O advogado das FARC fala: A paz em perigo
Resumen Latinoamericano
“O promotor não deveria atuar como se o processo de negociações estivesse aberto”
O advogado espanhol Enrique Santiago, assessor jurídico das FARC, denuncia em uma entrevista para a revista colombiana Semana, que os juízes estão descumprindo a Lei de Anistia e adverte que, da parte da Promotoria, se visa esvaziar de conteúdo a Jurisdição Especial de Paz.
SEMANA: O que vem atrasando a aplicação da anistia para os guerrilheiros das FARC?
Enrique Santiago: Salvo honrosas exceções, os juízes e promotores não estão aplicando a anistia nem aprovando as liberdades condicionadas contempladas na Lei de Anistia, em vigência há mais de 40 dias. Os argumentos esgrimidos em muitas resoluções judiciais são surpreendentes: que se desconhece se no futuro os anistiados voltarão à rebelião; que ainda não existe a Jurisdição Especial para a Paz (JEP); que a Procuradoria Geral não emitiu circular indicando aos promotores como cumprir a lei; ou que o Governo não lhes deu indicações. Em um Estado de Direito, para que o poder judiciário aplique uma lei, não é necessária nenhuma instrução do poder executivo, nenhuma circular do procurador geral.
De fato, os interessados podem solicitar a anistia, porém a Lei também estabelece que os juízes e promotores podem aplicá-la de ofício. Algo que só fazem, atualmente, dois juízes de execução penal de Ibagué e Cali. A não aplicação de uma lei de anistia à finalização de um conflito armado é inédita e confirma que somente uma nova jurisdição para a paz estaria em condições de aplicar justiça após a finalização do conflito.
SEMANA: Como este atraso pode afetar o abandono das armas?
E.S.: Sem a aplicação da anistia e sem a colocação em liberdade daqueles integrantes ou colaboradores das FARC que têm tal direito, segundo o Acordo Final, é irresponsável pretender exigir o abandono das armas. As FARC estão mostrando um compromisso com o processo de paz mais explícito e efetivo que o manifestado por várias instituições do Estado. Imagino que tanto a Procuradoria Geral da Nação como os tribunais são conscientes de que a inaplicação da anistia provoca grande mal estar entre os guerrilheiros presos e entre as bases guerrilheiras. Isto gera desconfiança, pois coloca em dúvida a vontade de cumprimento do Estado e, portanto, estimula as dissidências dentro das FARC. Em minha opinião, existem setores interessados em fazer fracassar o acordo de paz por esta via.
SEMANA: Para onde irão os presos anistiados?
E.S.: Qualquer anistiado tem direito de ir para onde quiser, porque é uma pessoa plenamente livre. No entanto, na prática, a imensa maioria de anistiados não tem para onde ir. Isso porque seu único lar foram os acampamentos guerrilheiros ou porque nestes momentos, nos quais o paramilitarismo se move livremente por muitas regiões do país, é altamente perigoso ir para as casas de familiares ou amigos. Diferentes redes de solidariedade estão trabalhando na acolhida dos anistiados em lugares dignos e seguros.
SEMANA: Em que momento se aplica a anistia aos guerrilheiros que estão nas zonas de transição?
E.S.: A anistia se aplica uma vez que cada guerrilheiro deixa as armas e inicia a transição para a vida civil, ao assinar a ata de compromisso com o cumprimento do Acordo de Paz. Afirmamos: O Acordo Espacial “não foi um ato de loucura nem de improviso”.
SEMANA: O promotor Néstor Humberto Martínez disse que os membros das FARC estariam cometendo alguns delitos continuados, como sequestro e lavagem de dinheiro. Existe um limbo nestes casos?
E.S.: Não existe nenhum limbo jurídico. E se existisse, o Acordo diz que os competentes para decidir sobre qualquer situação são os juízes colombianos que integrarão a JEP, não a Procuradoria Geral da Nação. O que ocorre é que a Procuradoria está formulando propostas de maneira extemporânea, e todas com a mesma finalidade: transferir a competência da JEP sobre determinadas condutas à justiça ordinária. E isso viola tanto os princípios básicos do direito como o Acordo de Paz e o construído durante anos em Havana. Parece que o procurador geral pretende renegociar o Acordo. Um Acordo de Paz que coloque fim a um conflito armado de 50 anos exige centenas de compromissos e cessões de ambas as partes. Seu resultado é um delicado equilíbrio. O senhor promotor não deveria atuar como se o processo de negociações estivesse aberto.
SEMANA: Quando e como será então a entrega de bens e dinheiro por parte das FARC?
E.S.: A regularização dos recursos econômicos das FARC está expressamente recolhida e detalhada no Acordo Final. Esse processo se efetuará conjuntamente com o Governo e concluirá antes de finalizar o processo de entrega de armas. A esse respeito, a Procuradoria faz manifestações que confundem a opinião pública. Da visão que as FARC visam seguir à margem da lei e realizando atividades ilícitas. Está sendo difundida uma mensagem falsa e indigna, incompatível com a construção de paz e a reconciliação.
Chama a atenção tanta preocupação da Procuradoria pelos crimes do passado, de competência da JEP, os ocorridos durante uma guerra que terminou e, no entanto, tão poucos resultados a respeito dos crimes de hoje, que – sim – são de sua competência e que ameaçam seriamente a paz tão dificilmente construída em Havana.
Até agora a Procuradoria não deu resultados eficazes sobre os quase 20 defensores de direitos humanos assassinados nos primeiros 40 dias de 2017. Tampouco sobre os 70 assassinados no ano passado. Menos ainda se conhece alguma detenção de paramilitares uniformizados que estão dominando territórios abandonados pelas FARC. Creio que a Procuradoria tem uma grande confusão atualmente a definição de suas prioridades.
SEMANA: Existe alguma razão jurídica para a demora na entrega de menores por parte das FARC?
E.S.: Não existe nenhuma demora a respeito dos prazos de saída de menores dos acampamentos das FARC, o que foi acordado e está sendo cumprido. Existem atrasos na execução do programa, em criar as condições para levar adiante os itinerários de acolhida dos menores. Se não existem lugares preparados para acolher os menores, obviamente estes não podem abandonar os acampamentos. Não se contempla nos acordos a saída de menores para que fiquem abandonados ou, inclusive, presos como está ocorrendo. É urgente que o Governo acabe com a situação em que vivem ao menos 11 menores reclusos em instituições penais de menores, acusados ou condenados por pertencer às FARC, aos quais tampouco foi aplicada a anistia até a data de hoje. Em todo caso, o programa de saída de menores de acampamentos das FARC segue adiante. Nunca se deixou de cumprir os acordos sobre esta matéria.
SEMANA: Existe uma grande controvérsia sobre se a JEP, tal como ficou no ato legislativo que a cria, viola o artigo 28 do Estatuto de Roma. O que você pensa a respeito?
E.S.: No Acordo Final de 24 de novembro constam regulações diferenciadas da responsabilidade por cadeia de comando, a respeito de rebeldes e civis por um lado, e para a força pública de outro. As críticas vertidas por parte de âmbitos especializados ou internacionais sobre a regulação da responsabilidade por cadeia de comando foram exclusivamente sobre o modelo aplicado à força pública.
Em minha opinião, nota-se uma tentativa de provocar que a responsabilidade por cadeia de comando recaia exclusivamente sobre oficiais e suboficiais já condenados, o que exclui ou dificulta a determinação com relação a outros chefes superiores. Parece-me uma opção errônea que pode ter muitas dificuldades para ser aplicada pela JEP. Sobretudo, me parece uma proposta muito torpe, pois coloca os altos oficiais das Forças Militares na mira da Corte Penal Internacional. Eu nunca recomendei aos meus assessorados uma solução jurídica dessas características.
SEMANA: Estão sendo modificados aspectos substanciais da JEP no Congresso?
E.S.: Existe uma clara tentativa de fazê-lo. Parece que sempre para endurecer as normas aplicáveis a respeito dos guerrilheiros e ao invés de favorecer àqueles setores acostumados a viver na impunidade. A Procuradoria apresentou diferentes propostas para limitar a competência da JEP sobre terceiros, civis ou ao menos para impedir na prática sua submissão à JEP. Por exemplo, pretende incluir somente com relação aos civis os procedimentos que devem ser sustentados por provas obtidas fora dessa jurisdição. Ou seja, que as provas provenham do mesmo sistema jurídico colombiano que permitiu a impunidade estrutural para certos setores. Também propôs que os procedimentos sobre civis fossem reservados, diz que para salvaguardar o direito à intimidade e o bom nome, como se os agentes do Estado ou os guerrilheiros não tivessem os mesmos direitos. É claro que se torna incompatível a reserva absoluta de procedimento com um sistema construído sobre o fornecimento de verdade e reconhecimento de responsabilidades. Que verdade seria aquela que não se pode tornar pública?
Em qualquer caso, a alteração unilateral e substancial do estabelecido no Acordo Final constituiria um grave descumprimento pelo Estado do acordado. Apesar disso, as FARC vêm aceitando distintas propostas de ajustes à JEP quando melhoram o Acordo de Paz e têm um alto consenso social e institucional.
SEMANA: A blindagem dos acordos se esboçou através de vários mecanismos internacionais. Estão sendo aplicadas?
E.S.: Segundo reza o Acordo, depois da entrega do texto na Suíça, deve-se aplicar dois instrumentos de direito internacional: uma declaração unilateral do Estado ante a comunidade internacional anunciando seu compromisso de cumprir o acordado e a solicitação ao Conselho de Segurança das Nações Unidas de que incorpore o texto íntegro do Acordo Final a um documento oficial de dito Conselho. Até a data de hoje, não efetuou nem um nem outro, apesar de que a implementação do Acordo começou e as FARC ingressaram nas Zonas de Transição para proceder com o abandono de armas.
SEMANA: O tempo corre e dá a impressão de que não será possível alcançar todas as leis através do fast track…
E.S.: Existem atrasos na implementação e estes se devem aos inimigos da paz, que ainda são muitos e poderosos, se esforçam por meio de todas as instituições que possuem presença para tornar inaplicável o Acordo Final e voltar à guerra. Existe pânico a que se conheça a verdade. A Colômbia está em uma autêntica encruzilhada histórica. Uma oportunidade de paz, desenvolvimento e modernização como esta só se apresenta uma vez a cada século. Seria bom que a sociedade estivesse alerta sobre as dificuldades e resguardasse o processo de implementação.
SEMANA: Não são normais estas dificuldades no começo?
E.S.: O que vai mal não é devido às normais dificuldades de início, que também existem. Um setor destacado da classe política, sustentado por grupos econômicos, trabalha sem descanso para fazer naufragar o Acordo de Paz do Teatro Colón e qualquer possibilidade de paz diferente de uma “paz dos cemitérios”. Asseguro que o que mais desejaria nestes momentos é estar profundamente equivocado sobre a afirmação anterior
Foto: O advogado espanhol Enrique Santiago, assessor jurídico das FARC
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)