Sobre os ombros de Kornilov
A repressão foi feroz, com balas de chumbo, e se um delicado equilíbrio entre operários e camponeses existia até hoje, é possível que ele se rompa aceleradamente. O governo insiste que não deu ordens de reprimir com balas mortais. Quem ganha? Desconcertados, olhamos para um e outro lado, bloqueios aqui e ali, greves pela direita e pela esquerda, piquetes de um lado e de outro. A poucos dias do referendo revogatório. É curioso, por que não há um militante sequer da esquerda radical na Bolívia que não conheça o processo desestabilizador que sofre o governo de Evo Morales pelas mãos da direita.
Em sua monumental História da Revolução Russa, Leon Trotsky descreve a capacidade política e tática de Vladimir, seu olfato para interpretar cada momento político, cada conjuntura, porque em definitivo, na política como na guerra, não se pode conseguir o objetivo estratégico se não acertamos nas conjunturas críticas. Trotsky nos relata o caso do assédio ao governo de Kerensky pelas tropas de assalto do general Kornilov. A fórmula magistral de Lênin foi a de disparar contra Kornilov sobre os ombros de Kerensky. Não podia opor-se diretamente ao chefe do governo provisório enquanto sua própria cabeça perigava (não nas mãos dos sovietes, mas sim em função de um possível golpe restaurador). Lênin disputava com Kerensky a direção da luta contra este golpe. Jaime Solares me fez recordar esta história. Pôs aquele episódio de tentativa de golpe num espelho. Inverteu-o. Solares dispara contra Kerensky apoiando seu rifle no ombro de Kornilov.
Conheci Solares em outubro de 2006, num encontro de sindicatos latino-americanos em Caracas. Nos alojamos no mesmo hotel, no Anauco, onde estavam todas as delegações estrangeiras. Apresentaram-me a ele no lobby do hotel e conversamos menos de meia hora. Foi o suficiente. Evo Morales havia assumido em janeiro desse mesmo ano. Solares contou-me, como a um amigo, que na COB já estavam prontos para a derrubada do governo, caso este não cumprisse a agenda de outubro. Disse, ainda, que lhe dariam três meses mais. Não mais. Só lhes faltava resolver, argumentava, o tema do armamento. Uma mistura de charlatão profissional, verborrágico e fabulador, Solares dedicava-se a impressionar aos turistas radicais com seu exército proletário de papelão. Deixei minha garrafinha de cerveja sobre a mesa e me retirei precipitado para outra tarefa. Solares era a comédia que o drama da gloriosa COB do passado deixou como resíduo.
A esquerda radical boliviana pretende que o “governo camponês” aceite a proposta operária. Se pudéssemos dar-lhes um conselho, daqueles que os ensinamentos de Lênin ofereciam, lhes diríamos que tratem de conseguir a unidade operário-camponesa, e não o ódio eterno que as grandes maiorias nacionais, camponesas e indígenas, estão a ponto de sentir pela COB. Uma ferida que talvez não cicatrize durante muito tempo. Se a COB houvesse entrado de cabeça na campanha pela reeleição presidencial, participando junto à imensa maioria do povo na defesa de seu governo assediado pelas forças superiores de dentro e de fora, poderia receber, no dia seguinte, o apoio entusiástico de muitos bolivianos ao seu próprio projeto de lei de pensões ou, pelo menos, a um projeto que supere as insuficiências neoliberais do projeto oficial. Estariam inclusive em melhores condições se eventualmente não lhes restasse outro caminho que o de uma greve nacional. Quem lhes reprovaria fazer o jogo da direita, se a COB jogasse esse jogo que soube jogar o seu mentor Vladimir Illich? Mas não.
Quando Evo Morales os acusou de fazerem o jogo do imperialismo, algo que Lênin evitou disparando contra Kornilov sobre os ombros de Kerensky, Jaime Solares lhe respondeu que “o único instrumento fiel do imperialismo internacional e servidor submisso do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, é Evo Morales”, alimentando a fraseologia ultradireitista de que Evo Morales é um títere de Chávez. Disse exatamente isso. Outros grupos da esquerda radical, por sorte muito minoritários, têm chamado ao “boicote ativo desde referendo ilegal e reacionário”. Como o governo do MAS é frágil com a direita, como não a combate com as armas na mão. que ganhe a direita! Como se poderia catalogar semelhante reivindicação sem sugerir adjetivos qualificativos?
O governo da Bolívia sofre há muito tempo um permanente processo de desestabilização. A direita local, sob o manto do “autonomismo” e sustentada pela administração estadunidense, vem insistentemente golpeando no sentido de varrer do mapa o presidente indígena. A poucos dias do referendo revogatório, novas manifestações, greves de fome, bloqueios de aeroportos, piquetes e advertências de não pisar em Sucre, são outras tantas ações para impedir que se realizem finalmente as eleições, pois a direita unida é candidata a perder nas urnas. Ainda assim já disseram que, seja qual for o resultado, continuarão com seu plano autonomista. Ativistas cívicos e universitários de Tarija tomaram ontem o hotel El Sol, onde se alojariam militares venezuelanos. O Comitê Pró-Santa Cruz patrocina uma greve de fome “até que o governo nos devolva os fundos do IDH”, o Imposto Direto aos Hidrocarburos. Encabeçando o piquete, está o agroindustrial e presidente cívico Branko Marinkovic.
Certamente, para frear a direita é necessário adotar medidas mais radicais em todos os terrenos: a entrega de terras aos camponeses, a melhoria de salários e de condições de vida do povo e, inclusive, a mobilização popular mais ampla e combativa possível, algo com que Evo segue vacilando. Mas nada disso poderá ser promovido a partir de um caminho estreito e contrário ao caminho que o próprio povo boliviano já iniciou e sente como o seu caminho. A esquerda radical, se pretende ter algum papel que mereça ser resgatado pela história, poderá cumpri-lo na condição de saber em direção a quem e de onde se deve disparar nas circunstâncias atuais.
* Jorge Sanmartino é integrante do Economistas de Esquerda, da Associação Gramsciana e da Corrente Práxis.
Tradução: Rodrigo Fonseca