Nazismo ucraniano, ontem e hoje

Marcha de tochas dos partidos nazistas Svoboda and Pravy Sektor, nas imediações do gabinete do presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, para assinalar o 113º aniversário do nascimento de Stepan Bandera. Kiev, 1º de Janeiro de 2022
Créditos: Anna Marchenko / TASS

Uma trilogia (I)

Por José Goulão – Portal ABRIL ABRIL

1. O decálogo assassino e a «grande democracia»
O maior cego é aquele que não quer ver (sabedoria popular)

Em outubro do ano passado, o Parlamento e o presidente da Ucrânia proclamaram como «herói nacional» ucraniano um indivíduo de nome Miroslav Simchich, que completou 100 anos neste mês de janeiro1. Simchich, que morreu no passado dia 18, é um personagem cultuado pelo regime de Kiev e foi agraciado como figura militar e pública pelos «seus méritos na formação do Estado ucraniano e pelos muitos anos de atividade política e social frutíferos».

Miroslav Simchich (Krivonis) é um nazista, um criminoso de guerra. Foi destacado dirigente da entidade terrorista chamada Organização dos Nacionalistas Ucranianos, mais conhecida por OUN, e do seu braço armado, o Exército Insurgente da Ucrânia (UPA). Estes grupos tiveram como um de seus fundadores e figura de referência o conhecido colaboracionista nazista Stepan Bandera, nome identificado como um dos principais dirigentes e proselitista do chamado «nacionalismo integral» ucraniano, inspiração ideológica dos grupos terroristas de inspiração nazista que enquadram os atuais governo e Estado ucranianos. O objetivo contido na palavra de ordem institucional proclamada pela UPA, associado à doutrinação do nacionalismo integral, era «um Estado ucraniano etnicamente puro ou morte».

No período a seguir à Segunda Guerra Mundial, Bandera instalou-se na Alemanha a serviço do MI6 e da CIA, respectivamente serviços secretos britânicos e norte-americanos. A reciclagem «democrática» de bandidos nazistas foi um método utilizado pelos Estados Unidos, potências ocidentais2 e, posteriormente, pela OTAN, de uma maneira sistemática e sustentada. Bandera é, como não podia deixar de ser, «herói nacional» da Ucrânia: estátuas distribuídas por todo o país, marchas anuais em sua honra, sobretudo em Lviv, romarias oficiais ao seu túmulo; recentemente, a principal avenida de Kiev foi rebatizada com o seu nome. Para os nazistas de hoje na Ucrânia, uma das referências míticas é a Divisão Galícia3, unidade da UPA associada de maneira lendária ao culto atual de Bandera4 que a partir de 1943 5 lutou ao lado das tropas hitlerianas ocupantes da União Soviética6.

Biografia sangrenta de Simchich
Estudar a biografia do criminoso de guerra e novo «herói nacional» da Ucrânia Miroslav Simchich não é uma tarefa linear, sobretudo através da internet, porque numerosos sites sobre o assunto, especialmente os relacionados com os massacres de polacos, judeus, resistentes ucranianos, russos e soviéticos em geral, cometidos entre 1941 e 1945, estão censurados sob mensagens advertindo que se trata de «páginas de conteúdo perigoso». Investigar a história, conhecer mais sobre os pesadelos que encerra pode, ao que parece, fazer mal aos cidadãos. Abundam, pelo contrário, as informações sobre as atividades «heróicas» de Simchich contra o Estado soviético e lamentos sobre os longos anos que passou, por conta delas, «nos campos de trabalho bolcheviques».

Há teses e investigações, porém, que escapam à malha censória, sobretudo os trabalhos que foram executados por alguns professores norte-americanos de universidades elitistas da Ivy League, como a de Yale. O professor Keith A. Darden, precisamente de Yale, conversou com Simchich e ouviu-o proclamar que «os objetivos nacionais justificavam as formas mais extremas de violência e considerável sacrifício»7.

Entre a Primavera de 1941 e o Verão de 1943, a OUN (B), organização comandada por Stefan Bandera depois de uma cisão com a facção Melnik, considerada «moderada», e a UPA dedicaram-se a uma metódica limpeza étnica dos polacos das regiões da Volínia e da Galícia Oriental8. Tratava-se de «purificar», na perspectiva ucraniana, os territórios soviéticos então sob ocupação alemã e que, de acordo com as suas previsões e desejos, seriam integrados numa Ucrânia independente com a vitória da Alemanha Nazista. No primeiro ano da presença alemã no território ucraniano soviético, a OUN exortou os seus membros a participarem no extermínio de pelo menos 200 mil judeus na região da Volínia. Além disso, criou a Milícia Popular Ucraniana, que realizou pogroms por sua própria iniciativa e colaborou com os invasores alemães a prender e executar cidadãos polacos, judeus, comunistas, soviéticos e resistentes em geral9

Ainda antes do início da Grande Guerra, os nacionalistas integrais da Ucrânia realizaram frequentes pogroms durante os quais assassinaram dezenas de milhares de compatriotas com origem judaica. Simchich explicou que os participantes nas chacinas não manifestavam quaisquer remorsos pelos seus atos, apesar de as vítimas serem quase exclusivamente civis – homens, mulheres e crianças, tanto fazia. Cumpriam, disse, a divisa da OUN segundo a qual «a nossa única diplomacia é a arma automática»10. Como se percebe, olhando para o que se passa hoje, há coisas que nunca mudam para as gangues ucranianas nacionalistas/nazistas.

Os terroristas da OUN(B)/UPA guiavam-se pelo decálogo da organização, bastante elucidativo em termos programáticos. O sétimo mandamento reza assim: «Não hesitar em cometer o maior crime se o bem da causa assim o exigir». O oitavo mandamento recomenda que se olhem «os inimigos com ódio e perfídia»; e o décimo estipula que os ucranianos devem «aspirar a expandir a força, a riqueza e dimensão do Estado ucraniano mesmo através de meios que transformem os estrangeiros em escravos».

Transcorreram oitenta anos, mas o tempo não passou por sucessivas gerações de nacionalistas integrais ucranianos até à atual. Consultemos a lei dos povos nativos promulgada há um ano pelo presidente Volodymyr Zelensky, herói de todo o Ocidente, e ali se inscreve a discriminação e a recusa de direitos aos não-ucranianos, como por exemplo o ensino e o uso das línguas pátrias e a proibição de meios de comunicação nesses idiomas. Nos termos da mesma lei, só os cidadãos considerados ucranianos «têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos e de todas as liberdades fundamentais».11 As crianças são formadas, desde tenra idade, no espírito segregacionista e xenófobo dessa lei; nos livros escolares oficiais ensina-se, por exemplo, que «os russos são sub-humanos».

Miroslav Simchich [Krivonis] orgulha-se de ter sido pessoa destacada nos massacres de 1941 a 1943, comandando as unidades que dizimaram as aldeias polacas de Pistyn e Troitsa12 13 e ordenando pessoalmente o assassinato de mais de cem pessoas entre polacos, judeus e ucranianos. O caráter da OUN(B)/UPA, organização da qual se consideram herdeiros os vários grupos nazistas que controlam o atual governo de Kiev, pode avaliar-se também pelo fato de entre os ucranianos dizimados estarem não apenas resistentes ao nazismo, mas também membros da facção dissidente de Melnik, OUN(M), mais inclinada para negociações e alinhada ideologicamente com o fascismo italiano.

Mais de cem mil polacos da Volínia, Galícia Ocidental e até de Kiev foram chacinados entre 1941 e 1944 em consequência da colaboração íntima operacional entre as tropas de assalto nazistas envolvidas na invasão da União Soviética e as organizações de inspiração banderista/nacionalismo integral. Com eles foram assassinados ainda dezenas de milhares de judeus, resistentes ucranianos, cidadãos soviéticos, húngaros, romenos, ciganos, tchecos e de outras nacionalidades que manchavam a «pureza» nacional ucraniana. No «domingo sangrento», 11 de junho de 1941, unidades da OUN arrasaram cerca de 100 aldeias polacas da Volínia, incendiaram as casas e assassinaram pelo menos oito mil pessoas – homens, mulheres e crianças. Os ocupantes alemães receberam ordens para não intervir; porém, oficiais e soldados das tropas nazistas forneceram armas e outros instrumentos para o massacre em troca da partilha do saque.

Outro dos acontecimentos mais sangrentos desta limpeza étnica foi o massacre de Babi Yar, em 29 e 30 de setembro de 1941, no qual mais de 30 mil judeus, prisioneiros de guerra e resistentes soviéticos foram fuzilados num desfiladeiro então nos arredores de Kiev por ação conjunta das Waffen SS e de grupos nazis/nacionalistas que afirmavam defender a independência do seu país. Duzentos mil polacos fugiram para regiões mais a Ocidente logo no início das matanças; oitocentos mil seguiram posteriormente o mesmo caminho, aterrorizados pela cadência e a crueldade das operações, na sequência das quais nada restava dos agregados populacionais invadidos, incendiados e saqueados.

O número de cem mil mortos é calculado pelo Instituto de Memória Nacional da Polónia, ciente de que a organização de Bandera decidiu, em fevereiro de 1943, expulsar todos os polacos da Volínia para obter «um território absolutamente puro». Por isso o colaboracionismo absoluto da Polônia de hoje com um regime que tem as suas raízes nestas práticas genocidas é um insulto à memória de todos os cidadãos poloneses e de outras nacionalidades vítimas desta limpeza étnica. Escrevem autores norte-americanos com investigações dedicadas a estes acontecimentos que, a partir de março de 1943, «unidades da UPA montaram um esforço concertado para aniquilar as populações polonesas da Volínia e depois da Galícia Oriental». Nessa vertigem de morte nem os cidadãos poloneses que pretendiam negociar foram poupados, logo assassinados a sangue-frio.

A UPA foi oficialmente fundada em 14 de outubro de 1942. Muito significativamente, 14 de outubro tornou-se o dia das Forças Armadas na atual Ucrânia «democrática». Perguntaram ao «herói nacional» da Ucrânia Miroslav Simchich quantos russos matou ao longo da vida, ao que ele respondeu: «tantos quanto o tempo que tive para isso». Hoje, aquele que ficou conhecido como «o maior carrasco de poloneses vivo», é «cidadão honorário» de Lviv e de Kolomyia, a terra da sua naturalidade, onde tem uma estátua com três metros de altura. Em 2009, o regime de Kiev, antes mesmo do golpe de Maidan, dedicou-lhe o filme «heróico-patriótico» intitulado A Guerra de Miroslav Simchich. Note-se que os Estados Unidos e a Alemanha Federal recorreram no pós-guerra à experiência de Bandera e dos seus sequazes para efeitos da Guerra Fria. O habitual.

O ovo da serpente
O escritor e crítico literário Dmytro Dontsov14 é considerado o pai do nacionalismo integral «de características ucranianas», aparentado – mas único – com o movimento integralista que percorreu a Europa a partir da segunda década do século XX. Conviveu com o francês Charles Maurras, que terá figurado entre os inspiradores do ditador Oliveira Salazar, seguindo depois cada um o seu caminho, embora coincidindo ideologicamente no essencial: Maurras identificou-se com o colaboracionismo hitleriano do governo pétainista de Vichy e Dontsov instalou-se temporariamente na Alemanha de Hitler. O ovo do nacionalismo integral ucraniano desenvolveu-se na serpente do nazismo, complementaridade que se tornou marcante até hoje. Grupos que controlam o atual governo da Ucrânia, como o Azov, o Aidar, o C-14, Svoboda, Setor de Direita e outros, com as respectivas milícias paramilitares e unidades integradas nas Forças Armadas regulares do país, consideram-se herdeiros da linha ideológica fundamentalista traçada por Dontsov e Bandera, miscigenando o nacionalismo integral com o nazismo, circunstância que se tornou operacional através das chacinas étnicas em território polonês-ucraniano a partir do início da invasão da União Soviética pelas tropas de Hitler.

A ambição de uma Ucrânia com uma população «pura» e «homogênea» não se extinguiu nos dias de hoje, como é patente pelas operações de limpeza étnica e genocídio da minoria russa da região do Donbass desencadeada após a chamada «revolução de Maidan» em 2014; a qual, segundo o chefe do grupo C-14, Yehven Karas, não teria passado «de uma parada gay» se não fosse o envolvimento das organizações de inspiração nazista como a sua. Uma carnificina afinal contra um povo «não-nativo» – respeitando a terminologia da legislação de Zelensky – que só foi travada com a intervenção das forças militares da Federação Russa a partir de 24 de fevereiro de 2022. Citando o vice-primeiro-ministro ucraniano Alexey Reznikov, «povos indígenas e minorias nacionais não são a mesma coisa». Dito de outra maneira: nos termos da lei, perante qualquer tribunal, os não-ucranianos não podem invocar «o direito de usufruir plenamente de todos os direitos humanos e todas as liberdades fundamentais». Em resumo, racismo, apartheid institucionalizado no regime mais querido dos Estados Unidos e dos governos e instituições autocráticas da União Europeia. Excetuando talvez Israel onde – sem ser coincidência – o apartheid também floresce.

Dontsov tinha um ódio obsessivo por judeus e ciganos e fez com que essa tendência marcasse a fundação da OUN, que resultou da fusão dos grupos nacionalistas integrais de Stepan Bandera com a União dos Fascistas Ucranianos. A corrente nacionalista integral ucraniana baseava-se, como algumas outras, no endeusamento da nação, no tridente hierarquia, sangue e disciplina e na estratificação horizontal da sociedade entre nativos e não-nativos. Onde teria ido Volodymir Zelensky definir os parâmetros da sua atualíssima lei dos povos indígenas? Tal como hoje se aprende nas escolas do regime de Kiev, Dontsov ensinou no seu livro Nacionalismo, de 1926, que «os russos não pertencem à espécie de Homo Sapiens».

A «pureza», segundo Dontsov
Dmytro Dontsov foi buscar as suas teses sobre as origens do povo ucraniano «puro» à entrada dos varegues, um povo viking então oriundo da Suécia, nos territórios das atuais Ucrânia, Rússia e Bielorrússia no fim do século IX. Deslocaram-se através dos rios da Europa Oriental, fundaram a cidade de Novgorod – na Rússia – e depois o Reino de Kiev. Os verdadeiros ucranianos teriam assim uma origem nórdica e não eslava. O povo varegue era conhecido também como rus, termo que terá dado origem às palavras russo e Rússia. Rus vem, ao que parece, de linguagens nórdicas antigas e ainda hoje significa «Suécia» em alguns países da região como Estônia e Finlândia. Na sua obra, Dontsov associa a «pureza» ucraniana aos nórdicos e protogermânicos e à sua suposta superioridade racial sobre os eslavos, sobretudo os eslavos orientais ou «pretos da neve», em linguagem pejorativa – os russos.

Combater a Rússia, segundo o pai do nacionalismo integral ucraniano, «é um papel histórico que estamos destinados a desempenhar». Ideia que pormenorizou em 1961 quando, exilado no Canadá, publicou a sua obra O Espírito da Rússia: «O Ocidente, tanto nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, como hoje, não percebeu realmente o que é a Rússia como império, os venenos, destruição moral e cultural que carrega». Seis anos depois envolveu a ideia num espírito místico-religioso ao escrever que «os ucranianos são criados do barro com que o Senhor cria os povos escolhidos». Fervor que levou a atual deputada Irina Farion, do partido do presidente Zelensky, a declarar que «viemos a este mundo para destruir Moscou». À direita da deputada oradora pode se ver o assumido nazista Oleh Tyahnybok. Repare-se que, afinal, o problema não é Putin ou o regime político em Moscou, qualquer que ele seja; o problema é a existência da Rússia e dos russos. O que deixa o Ocidente envolvido numa cruzada étnica, o que aliás é coerente com a sua História.

De acordo com a teorização de Dontsov, no ocaso da dinastia de Rurique, monarca varegue que fundou o Reino de Kiev, o povo de origem nórdica foi escravizado pelos russos. De onde poderá deduzir-se que, para os nacionalistas integrais ucranianos, há uma necessidade de vingança contra a Rússia que atravessou séculos de história e está em curso, por exemplo, com a tentativa de limpeza étnica no Donbass. Para Dontsov o combate à Rússia é o «Ideal Nacional», terminologia adotada pela rede de grupos nazistas que controla o aparelho de Estado. Utilizam o símbolo nazista Wolfsangel de forma invertida: explicam que essa posição expressa visualmente as letras I e N de «Ideal Nacional». O fato de a simbologia dos grupos ucranianos coincidir com a nazista tem essencialmente a ver, na sua argumentação, com o fato de ambas as partes terem recorrido a imagens de vigor, valentia e identidade, originariamente nórdicas e vikings.

A guerra contra os russos vivendo no território ucraniano, principalmente no Donbass, iniciada em termos militares em 2014, será, portanto, uma expressão do «Ideal Nacional» que tem a sua génese na afirmação da superioridade dos autóctones nórdicos sobre os «ocupantes internos» eslavos, sobretudo orientais – «sub-humanos».

A utilização do termo nazista para os grupos nacionalistas integrais ucranianos que sustentam o regime de Kiev parece bastante mais apropriada às circunstâncias do que o de neonazista15. Há uma ligação ideológica direta entre o regime do III Reich, as organizações e os dirigentes ucranianos que se inseriram ou colaboraram com ele e os comportamentos e atividades atuais dos grupos que se dizem herdeiros daqueles que há oitenta anos foram instrumentos das forças hitlerianas. Existe uma herança em linha reta: não há inovação, há continuidade. Então no que diz respeito à «pureza da raça» a sobreposição é absoluta, os conceitos do regime de Kiev, expressos claramente na lei dos povos indígenas de Zelensky, nada trazem de novo ao nazismo.

O primeiro «governo ucraniano» e o atual
Em Berlim, Dmytro Dontsov ganhou proximidade com o número três do Reich, Reinhard Heydrich, chefe das SS e da Gestapo. Tornou-se então administrador do Instituto Imperial para a Investigação Científica em Praga quando este dignitário nazista assumiu o cargo de «protetor da Boêmia e da Morávia».16 Estes fatos são confirmados por uma investigação conduzida pelo professor Trevor Erlacher, da universidade norte-americana da Carolina do Norte.

Reinhard Heydrich, responsável pelo todo poderoso Gabinete Central de segurança do Reich, que superintendia o aparelho repressivo nazista, foi o principal organizador da Conferência de Wansee, em 20 de janeiro de 1942, durante a qual as mais elevadas estruturas do Reich planejaram a «solução final», o extermínio dos judeus. Em 30 de junho de 1941, sob a cobertura das tropas nazistas que ocupavam Lviv, a OUN proclamou na varanda do nº 10 da Praça Rynek, nesta cidade, a criação de um Estado ucraniano independente. De acordo com as orientações de Stepan Bandera, o Estado assim fundado assentava no conceito de nacionalismo integral, numa população etnicamente pura, numa língua única, na glorificação da violência e da luta armada. A estrutura orgânica previa o totalitarismo, o partido único e um funcionamento ditatorial.

Como presidente do «Conselho de Estado», cargo equivalente ao de primeiro-ministro, foi designado Yaroslav Stetsko, então o chefe operacional da OUN. Stetsko era um nazista e, segundo a ordem natural das coisas, é hoje «herói nacional» da Ucrânia. Se dúvidas houvesse quanto à sua obediência ideológica, no «Ato de Proclamação do Estado Ucrânia» Stetsko declarou solenemente que a nova entidade «cooperará intimamente com a Grande Alemanha Nacional-Socialista sob o comando de Adolph Hitler, que está criando uma nova ordem na Europa e no Mundo».

Uma das primeiras iniciativas do primeiro primeiro-ministro ucraniano foi o envio de uma carta a Hitler, em 3 de julho de 1941, expressando a sua «gratidão e admiração» pelo início da ofensiva alemã contra a União Soviética. Pouco depois, em agosto do mesmo ano, enviou uma espécie de «currículo» às autoridades alemãs elogiando o antissemitismo, apoiando o extermínio dos judeus e a «racionalidade» dos métodos de extermínio contraposta à assimilação17. A Academia das Ciências da Ucrânia revela que Stetsko e outros chefes da OUN prepararam acções de sabotagem contra a União Soviética juntamente com os chefes da espionagem alemã, receberam pelo menos 2,5 milhões de marcos para esse efeito e utilizaram aviões do Reich para o desenvolvimento das operações de que foram encarregados pelos nazistas. Stetsko tornou-se mais tarde um agente da CIA e até 1986, ano da sua morte, chefiou o Bloco das Nações Anti Bolcheviques, depois Organização Anticomunista Mundial.

Para o regime atual de Kiev, a «restauração» do Estado ucraniano, 50 anos depois, só foi tornada possível devido à proclamação de Lviv e a respectiva «ordem nacional» por ela estabelecida.

Yaroslav Stetsko é autor do livro Duas Revoluções, o referencial ideológico do partido Svoboda e de outras organizações de inspiração nazista que dominam a estrutura estatal nominalmente chefiada por Zelensky. O primeiro primeiro-ministro ucraniano tem hoje uma placa de homenagem numa praça de Munique, inaugurada pelo presidente ucraniano «pró-europeu» Viktor Yushenko. Antes disso, em 6 de maio de 1995, o primeiro presidente da Ucrânia atual, Leonid Kuchma, homenageou o colaboracionista nazista em Munique e deslocou-se às instalações da CIA nesta cidade – onde Stepan Bandera trabalhou durante a década de cinquenta – para visitar a viúva de Yaroslav Stetsko, Slava Stetsko. Foi um encontro de cortesia e de trabalho: traduziu-se na integração na Constituição ucraniana de uma formulação racista de índole nazista – artigo 16.º – segundo a qual «preservar o patrimônio genético do povo ucraniano é da responsabilidade do Estado». Data dessa ocasião, e também por iniciativa da viúva de Stetsko, a recuperação e institucionalização nacional do grito «Slava Ukraina, Geroiam Slava», o mesmo que era usado pelas organizações de Bandera.

Slava Stetsko foi convidada a proferir os discursos de abertura dos trabalhos do Parlamento Ucraniano (Rada) nas sessões de 1998 e 2002. Como se percebe, isto aconteceu ainda muito antes da «revolução de Maidan», o que revela a profundidade das raízes do nacionalismo integral/nazismo no moderno Estado ucraniano.

Desfile de «heróis nacionais» nazistas
É longo o desfile dos «heróis nacionais» ucranianos proclamados pelos dirigentes do atual regime e que, diretamente ou como colaboracionistas, fizeram parte do aparelho nazista de extermínio, sobretudo desde o início da Operação Barbarossa das tropas hitlerianas contra a União Soviética. Nem sempre as gangues dirigentes ocidentais e a própria oligarquia europeia aceitaram com benevolência estas promoções de exterminadores a «heróis» promovidas por uma «democracia» com a qual a OTAN afirma ter «valores comuns».

Quando o presidente Yushenko declarou Stepan Bandera «herói nacional», em 22 de junho de 2010, o Parlamento Europeu insurgiu-se. Parecia excessivo agraciar o inspirador da Divisão Galícia18, parte das forças armadas hitlerianas responsável por extermínios em massa; não parecia de bom tom endeusar alguém que assassinou em nome da «pureza da raça» e dedicou anos da sua vida a «expurgar» o território da pátria de «todos os não-ucranianos» e judeus. Não, isso não poderia o Parlamento Europeu sancionar.

Mas tudo acabou por passar sem que nada de palpável acontecesse. Os deputados das maiorias socialistas e das direitas festejaram depois o golpe da Praça Maidan, encaram tranquilamente as marchas anuais em Lviv e outras cidades celebrando o aniversário de Bandera, aceitam como «resistentes patrióticos» os bandidos nazistas, por exemplo o Batalhão Azov, que sequestram populações civis como escudos humanos, que fuzilam soldados ucranianos ambicionando salvar a vida perante a superioridade militar russa, que veneram Stepan Bandera e se orgulham de ter no terrorismo da OUN e da UPA as suas fontes de inspiração. Para a autocracia europeia o batismo das principais ruas das cidades ucranianas com os nomes de criminosos de guerra como Bandera, Stetsko e Shukhevych, a proliferação de estátuas em sua honra são situações banais que casam muito bem com a democracia e a civilização ocidental. Citando de novo a OTAN: «A Ucrânia é uma grande democracia».

O presente artigo é o primeiro da série «O Nazismo ucraniano, ontem e hoje – uma trilogia».

José Goulão, exclusivo AbrilAbril

1. Por ocasião do seu 100.º aniversário, a 5 de janeiro de 2023, Miroslav Simchich ofereceu a Volodymyr Zelensky, que considera «um valoroso sucessor», «um sabre centenário» e «livros autografados sobre a história da UPA». As autoridades ucranianas retribuíram o gesto do incorrigível nazista atribuindo-lhe um subsídio de um milhão de hryvnias. O filho mais velho de Simchich, Ihor, combateu na região da Zaporíjia pelo Batalhão Azov.
2. O Canadá foi o país que, a seguir aos EUA, acolheu o maior número de colaboracionistas ucranianos de Hitler. Sobre o branqueamento dos antigos SS e a tentativa de reescrever a história a seu favor veja-se o site militar canadiano Esprit de Corps.
3. A 14.ª Waffen SS Divisão de Granadeiros (1.ª Galícia), conhecida como Divisão SS Galícia, foi constituída em abril de 1943 por nazistas ucranianos, sobretudo provenientes da região da Galícia (Lviv, Ivano-Frankivsk e Ternopil), que Himmler considerava «mais próximos dos arianos», devido à sua origem no Império Austro-Húngaro. Entre 1943 e 1945 mais de 20 mil ucranianos integraram a Divisão SS Galícia. As Waffen SS (abreviatura de SchutzStaffel), literalmente «esquadrões de proteção armados», foram unidades militares do Partido Nazista, diretamente controladas por este. Inicialmente compostas exclusivamente por alemães, com o desenvolvimento da Segunda Guerra Mundial foram ampliadas a voluntários nazistas de outras nacionalidades. Distinguiram-se pelas atrocidades e crimes de guerra que praticaram, em operações militares ou de polícia. Foram condenadas no Tribunal de Nuremberg.
4. Sobre a personalidade e o mito de Bandera ver: Grzegorz Rossoliński-Liebe, Stepan Bandera: The Life and Afterlife of a Ukrainian Nationalist: Fascism, Genocide, and Cult, 654 p. (Hannover: ibidem Press 2014); e Per Anders Rudling, «The OUN, the UPA and the Holocaust: A Study in the Manufacturing of Historical Myths», in The Carl Beck Papers in Russian & East European Studies, n.º 2107/Novembro 2011 (University of Pittsburgh, PA).
5. A Divisão SS Galícia foi a maior mas não foi a primeira colaboração militar dos nacionalistas ucranianos com os alemães. Desde o início da Segunda Guerra que participaram em unidades especiais, dirigidas e pagas pelos serviços secretos nazistas. Os batalhões Nachtigall e Roland foram formados a 25 de fevereiro de 1941 com 400 combatentes cada, após conversações diretas entre Stepan Bandera e as chefias nazistas. Uma semana após a invasão, Bandera e a OUN-B proclamavam a independência da Ucrânia e prometiam a cooperação do novo Estado ucraniano com a Alemanha Nazista, terminando a mensagem com um «Glória à Alemanha heróica e ao seu Führer, Adolf Hitler». À declaração seguiram-se violentos pogroms.
6. Em dezembro de 2022 o Supremo Tribunal da Ucrânia descriminalizou os símbolos da Divisão Galícia «de uma forma definitiva e sem direito a apelo», alegando que os mesmo nada têm a ver com o nazismo. A decisão contraria a sentença proferida em 1946 pelo Tribunal de Nuremberg, que estabeleceu a culpabilidade daquela unidade militar por diversos crimes de guerra. Põe também fim à corajosa ação iniciada em 2017 pela destemida cidadã de Kiev, Natalya Myasnikova, contra o Instituto da Memória Nacional da Ucrânia e o seu diretor Volodymyr Vyatrovich, acusando-os de «distorcer fatos históricos» e de tornar palatável o fascismo, ao negarem o caráter nazista da Divisão Galícia. Em 27 de maio de 2020, após 20 audições, o Tribunal Administrativo do Distrito de Kiev considerou pertinente a reclamação de Myasnikova, classificou os símbolos da Galícia como nazistas e, portanto, ilegais. Foi sol de pouca duração. Quatro meses depois, o Tribunal da Relação de Kiev cancelou a decisão. O veredito, veio a se saber, foi pronunciado em circunstâncias reveladoras da qualidade democrática do regime ucraniano: dois dos três juízes, Elena Kuzmishina e Natalya Buzhak, confirmaram terem sido previamente ameaçados. Segundo declararam à polícia, «patriotas» anônimos acusaram-nos de «serem cúmplices dos separatistas putinistas e dos seus lacaios no poder» e prometeram puni-los caso a decisão do tribunal administrativo não fosse revertida. Na Ucrânia, tais ameaças são levadas muito a sério.
7. Darden, Keith. «Resisting Occupation: Lessons from a Natural Experiment in Carpathian Ukraine», palestra no Kennan Institute, Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington DC, 9 de Abril de 2007.
8. Katchanovski, Ivan. «Ethnic Cleansing, Genocide or Ukrainian-Polish War in Volhynia?» (27 de agosto de 2020). Artigo preparado para apresentação no Encontro Anual da American Political Science Association, 10-13 de Setembro de 20201.
9. Os discípulos de Dontsov e Bandera e as multidões por eles inspiradas, quando à rédea solta, comportaram-se como verdadeiros psicopatas, em nada ficando a dever, em imaginação, aos piores sonhos de Sade: «[…] os partisans ucranianos e os seus aliados [é assim que o autor designa os partidários de Bandera e os alemães] queimaram casas, dispararam sobre as pessoas ou obrigaram-nas a voltar para dentro, e usaram foices e forquilhas as que foram capturadas no exterior. Igrejas cheias de crentes foram totalmente queimadas. Os partisans expuseram corpos decapitados, crucificados, desmembrados ou esventrados, para encoragar os polacos sobreviventes a fugir.». Ver Snyder, Timothy. The Reconstruction of Nations Poland, Ukraine, Lithuania, Belarus, 1569–1999, Yale University Press (New Haven, London, 2003), p. 169. Um site antifascista russo documentou o primeiro pogrom em Lviv (1941) e vários massacres na Volínia (1943), incluindo a reconstituição polaca de várias formas de assassinato usadas pelos nacionalistas ucranianos. Um autêntico catálogo de horrores.
10. Em russo e ucraniano a frase é expressiva: «Наш дипломат это автомат» (lê-se «nách diplomát éta avtomát»).
11. O texto da lei define como «povo indígena da Ucrânia» uma entidade étnica minoritária, formada no território da Ucrânia e que não tenha uma entidade estatal própria além fronteiras. A definição é feita com régua e esquadro para excluir os milhões de cidadãos da comunidade russa, mesmo que esta seja maioritária em várias regiões do país. Para que não restem dúvidas, um anexo da lei clarifica que apenas podem considerar-se povos autóctones os tártaros da Crimeia, os Karaims e os Krymchaks – os dois últimos não chegam a mil habitantes. O responsável russo da Crimeia, Serguei Aksenov, comentando o documento, declarou que nos sete anos de ligação da península à Rússia foi feito mais do que nos 23 anos em que a mesma esteve ligada à Ucrânia. E lembrou a constituição da Crimeia, que garante direitos iguais às línguas russa, ucraniana e tártara, sublinhando a diferença «entre uma política nacional responsável e politiquice». A deputada arménia Naira Zohrabyan, membro da delegação do seu país ao PACE, considerou que a nova lei «oprime os direitos das minorias nacionais que vivem no território» da Ucrânia, nomeadamente russos, húngaros, polacos, romenos, bielorrussos, eslovacos e gregos, e solidarizou-se com o projecto da delegação russa a respeito dessas violações de direitos humanos. A lei de 2021, antecedida pela lei da Língua Ucraniana como Língua do Estado (2019) e pela lei Sobre os Fundamentos da Política Linguística do Estado (2012), foi o último prego no caixão de um edifício legislativo criado para liquidar a democrática Declaração dos Direitos das Nacionalidades da Ucrânia (1991), a qual, «tomando em consideração que cidadãos de mais de 100 nacionalidades vivem no território da Ucrânia, os quais, com os ucranianos, integram os mais de 52 milhões de pessoas» que constituem o país, garantia expressamente o estatuto da língua russa, equiparada a uma língua estatal nas comunidades territoriais onde o seu uso era predominante.
12. As localidades de Pristyn e Troitza ficam na região de Ivano Frankivsk. A atribuição do título de herói a Simchich despertou a memória dos massacres que dirigiu e nos quais diretamente participou. Fontes russas publicaram a descrição dos crimes e incluíram fac-símiles dos depoimentos das testemunhas.
13. Eduard Dolinsky, que vive em Kiev e se encontra à frente do Comité Judaico da Ucrânia, está em perigo por denunciar corajosamente a recuperação do nazismo na actual Ucrânia e o aberto antisemitismo reinante, que os meios de informação ocidentais ocultam. Tem sido ameaçado de morte e faz parte da lista negra do site Mitrodvorets. A sua descrição na Wikipédia ucraniana é significativa.
14. A biografia de Dontsov na Wikipédia, seja em inglês ou em português, está convenientemente «higienizada» quanto ao seu relacionamento com o nazismo. Será preciso traduzir entradas noutras línguas para esclarecer esse ponto: «Com a chegada de Benito Mussolini ao poder em Itália, Dmitry Dontsov é imbuído da sua política, admira-o pessoalmente. Sob a influência das ideias fascistas Oeste-Europeias escreve e publica o livro Nacionalismo, no qual esboçou a teoria do nacionalismo integral que, por sua vez, foi aceite como a ideologia oficial da Organização de Ucranianos Nacionalistas (OUN). «A subida ao poder do Partido Nazista na Alemanha mereceu a sua aprovação. Escreve um prefácio para o livro Hitler, de Rostyslav Yendyk, em que fala da grande relevância do hitlerismo para os ucranianos». Ver Wikipédia em russo.
15. Os atuais discípulos de Dontsov, tal como ele, só não se declaram fascistas ou nazistas para garantir a singularidade do movimento ucraniano, mas é fascista e nazista a essência da sua visão para a sociedade ucraniana. O historiador Rossoliński-Liebe assinalou que «In the early 1920s, Dontsov also rejected “fascism” as a name for the Ukrainian movement, because the Italians had used it already. Nevertheless, he approved of and was enthusiastic about fascism as a political system and was pleased that Italian Fascism was so similar to Ukrainian nationalism.39». E quanto à identificação do pai espiritual dos atuais nazistas com Mussolini e Hitler, escreveu: «Dontsov’s fascination with fascism and fascist leaders began with his admiration of Italian Fascism and Benito Mussolini, but the ideal of a fascist state and a fascist leader for him were Nazi Germany and Adolf Hitler. Already in 1926, Dontsov translated into Ukrainian and published parts of Hitler’s Mein Kampf. When Mussolini’s The Doctrine of Fascism (La Dottrina Del Fascismo) appeared in 1932, he translated and published it as well.» Rossoliński-Liebe, Grzegorz. «The Fascist Kernel of Ukrainian Genocidal Nationalism», in The Carl Beck Papers in Russian & East European Studies, n.º 2402/June 2015 (University of Pittsburgh, PA).
16. Após o assassinato de Heydrich pela resistência, em sua homenagem, a instituição passou a designar-se Instituto Reinhard Heydrich. Trevor Erlacher, Ukrainian Nationalism in the Age of Extremes: An Intellectual Biography of Dmytro Dontsov, Harvard University Press (2021), p. 388.
17. Stetsko não esperou pelos alemães para pôr em prática o extermínio de judeus. Uma «multidão carnavalesca» – como lhe chamou o historiador John-Paul Himka – incitada pelos nacionalistas ucranianos liquidou, nesse mês de julho de 1941, cerca de 9 mil vidas. Três anos depois, quando os nazistas alemães e os seus cúmplices ucranianos foram escorraçados, subsistiam apenas mil dos 160 mil judeus do ghetto de Lviv. Himka, John-Paul. «The Lviv Pogrom of 1941: The Germans, Ukrainian Nationalists, and the Carnival Crowd». Canadian Slavonic Papers, vol. 53, n.º 2-4, McGill University (Montreal, 2011), p. 209-243.
18. Desfile da Divisão SS Galícia perante dignatários nazis, no dia da sua apresentação pública, em Lviv, no ano de 1943.