde vamos. Isso é tarefa difícil e cara. Mais simples é deixar morrer e apagar a memória do massacre, com o silêncio caridoso dos sobreviventes, como tive que ouvir de um cidadão de bem: “que azar esse incêndio no museu, bem que poderia ter sido numa favela, não é?”

Por que esta não pode ser uma opinião como tantas outras, apenas mais antiga e conservadora, como o esqueleto do Maxakalisaurus, nosso dinossauro brasilis? Afinal, por que tanta preocupação, uma vez que 99% dos cariocas nunca foram ao Museu Nacional? Para que toda essa comoção hipócrita? Museu bom é museu morto. De quebra economizamos o salário desses indolentes pesquisadores interessados na pré-história das populações amazônicas. Tanta gente passando fome e estes privilegiados fazendo pseudo-ciência. Enquanto Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, implorava pela aplicação da lei que garante os recursos devidos, o resto do país gozava com o novo reino da ordem e da virtude. Nunca se atacou tanto museus, universidades e centros de pensamento como nestes dois anos de barbárie. O ridículo ministro impostor do governo impostor vem a público responsabilizar governos anteriores e o próprio reitor Roberto Leher da UFRJ. O mesmo reitor afirma que faltou bom senso e que com o empréstimo de um terreno ao lado a perda poderia ter sido evitada. Assim, nos lembramos do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, que se suicida diante de uma acusação injusta.

Assim, tudo queima e ninguém paga a conta, literal e metaforicamente.

Só que desta vez vai ter desobediência civil e caçada impiedosa aos gestores iletrados e aos inconsequentes da memória. Temos que transformar a cultura da gestão em gestão da cultura. Vamos ter que afogar em letras esses estúpidos, incendiando com teses e palavras esses cínicos assassinos de museus. Tenho certeza que múmias, fantasmas e zumbis nos ajudarão a pegar esses safados, pois cemitérios e museus nunca são profanados impunemente.


Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2018/09/05/deixar-queimar-deixar-morrer/

Extraído de: https://www.odiario.info/deixar-queimar-deixar-morrer/