A dinâmica institucional do Estado na economia dependente
Alex Agra
A repressão aos movimentos sociais é cada vez mais evidente no capitalismo. A maneira de atuar do Estado imperialista é muito diferente da maneira do Estado de economia dependente e subdesenvolvida. Cabe, no presente artigo, entender como funcionam os mecanismos institucionais no país de economia dependente.
Em setembro de 2016, um oficial do Exército Brasileiro se infiltrou entre militantes de movimentos sociais em protesto em São Paulo contra o governo de Michel Temer. A ação foi amplamente noticiada pela grande mídia através de canais como O Globo e Folha de S. Paulo e também pela mídia independente através de canais como o Opera Mundi. Em notícia veiculada no site de O Globo, o Exército Brasileiro admitiu realizar operações de inteligência em manifestações de rua. Em notícia veiculada pelo portal DefesaNet, no início de outubro, o Ministro da Defesa Raul Jungmann, do PPS, afirma em entrevista ao BBC Brasil que acha necessário monitorar manifestações, tendo como objetivo “proteger a sociedade, os próprios manifestantes e o Estado”. Em dezembro, o canal The Intercept, criado pelo jornalista Glenn Greenwald (amigo pessoal de Edward Snowden) divulgou, através do jornalista Lucas Figueiredo, a notícia de que o Sistema Georreferenciado de Monitoramento e Apoio à Decisão da Presidência da República (GEO-PR), instituído pelo governo Lula em 2005, estava sendo usado como um megabanco de dados para monitorar manifestações e protestos. Para isso, a reportagem sustenta os argumentos através de documentos criados pelo próprio governo brasileiro. Como já escrevi aqui em artigo intitulado “A violência silenciosa da informação”, o Estado brasileiro tem criado cada vez mais mecanismos para operar contra os manifestantes e garantir a sua própria manutenção e sob o pretexto das Razões de Estado, têm ultrapassado a legalidade por ele mesmo instituída. O Estado, como responsável por garantir as condições exteriores da produção e consequentemente, as relações de produção existentes na esfera social, se torna no caso brasileiro, também um reprodutor do caráter dependente de sua economia e por isso, suas relações com a superexploração da Força de Trabalho e com a dependência são mais intrínsecas do que parecem ser, e o Estado tem então de criar mecanismos cada vez mais fortes de resistência contra o movimento de trabalhadores, tanto através da ideologia, como através da força.
No período da ditadura empresarial-militar no Brasil, a USAID (United States Agency for International Development), agência americana criada sob a argumentação de “acabar com a pobreza extrema global e possibilitar que sociedades democráticas realizem o seu potencial” (como dito no próprio site institucional), fez um acordo com o Ministério da Educação do Brasil para a reforma do sistema de educação brasileiro, referenciada naquilo que se entende enquanto “padrão norte-americano” de ensino. Como apresentado pelo professor Nildo Ouriques em sua obra “O colapso do figurino francês”, esse acordo significou uma forte desmobilização do pensamento nacional e latino-americano do ponto de vista das ciências humanas. Segundo Márcio Moreira Alves, importante jornalista e político da época, o acordo MEC/USAID, na verdade tinha como proposta inicial privatizar as escolas públicas. Matérias como História tiveram a carga horária reduzida e as matérias de ciências humanas no geral tiveram seu conteúdo “estrangeirizado”, retirando a capacidade dos alunos de repensar a realidade nacional e criar condições de superação do subdesenvolvimento. Em 2013, a USAID foi expulsa da Bolívia, acusada de ingerência nos assuntos internos durante anos, como já divulgado em matéria do Diário Liberdade intitulada “Quem é Michael J. Eddy, diretor da USAID no Brasil?”. A própria ditadura brasileira foi uma ação imperialista do Estado norte-americano para acabar com o projeto Nacional Desenvolvimentista de João Goulart, que beneficiaria a própria burguesia brasileira. Como é uma burguesia interna (e não nacional), submetida aos interesses das potências do capitalismo mundial, a burguesia não é capaz de utilizar mecanismos no Estado brasileiro que não sejam para agravar a dependência. O próprio acordo MEC/USAID serve para evidenciar como a dependência cria mecanismos dentro das instituições do Estado brasileiro que servem para a manutenção da própria dependência. Desta maneira, o Estado cria um aparelho ideológico que garante as relações de produção do capitalismo dependente brasileiro, de forma que se torna impossível acreditar em uma saída das relações de dependência através do Estado capitalista, evidencia-se assim a própria contradição do ponto de vista das funções do Estado no projeto nacional desenvolvimentista.
O interesse estrangeiro no petróleo brasileiro não é segredo. Como divulgado pelo O Globo, um consórcio liderado pela canadense Brookfield anunciou em setembro deste ano que chegou a um acordo para comprar 90% da unidade de gasodutos Nova Transportadora Sudeste (NTS), da Petrobras, de aproximadamente US$ 5,2 bilhões. A venda foi feita à Brookfield Infrastructure Partners (BIP) e empresas filiadas, através de um Fundo de Investimento em Participações, cujos demais cotistas são British Columbia Investment Management Corporation (BCIMC), CIC Capital Corporation (subsidiária integral da China Investment Corporation – CIC) e GIC Private Limited (GIC). Na mesma reportagem, é divulgado que no plano de negócios da Petrobrás para o período de 2017 a 2021, a empresa pretende vender mais ativos. A meta é se desfazer de US$ 19,5 bilhões entre 2017 e 2018. A maior venda anterior da Petrobrás foi a participação de 66% do campo de Carcará, na Bacia de Santos, para a Statoil. Como divulgado em outubro pelo véiculo de mídia Brasil de Fato, a BR Distribuidora subsidiária da Petrobrás que vai ter 51% do seu capital vendido, é de interesse dos banqueiros da família Setúbal e Vilella, donos do Itaú Unibanco, maior instituição financeira na América Latina, que são potenciais compradores de ativo. A reportagem revela também que segundo a agência de notícias Bloomberg, a Cambuhy Investimentos, empresa da família Moreira Salles, a Vitol, a GP Investimentos e a Advent International também tem interesse na BR Distribuidora. Para Paulo Passarinho, economista da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), a proposta atual do governo é colocar a Petrobrás “como uma empresa de produção e exportação de petróleo, quando deveríamos aproveitar e aumentar nossa capacidade de refino e produção petroquímica”. Hoje a BR Distribuidora é líder do mercado nacional, com 35% de participação no ramo. É sabido também que José Serra, Ministro de Relações Exteriores do governo interino de Michel Temer, criou o projeto de lei que retira a exclusividade da Petrobrás na exploração do pré-sal. Qual conclusão podemos apontar do Estado brasileiro senão a de que ele tem obtido papel central, independente do governo que o assuma, na privatização de recursos estratégicos para o desenvolvimento nacional? O Estado brasileiro, através de suas instituições, tem feito o possível para agravar a dependência não apenas no plano intelectual, traduzida atualmente na “Reforma da Educação” do governo Temer e capitaneada por empresários do setor privado de educação, mas também no próprio plano econômico. Em 2008, o canal de notícias Reuters divulgou o comentário do presidente Luis Inácio Lula da Silva, em matéria intitulada “New fleet may mean U.S. covets Brazil’s oil: Lula“, na qual o presidente declara como afronta a recriação da U.S. 4th Fleet, a chamada “Quarta Frota” da Marinha americana, que segundo o Estado americano teriam o interesse de pesquisar e reprimir o narcotráfico, além de proteger o pré-sal brasileiro. A (re)criação de uma frota dos U.S. Navy para policiar o litoral brasileiro é uma afronta direta ao Estado brasileiro até hoje sem solução. O interesse dos americanos na Amazônia brasileira em matéria divulgada no site do Senado intitulada ”
A função da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) é prestar um suporte estratégico para o governo brasileiro na tomada de decisões, produzindo através das informações privilegiadas obtidas, uma assessoria elementar no processo decisório para o desenvolvimento da nação brasileira. Sabendo dos interesses internacionais no Brasil, sabendo que a cada dia 10 mil agentes dos EUA atuam em operações especiais e clandestinas, sabendo de agentes da CIA sendo flagrados atuando na desestabilização política de diversos países, a exemplo da captura de um agente da CIA pelo Hezbollah em Aleppo, como divulgado pela Agência de Notícias Ahlul Bait (ABNA), em matéria intitulada “Hezbolá Captura a Agente de la CIA al Mando de Al-Qaeda en Alepo“, a melhor decisão a ser tomada pelo governo brasileiro e pela ABIN, considerando o interesse nacional, seria prevenir o Estado brasileiro contra a atuação norteamericana no Brasil. Em movimento contrário, como divulgado pela Folha de São Paulo em matéria intitulada “Agentes da CIA conseguem atuar livremente no Brasil“, a reportagem evidencia que os agentes da inteligência americana têm muita facilidade para atuar em território brasileiro, inclusive dentro das instituições. A parceria entre a Embaixada dos EUA e a Polícia Federal foi formalizada por meio da assinatura de um memorando em 2010, no qual os EUA são representados pela CIA e o Brasil pelo DAT (Divisão AntiTerrorismo da Polícia Federal) apesar de existir na prática desde muito antes disso. Um de seus críticos é o ex-secretário nacional Antidrogas Walter Maierovitch, que afirma ter opinado pela não oficialização do convênio, em relação às drogas, porque “era um acobertamento para a espionagem desenfreada, sem limites”. Previsto nesse acordo, os americanos mantêm escritórios próprios no Rio, com a justificativa da realização da Copa do Mundo e da Olimpíada de 2016, e em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, para vigiar a atuação das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) na fronteira.
Qualquer semelhança com os interesses que mencionei anteriormente não é mera coincidência. O próprio diretor da Federação Nacional dos Policiais Federais na época da reportagem (2013), Alexandre Ferreira, afirmou que “o que mais tem é americano travestido de diplomata fazendo investigação no Brasil”. Os policiais federais brasileiros chamam de “Zona Cinza” as técnicas dos espiões americanos no país: invasão de sistemas, compra de informações e suborno de funcionários de empresas públicas ou privadas. Deste modo, a atuação norte americana no Brasil não é só de conhecimento do governo brasileiro, mas também consentida pelo Estado brasileiro, sob o qual se ergue um arcabouço de auxílio aos interesses dos Estados Unidos.
Em 1950, os Estados Unidos inicia a Operação Mockingbird, operação secreta, através da CIA, para influenciar a mídia. Inicialmente organizada por Cord Meyer e Allen W. Dulles, e mais tarde liderada por Frank Wisner após Dulles tornar-se o chefe da CIA, a organização recrutou jornalistas americanos numa rede para representar seus interesses, financiando organizações estudantis, culturais e revistas e trabalhou para influenciar a mídia estrangeira em campanhas políticas, além de outras atividades de diversas unidades operacionais da CIA. Não existe exemplo maior de como os EUA atuam na produção de ideologia, na apresentação de interesses privados como se públicos fossem. Em matéria publicada pelo O Globo, foi divulgado que o FBI tem interesse em atacar a criptografia de aplicativos como Telegram e Whatsapp, ainda que a dificuldade de operar dentro desses sistemas não seja tão grande quanto o Bureau quer que pareça. Na verdade, há um caráter de duplo interesse nessa crítica à criptografia: ao passo que é verdade que existe o interesse no combate à criminalidade (por exemplo, repressão à pedofilia), é verdade também que o FBI deseja acessar com mais facilidades os dados pessoais que lhes possam ser interessantes. Deste modo, evidencia-se: dentro da legalidade instituída pelo próprio Estado, o Estado atua na ilegalidade, através das Razões de Estado. É dessa maneira que tanto o Estado brasileiro quanto o Estado norte americano atuam: evadindo-se da legalidade para garantir a sua própria manutenção, e não apenas, mas a manutenção também das relações de produção. Enquanto o Estado norte-americano atua internamente e externamente dessa maneira, o Estado brasileiro pela posição periférica e pela função de reprodução dos interesses de países centrais do capitalismo atua apenas internamente dessa maneira. É essa mesma forma de atuar que explica a ação do Estado contra os manifestantes, seja através da repressão policial que espanca, joga bomba de gás, e que mata, seja através do trabalho de inteligência realizado pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência. O Estado dependente atua não na direção de garantia dos interesses nacionais, mas na proteção dos interesses das potências capitalistas imperialistas sob as quais esse mesmo Estado e essa mesma nação são vítimas.
A discussão sobre liberdade e igualdade que ocupou a mente dos liberais tem uma resposta evidente no capitalismo: não há liberdade de fato enquanto uns são obrigados a trabalhar para enriquecer outros. E não há igualdade justamente porque enquanto uma parcela enorme da população mundial trabalha, uma parcela mínima concentra todas as riquezas através da propriedade privada dos meios de produção, que o Estado capitalista tem a obrigação de proteger através de todos os seus aparelhos repressivos institucionais. O que se entende enquanto política é uma consequência da divisão do trabalho, das relações de produção, e por isso, o que se entende enquanto democracia plena nunca será realizado enquanto as relações de produção capitalistas existirem na sociedade. Isso acontece porque o Estado que foi edificado no capitalismo é produto dessas mesmas relações para a manutenção delas, e a liberdade e igualdade são contradições práticas dessa realidade do modo de produção capitalista. O Estado moderno pode se apresentar sob diferentes máscaras sobretudo através dos diferentes governos que dele participam, seja com um projeto democrático popular, seja com um projeto nacional desenvolvimentista, seja com um projeto neoliberal, mas a sua essência e seu objetivo não muda, porque o Poder Político ainda não foi tomado pela classe trabalhadora. E é através da tomada desse Poder Político que as relações de produção irão se transformar, e veremos a transição para um novo modo de produção, para uma outra sociedade. Nessa sim, poderemos ver a democracia plena, a liberdade e igualdade sendo garantidas.
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