A outra face da OTAN
A OTAN é o principal braço armado do imperialismo. Mas os meios que utiliza não se resumem às agressões militares abertas. Tem também um longo e criminoso currículo de organização de grupos clandestinos e acções secretas de carácter terrorista e fascista.
Todos nós já vivemos um lapso de tempo durante o qual numerosos sucessos conduziram a conflitos armados em quase todas as partes do mundo. A génese desses conflitos tem sido quase sempre intrigante. As notícias sobrecarregadas de imagens e as análises convertidas em propaganda, com suas doses de racionalidade e de emoção, as mensagens subliminares que circulam, a avalanche de factos e mensagens que nos submerge, anestesiam o observador que de cidadão corre o risco de ser convertido em espectador.
A racionalidade que justifica a inevitabilidade que desemboca em guerra é uma manipulação cruel e ignóbil. Compreender a realidade subjacente a “fazer a guerra” passa por entender um bocado de história e de economia e outros conhecimentos mais. Mas não basta depurar e avaliar os factos visíveis. É preciso ir aos estratos ocultos da realidade, porque “fazer a guerra” passa muito por ocultar, intimidar, manipular e mentir. Ao “inimigo”, aos aliados e ao próprio povo.
Obras publicadas por antigos oficiais na reserva e investigações conduzidas por novos investigadores têm vindo a iluminar, ainda que palidamente, essa face oculta de “fazer a guerra”. A OTAN, cumpridos sessenta anos de experiência no terreno sob a liderança dos EUA, durante os quais esta potencia e aquela aliança acumularam uma impressionante sucessão de acções e golpes militares, de batalhas e de guerras prolongadas à roda do mundo, merece particular atenção. Muito do que se passa no mundo tem ou ameaça ter a sua mão. No Médio Oriente, nos Balcãs, no Cáucaso, na Ásia Central, na América Latina e em África, lá onde os conflitos e as guerras se sucedem “inexplicavelmente” – como se esse fosse o estado normal da natureza humana, o que não é.
Este artigo tomou como ponto de partida o trabalho do investigador suíço Daniele Ganser e outras investigações que têm emergido recentemente sobre a estratégia de tensão e particularmente a “Operação Gladio” conduzida sob os auspícios da OTAN [1].
UMA REVELAÇÃO NO FIM DA GUERRA-FRIA
Em Itália, 1990, o juiz Felice Casson, enquanto investigando actos terroristas atribuídos à extrema-direita, descobriu nos arquivos dos serviços secretos militares italianos evidência de um até então desconhecido “exército de retaguarda” com ligação à OTAN. Um documento datado de 1 de Junho de 1959 registava a existência de um “comité de planeamento clandestino” (CPC) directamente conectado ao supremo quartel-general das forças aliadas na Europa (SHAPE) sediado em Bruxelas, comité que coordenaria operações anti-comunistas clandestinas e operações armadas não convencionais. O mesmo documento remetia para um outro anterior, de 16 de Novembro de 1956, um acordo entre a CIA e o SIFAR (anterior serviço de informações das forças armadas italianas) que constituía a base da Operação Gladio [2,3].
O assunto foi levado ao Senado italiano, que no Verão desse ano de 1990 constituiu uma comissão de investigação na qual o primeiro-ministro Giulio Andreotti comprovou a existência da referida cooperação entre os serviços secretos dos dois países, sob a coordenação da OTAN através do citado CPC e de um outro “comité clandestino aliado” (ACC). «Após organizada a [dita] resistência clandestina, a Itália foi chamada a participar nos trabalhos do CPC em 1959, no âmbito do “supremo quartel-general das forças aliadas na Europa” (SHAPE), […] em 1964 os serviços secretos italianos entraram também para o ACC, um organismo encarregue de coordenar a rede de evasão e fuga entre as várias nações» [4].
O primeiro-ministro mais informou e descreveu a existência de numerosos esconderijos de armamento e outros equipamentos espalhados pelo país, para aprovisionamento de unidades de guerrilha de retaguarda, independentes das forças regulares. E alegou que todos os primeiros-ministros anteriores o haviam sabido também. Vários outros políticos negaram colaborar no inquérito ou o conhecimento dos factos. Só o Presidente da Republica de então, Francesco Cossiga, o confirmou e por se orgulhar de ter sido anteriormente (logo após a Segunda Guerra Mundial) parte activa na implementação da Operação Gladio. O relatório da comissão do Senado foi publicado em 1995, não obstante o silencio de várias partes inquiridas e as dificuldades de consensualização no seio da mesma comissão [5,6].
Ainda assim a investigação estabeleceu que: «Obviamente as tensões que caracterizam estes 40 anos e que foram objecto de análise tiveram também raízes sociais e portanto internas. Contudo, tais tensões nunca teriam perdurado tanto tempo e não teriam atingido tão trágicas dimensões, e o caminho da verdade não teria sido bloqueado tantas vezes, se a situação política interna não tivesse sido condicionada e supervisionada pelo quadro internacional em que a Itália estava integrada» [7,8].
Os senadores reflectiam neste texto sintético o elevado nível atingido pela violência na Itália durante a Guerra-Fria comparativamente a outros países europeus. Na década de 70, acções terroristas, maioritariamente conduzidas por comandos de extrema-direita, provocaram cerca de 5 mil mortes; só no ano de 1978 registaram-se mais de 3 mil acções da extrema-direita, de que resultaram 831 mortos e 3121 feridos. O trágico rapto e assassínio de Aldo Moro em 1978 às mãos das “Brigadas Vermelhas” foi um acontecimento significativo; Aldo Moro, então presidente da Democracia Cristã, que fora chefe de governo por várias vezes e que então era o negociador do “compromisso histórico” entre a Democracia Cristã e o Partido Comunista para formação de um novo governo bipartidário foi, segundo vários testemunhos, “sacrificado” para proteger a Operação Gladio e fazer valer os objectivos desta. Nas palavras de Steve Pieczenik, agente enviado pelo Presidente dos EUA para integrar a “comissão de crise” que acompanhou o rapto: «Tivemos de sacrificar Aldo Moro para manter a estabilidade da Itália» [9] [10].
Um grupo de senadores encabeçados por Giovanni Pellegrini prosseguiu a sua investigação e publicou um relatório adicional em 2000. Aí afirmam que, para além de preparar a resistência a uma hipotética invasão soviética, a organização paramilitar secreta Gladio combateu os Partidos Comunista e Socialista Italianos, em colaboração com a CIA, os serviços secretos militares italianos e terroristas de extrema-direita italianos, a pretexto de que aqueles partidos atraiçoassem a OTAN a partir do interior do país. Segundo o juiz Felice Casson, a estratégia de tensão foi aplicada durante a Guerra-Fria em contra-posição à esquerda italiana «isto é, visando criar tensões no seio do país a fim de promover tendências sociais e políticas conservadoras e reaccionárias (…) enquanto a estratégia era aplicada, era necessário proteger os que estavam por detrás dela, porque a evidencia que os implicava estava sendo descoberta. As testemunhas retiveram informação para protegerem os extremistas direitistas» [11,12].
Na análise de Daniele Ganser, a bivalência dos exércitos secretos manifestou-se diferentemente nos diferentes países, de acordo com a situação política interna de cada um. Em Itália, onde o partido comunista emergiu da guerra com prestígio pelo seu papel na resistência ao nazi-fascismo, com forte intervenção na vida política do país e implantação eleitoral, a Gladio teve um forte envolvimento na manipulação e desestabilização da vida política do país, que contribuíram para o enfraquecimento do sistema democrático. Na Suíça, onde aquelas condições não se verificaram, as respectivas consequências também não. Ainda segundo esse autor, em Espanha, Portugal, Grécia e Turquia, países com acentuado ascendente das forças armadas na vida política, os exércitos secretos intervieram no combate às oposições aos respectivos regimes [13].
Em 22 de Novembro de 1990, o Parlamento Europeu debateu as então recentes revelações das investigações feitas pelo juiz Felice Casson e pelo Senado italiano. A questão suscitou reacções desencontradas das várias famílias políticas, uns valorizando a “prudente precaução” outros as “fontes de terror”, uns denunciando a manipulação conduzida pelos exércitos secretos que em nome da defesa da democracia de facto a debilitaram, outros a ofensa aos órgãos de soberania a cujo controlo essas organizações clandestinas se subtraíram. Sem competências expressas nas esferas da defesa e segurança, o Parlamento apenas aprovou uma resolução de protesto dirigida à OTAN e aos EUA, e recomendou «a todos os estados membros que tomassem medidas, se necessário constituindo comissões parlamentares de inquérito, para recensear a lista completa de organizações envolvidas, e ao mesmo tempo apurar as suas ligações aos respectivos serviços de inteligência de estado, e as suas eventuais ligações com grupos terroristas e ou outras práticas ilegais». Apenas a Itália, a Bélgica e a Suíça (esta não sendo da União) realizaram investigações parlamentares e publicaram os correspondentes relatórios. Demais instâncias de países europeus, bem como dos EUA e a OTAN, não deram qualquer seguimento às interpelações ou recomendações – prolongando o silenciamento de numerosos atentados terroristas e crimes de morte, e de usurpação de direitos e garantias fundamentais e de soberanias de estado.
Nas palavras do MP Vandemeulebroucke: «os orçamentos destas organizações secretas são igualmente secretos. Não foram discutidos em qualquer parlamento. E nós queremos expressar a nossa preocupação pelo facto de (…) agora se descobrir que existem centros de tomada de decisão e de sua consecução que não estão sujeitos a qualquer forma de controlo democrático». E nas do MP Falqui: «Não haverá um futuro, senhoras e senhores, se não eliminarmos a ideia de termos vivido numa espécie de estado dual – um aberto e democrático, o outro clandestino e reaccionário. É por isso que queremos saber o quê e quantas redes Gladio têm existido nos anos recentes nos estados membros da Comunidade Europeia» [14].
A GÉNESE DESSAS ORGANIZAÇÕES SUBVERSIVAS
Operações secretas na retaguarda da frente inimiga atingiram larga extensão durante a Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill, 1940, criou um exército secreto britânico designado “Executivo de Operações Especiais” (SOE) cuja missão era «incendiar a Europa através do apoio a movimentos de resistência e da condução de acções subversivas em território detido pelo inimigo» [15]. O SOE manteria íntimas relações com os serviços de outros países onde o Reino Unido operou.
Em Outubro de 1945, o estado-maior britânico determinou a criação de uma rede, baseada na experiência da SOE, capaz quer de rápida expansão em caso de guerra, quer de assistir operações clandestinas britânicas em tempo de paz. Consequentemente, após a Guerra, alicerçados na longa experiencia do SOE em guerra secreta, os serviços secretos estrangeiros britânicos MI6 desempenham um papel fulcral no estabelecimento de exércitos secretos de retaguarda anti-comunista, organizados por vários serviços secretos nacionais estrangeiros [16].
Em Novembro de 1990, quando a Operação Gladio foi revelada na Itália com suas ramificações pelo continente, o primeiro-ministro John Major declinou comentar as revelações e as suspeitas. Mas o general italiano Gerardo Serravalle que comandara a Gladio italiana entre 1971 e 74, em entrevista à BBC em 1991 confirmou a intensa colaboração mantida com a organização britânica. Pela mesma altura foi confirmado também o íntimo envolvimento britânico com os serviços secretos suíços [17,18].
Em breve os serviços secretos norte-americanos se infiltrariam beneficiando da cumplicidade Anglo-Americana. Lício Gelli, líder da loja maçónica P2, desmascarada em Itália em 1981, ardente anti-comunista que manteve cumplicidades com os norte-americanos, bem como Rupert Allason, conservador inglês, editor de Intelligence Quarterly, confirmaram a secreta cooperação Anglo-Americana no apoio às redes de retaguarda anti-comunista na Europa ao longo da Guerra-Fria [19,20].
Os modernos serviços secretos norte-americanos foram também inspirados e assistidos pelos serviços secretos britânicos, desde o início da Segunda Grande Guerra Mundial, tirando partido da experiencia do SOE. Após o fim da Guerra, em 1947, os serviços norte-americanos foram reestruturados na “Central Intelligence Agency” (CIA) e no “National Security Council” (NSC). Logo em Junho de 1948 o NSC emitiu uma directiva autorizando a CIA a levar a cabo acções clandestinas em todo o mundo e criando um ramo da CIA (designado OPC) dedicado a tais acções.
Tais acções abrangiam e abrangem «propaganda, guerra económica, acções preventivas incluindo sabotagem, anti-sabotagem, demolição e medidas de evacuação; subversão contra estados hostis incluindo apoio a movimentos de resistência clandestinos, grupos de guerrilha e de libertação refugiados, e apoio a elementos autóctones anti-comunistas em países do mundo livre ameaçados». Todavia a directiva excluía a guerra convencional: «Tais operações não incluirão conflitos armados por forças militares identificadas, espionagem, contra-espionagem, nem acções de encobrimento e diversão para operações militares» [21].
Uma investigação no Senado dos EUA, liderada por Frank Church, concluída em 1976, verificou que as acções encobertas da CIA, até 1950 se haviam focalizado no estabelecimento de exércitos de retaguarda na Europa Ocidental, visando apoiar as forças armadas da OTAN face a um hipotético ataque soviético; após o que essas acções passaram a compreender também golpes de estado e assassiOTANs de personalidades estrangeiras [22].
Uma investigação no Senado da Bélgica, no seguimento da “descoberta” dos exércitos secretos de retaguarda da OTAN, revelou que desde 1948 existiu um “comité clandestino da união ocidental” (CCWU), que reunia regularmente responsáveis de serviços secretos europeus tendo em vista coordenar a guerra secreta não convencional anti-comunista. Quando o Tratado de Washington fundou a OTAN em 1949, esse CCWU foi silenciosamente integrado na OTAN, tendo tomado o nome “Clandestine Planning Committee” (CPC). Os senadores também confirmaram que um segundo centro de comando, designado “Allied Clandestine Committee” (ACC), tinha sido estabelecido em 1957 à ordem do supremo comando aliado para a Europa (SACEUR) [23].
O Pentágono, juntamente com a CIA, dirigia os exércitos clandestinos na Europa, enquanto no supremo comando SACEUR, um general norte-americano, supervisionava esses exércitos secretos.
A rede de guerra clandestina foi montada em extremo secretismo. Quando foi revelada em 1990, o porta-voz da OTAN negou-a categoricamente num primeiro momento, a 5 de Novembro. No dia seguinte, um outro porta-voz declarou que o anterior desmentido fora falso, e que a OTAN nunca comenta matérias de segredo militar [24].
A GLADIO EM PORTUGAL
Após a Segunda Guerra Mundial, o movimento anti-fascista português acreditou que havia chegado a hora de mudança de regime e mobilizou-se para esse efeito. Porém a ditadura contou ainda com as suas forças internas, a polícia política e a Legião Portuguesa; como contou ainda com solidariedade externa, sobretudo da parte dos EUA, que lhe assegurou o acesso à OTAN em 1949.
Aquando da revelação da Operação Gladio em Itália, 1990, a imprensa portuguesa publicou noticias relativas à existência de um braço da Gladio em Portugal, organizado no seio da OTAN e financiado pela CIA, localmente dirigida pela PIDE e dissimulada na Aginter Press. Gládio teria estado envolvida em assassínios em Portugal e em suas antigas colónias. Nomes referidos a propósito incluem Humberto Delgado, Eduardo Mondlane e Amílcar Cabral; embora a íntima cooperação entre várias organizações secretas com missões semelhantes ou complementares, de que a Operação Gladio era extensão e parte, torna essa atribuição individualizada vazia de sentido [25].
Segundo a investigação feita pelo Senado italiano, Aginter Press escondia um exército secreto comandado pelo capitão Yves Guillon, alias Yves Guerin-Serac, um francês veterano das guerras da Coreia, da Argélia e do Vietname; e bem assim um centro de informação da CIA-PIDE especializado em acções provocatórias; mais apurou que o ramo português da Gladio providenciara treino a elementos da extrema-direita italiana, a pista que havia conduzido a investigação até Portugal [26, 27].
Guerin-Serac chegou a Portugal em fins de 1962, tendo sido integrado como instrutor na Legião Portuguesa, organização paramilitar fascista de apoio ao regime, e depois numa unidade anti-guerrilha militar. Em Setembro de 1966, foi um dos que se constituíram na Aginter Press, nome apto a dissimular o apoio financeiro e operacional recebido de serviços secretos estrangeiros, para além da PIDE, e a presença de operacionais e aventureiros de várias nacionalidades. Segundo o próprio Guerin-Serac, «As nossas forças compreendem dois tipos de homens: Oficiais que vieram até nós depois de combaterem na Indochina e Argélia, e alguns mesmo após a guerra da Coreia (…) Intelectuais que, nesse período se dedicaram ao estudo das técnicas de subversão Marxista (…) Durante este período estabelecemos contactos próximos entre grupos que emergiam em Itália, Bélgica, Alemanha, Espanha e Portugal, com ideias afins, com o fito de formarmos o núcleo de uma verdadeira Liga Ocidental de Luta contra o Marxismo» [28].
Também segundo Guerin-Serac a Aginter Press participou, em colaboração com a CIA e a Força Especial de Barretes Verdes (EUA), em grupos operacionais na campanha “antiterrorista” que na Guatemala, entre 1968 e 1971, terá provocado cerca de 50000 mortos. Aginter esteve depois envolvida na guerra secreta que no Chile, em 1973, conduziu ao assassiOTAN do Presidente legítimo Salvador Allende e à instalação do ditador Augusto Pinochet [29].
Aquando do 25 de Abril de 1974, a sede da Aginter Press em Lisboa foi encerrada, documentação e operacionais desapareceram. No relato de um jornalista italiano: «Três colegas meus estavam lá quando os arquivos da Aginter foram confiscados. Tiraram fotos de partes, muito poucas, do grande volume de informação confiscada (…) Os documentos foram destruídos pelos militares portugueses porque obviamente eles recearam complicações diplomáticas com os governos de Itália, França e Alemanha, caso as actividades da Aginter nos vários países europeus fossem reveladas» [30].
E quando em Novembro de 1990 chegou a revelação, as autoridades portuguesas questionadas negaram peremptoriamente existir qualquer registo da existência ou actividade da “estrutura Gladio” em Portugal [31].
Mas a investigação feita no entretanto revelou a Aginter Press como uma organização de sinistro sucesso. Não só pela sua intervenção intimidatória e repressiva em Portugal, e na sabotagem política aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas; como também no suporte a organizações neo-fascistas e na manipulação de organizações esquerdistas na Europa, e ainda no treino e fornecimento de meios conducentes a actos violentos no quadro da estratégia de tensão; e mais além, no apoio a organizações ou regimes repressivos e criminosos na América Latina. [32]
Extintas no 25 de Abril, a PIDE e a Aginter Press, os seus agentes e operacionais dispersaram. Dos elementos mais responsáveis da PIDE alguns foram presos e levados a julgamento, a maioria dissimulou-se. Dos elementos da Aginter a maioria terá prosseguido a sua carreira criminosa no estrangeiro, outros ficaram dormentes no país. No auge do processo revolucionário, entre 1974 e 1976, de uns e de outros ressurgiu o Exercito de Libertação de Portugal (ELP) que, à sua maneira, prosseguiu a mesma estratégia de tensão, a clássica missão da Gladio, lançando acções terroristas, contra-informação, reanimação de grupos neofascistas, desestabilização política, visando eliminar a ferro e fogo e pela mentira a organização e o prestígio das forças democráticas incluindo o Partido Comunista. [33]
A Operação Gladio encontrou em Portugal terreno fértil durante a ditadura.
Um documento revelador da sua natureza e acção é uma carta de intimidação remetida a anti-fascistas na década de 60 ainda antes da constituição da Aginter Press. Essa carta ostenta a figura de um capacete romano com a palavra Gladius, e é subscrita por “Os Centuriões”. Dela destacamos as seguintes passagens: «Somos Cem. Poderíamos ser milhares a afirmar a Nação e defende-la dos Abutres e dos Traidores: dos abutres de fora; dos traidores de dentro. – Para afirmar a Nação e defendê-la dos Abutres seremos dezenas de milhar. Para defender a Nação dos traidores somos Cem. – Centuriões regressados de Angola, Moçambique e Guiné – somos cem. Condenamos a traição que o governo e os seus órgãos não consegue reprimir por meios legais. Somos cem que vimos tantas vezes a morte de perto que ela se tornou familiar. A morte será a nossa arma contra a traição!»
De forma sucinta, este documento comporta várias mensagens em consonância com os resultados das investigações feitas pelo Senado italiano e investigações subsequentes. Ele confirma a existência de uma organização clandestina com duas missões, uma de exército de retaguarda para a resistência em cenário de ocupação “soviética”, outra de vigilância e repressão sobre pessoas ou organizações que identificassem como ameaça “marxista”. Revela também a sua base e conexões militares, em Portugal e para além das suas fronteiras nas então colónias. E através das fórmulas de linguagem, identifica-se com a extrema-direita e a polícia política do passado regime.
O que mais uma vez comprova não ser bastante conhecermos a racionalidade do que nos é dito e mostrado, temos de também conhecer a racionalidade da mentira que nos é dada e da verdade ocultada. Isto no mundo tal qual é hoje e aqui.
Artigo publicado em Seara Nova n.º 1715, 2011, pp. 8-12
BIBLIOGRAFIA
1 – Daniele Ganser, OTAN’s Secret Armies. Operation Gladio and Terrorism in Western Europe. Frank Cass, London January 2005.
Godon Duff: Gladio, How we terrorize ourselves, Veterans Today, November 14, 2010. (acedido 2 Março 2011)
http://www.veteranstoday.com/2010/11/14/gordon-duff-gladio-how-we-terrorize-ourselves/.
2 – Wikipedia, The Free Encyclopedia, Operation Gladio. (last modified on 23 February 2011; acedida 2 de Março de 2011)