A crise na Bolívia
Por Humberto Carvalho, militante do PCB do Rio Grande do Sul
Depois de uma era de governos progressistas na América Latina (Lula no Brasil, Cristina Kirchner na Argentina, Jose Mujica no Uruguai, etc.), o imperialismo norte-americano entendeu indispensável a recolonização da América do Sul e colocá-la sob o tacão imperialista. Essa recolonização não foi feita de uma vez só, realizou-se aos poucos, não utilizando tropas americanas e também quase não se valendo de militares dos países em que ocorreram golpes. Usaram as instituições civis para os golpes, numa verdadeira lawfare que, como se sabe, é a utilização das leis dos países objeto de golpes como instrumento de guerra.
Aconteceu, então, um golpe de estado em Honduras, com a deposição do Presidente Manuel Zelaya no ano de 2009, por uma lawfare que resultou em seu impeachment.
A seguir, houve a deposição do Presidente Fernando Lugo do Paraguay em 2012. Seu processo de impeachment durou menos de 36 horas.
Depois, foi a vez do Brasil com o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016. Pela lei brasileira as irregularidades contábeis cuja prática era a base da acusação contra Dilma não constituem crime de responsabilidade capaz de ensejar um impeachment. Mas, a lawfare se impôs. Então, foi um golpe e não um remédio constitucional como proclamado pela direita brasileira.
Não ocorreu golpe contra a Presidente Cristina Kirchner, na Argentina, porque nas eleições de 2015, seu Partido Justicialista (Peronista) se dividiu, permitindo a vitória do neoliberal Maurício Macri. Imediatamente, Obama, então Presidente dos EUA, apontou Macri como líder da América do Sul.
Em maio de 2018, elegeu-se Presidente do Chile, o também neoliberal Sebastian Piñera.
No Brasil, em 7 de abril de 2018, o ex- Presidente Lula foi preso, em virtude de condenação num processo sem provas, para afastá-lo da candidatura à Presidência nas eleições que ocorreram em outubro e novembro de 2018.
Nessas eleições, em segundo turno, foi vitorioso o fascista Jair Bolsonaro utilizando as mesmas técnicas (como fake news, etc.) que foram utilizadas nas eleições de Trump.
Bolsonaro usou, ainda, o mesmo conselheiro eleitoral de Trump nas eleições brasileiras. Quando assumiu a Presidência, Bolsonaro viajou aos EUA , onde ficou caracterizada a sua submissão vergonhosa aos americanos.
É preciso lembrar, ainda, as tentativas de deposição do Presidente Maduro, da Venezuela, realizadas por Juan Guaidó, com o respaldo do imperialismo e seus agentes como os governos de Bolsonaro do Brasil, de Ivan Duque Marquez da Colômbia, de Sebastián Piñera do Chile, de Mario Abdo Benitez do Paraguai que, nos inícios de 2019, estavam resolvidos a invadir, militarmente, a Venezuela e depor o Presidente Maduro.
Isto não ocorreu devido a garantia da Rússia de dar suporte militar em caso de invasão da Venezuela e do apoio do povo venezuelano ao seu Presidente.
O imperialismo não contava, entretanto, com a eleição de um progressista, Andrés Lopes Obrador, no México, que ficou temporariamente isolado, diante das vitórias eleitorais das elites reacionárias em diversos países da América Latina, com o suporte yankee.
Recentemente, no Uruguai a Frente Ampla foi derrotada nas eleições presidenciais. Por uma margem de 35 mil votos ganhou o conservador Lacalle que já prometeu uma mudança total nas relações do Uruguai com a Venezuela.
Dessa maneira, o cerco imperialista e das direitas na América do sul se fechou, encurralando as forças progressistas no continente.
Mas, preciso voltar à Argentina porque, no meu modo de ver, a Argentina é uma das peças chaves para se entender a crise da Bolívia.
O governo de Maurício Macri, com suas políticas neoliberais, fracassou redondamente.
A dívida externa argentina aumentou, comprometendo grande parcela de seu PIB; a pobreza e a miséria chegaram a patamares inimagináveis para um país opulento, com grandes recursos naturais; o peso, moeda nacional da Argentina, foi desvalorizado como nunca antes tinha ocorrido; Macri se submeteu aos ditames do FMI e levou a economia argentina ao caos, com a desindustrialização e o desemprego.
Nessas circunstâncias, nas eleições presidenciais de 2019, o Partido Justicialista se uniu, por obra de Cristina Kirchner, e obteve uma estrondosa vitória sobre Macri, já no primeiro turno das eleições presidenciais, elegendo o progressista Alberto Fernandez para a Presidência e Cristina Kirchner para a Vice-Presidência.
É nessa vitória que reside uma das chaves para se entender o que acontece na Bolívia. O imperialismo precisa isolar a Argentina (segundo os imperialistas, um péssimo exemplo para a América do Sul). A vitória eleitoral de Evo Morales não deixaria a Argentina isolada, contando ainda com a Venezuela, México e Cuba. O novo governo argentino assumirá suas funções em 10 de dezembro deste ano. E certamente se aproximará da Rússia e da China para sair do caos econômico deixado por Macri. Então, os EUA precisam isolar a Argentina e para isso precisavam derrubar Evo Morales.
A outra chave para se entender o golpe na Bolívia é o lítio, uma das grandes riquezas minerais do país.
A Bolívia, desde os tempos coloniais, é um país onde a mineração tem uma expressiva presença na economia boliviana.
As políticas de Evo Morales entraram em conflito com as empresas multinacionais de mineração. A suspensão de contratos onerosos para o país e o esforço por um controle desse setor econômico levaram a Bolívia a inúmeros processos de arbitragem internacional.
Em 2008, depois de uma tentativa frustrada de golpe, a Bolívia expulsou o embaixador americano, Philip Goldberg, e em 2013, expulsou a USAID (Agencia Americana para o Desenvolvimento Internacional). Assim, caiu vertiginosamente a “ajuda” americana à Bolívia, com exceção ao ano de 2015, coincidindo com os meses que antecederam o referendo constitucional de fevereiro de 2016.
O lítio, como se sabe, é um metal alcalino estratégico para o desenvolvimento tecnológico. E é uma alternativa energética para os meios de transporte. Segundo estudos da empresa americana SRK as reservas de lítio na Bolívia estão em torno de 70% das reservas mundiais. Essas reservas se concentram no Departamento (oblast) de Potosí que faz fronteira com o Chile e a Argentina. E nessa tríplice fronteira estariam 85% das reservas mundiais de lítio. Daí o interesse econômico do imperialismo em controlar essa região.
Embora tenha sido criada uma empresa estatal boliviana para desenvolver a indústria do lítio, grandes inversões de capitais são necessárias. Então, em condições paritárias, a Bolívia fez um acordo com a empresa ACI Systems Alemanha (ACISA) para desenvolver a indústria. Também, fez um acordo com as empresa chinesas TBEA Group e a YLB para extração do lítio. O acordo coma China desagradou ao imperialismo yankee.
Vistas essas questões chaves podemos entender os motivos políticos e econômicos do interesse do EUA num golpe de estado na Bolívia porque o governo de Evo Morales era um obstáculo à voracidade do imperialismo.
A direita boliviana, os governos reacionários da América do Sul e o imperialismo insistem em dizer que Evo Morales renunciou e então o que aconteceu na Bolívia não teria sido um “coup d´état”.
A definição de golpe de estado é a destituição forçada de um chefe de estado. Evo Morales foi forçado pelo exército e pelas forças policiais a renunciar sob pena de uma guerra interna sangrenta e do risco de Evo perder a própria vida. Então, o que ocorreu foi um golpe de estado e não uma simples renúncia. O que prova, também, a ocorrência de um golpe foram as sucessivas renúncias do Vice-Presidente, do Presidente da Câmara e do Presidente do Senado que seriam os sucessores previstos na constituição boliviana em caso de vacância da presidência de Evo Morales. Todos foram forçados a renunciar.
A Bolívia tinha um crescimento econômico superior a 5% ao ano, nos últimos tempos.
O ciclo, que já foi chamado de “milagre econômico boliviano”, começou em 2006, quando Evo Morales chegou ao poder.
Uma das primeiras e principais medidas de Evo Morales foi a nacionalização do petróleo e do gás natural. Parte das empresas privadas foi transferida para as mãos do Estado. As multinacionais tiveram que renegociar os contratos com a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos para continuarem operando no país e passaram a pagar mais para explorar jazidas.
Multinacionais, empresas privadas e estatais convivem na Bolívia em um modelo de crescimento ancorado na exploração dos recursos do setor de óleo e gás — que, para alguns, vem dando sinais de esgotamento.
A onda do boom de commodities que sustentou o crescimento de parte da América Latina até a crise financeira de 2008 também passou pela Bolívia e trouxe uma melhoria sem precedentes nas condições de vida de milhões de bolivianos.
Esse período de bonança da economia boliviana foi aproveitado, através de uma política fiscal expansionista, para financiar as políticas de transferência de renda e os programas que reduziram a miséria no país quase pela metade. O percentual da população abaixo da linha de pobreza na Bolívia caiu de 63% para 35% entre 2005 e 2018, de acordo com o Banco Mundial.
Apesar desses avanços sociais e econômicos que beneficiaram o país e o povo, ocorreu o golpe.
A crise atual da Bolívia se verificou em dois momentos distintos. O primeiro deles foi a contestação, pela oposição, dos resultados nas eleições presidenciais deste ano, onde Evo foi vitorioso. A oposição dizia ter ocorrido fraude nos resultados e exigia a presença da OEA (Organização dos Estados Americanos) para fiscalizar a recontagem dos votos, a auditoria das eleições. Evo, confiante na inexistência de fraude, aceitou a presença da OEA para esses fins. A OEA, subordinada ao imperialismo americano, afirmou a existência de fraude eleitoral, como era de se esperar. Iniciaram-se, então, conflitos entre as forças do governo de Evo e a militância da oposição que não foram reprimidos de forma violenta. Via-se em vídeos desse período a presença apaziguadora das forças de segurança, enquanto as forças da oposição buscavam a violência e o vandalismo.
Nesse clima de extrema violência, por parte da oposição, dominando as ruas das principais cidades da Bolívia, o general Williams Kaliman, comandante das Forças Armadas da Bolívia, exigiu a renúncia de Evo Morales e dos seus sucessores previstos constitucionalmente. Para evitar derramamento de sangue e garantir sua sobrevivência, Evo renunciou e teve de exilar-se no México.
Kaliman, em 2003, fez o curso de Comando e Estado Maior na Escola das Américas/WHINSEC do exercito americano. Também, foi adido militar na embaixada da Bolívia nos Estados Unidos. Segundo a Wikipedia, Kaliman recebeu um milhão de dólares e um visto de residência permanente nos EUA através do Encarregado de Negócios da Embaixada dos EUA em La Paz, capital da Bolívia, sr. Bruce Willianson.
72 horas após o golpe, Kaliman se transferiu para os EUA, abandonando a Bolívia.
Após as renúncias do Vice- Presidente e dos Presidentes do parlamento, contrariando a constituição boliviana, a segunda secretária do senado boliviano, senadora Jeanine Áñez se auto proclamou Presidente da República. Introduziu de imediato a bíblia no parlamento, misturando política e religião. E passou a perseguir os seguidores de Evo e a controlar o ingresso de estrangeiros que poderiam apoiar as manifestações pro-Evo.
O segundo momento da situação da Bolívia consiste na reação, em especial da população indígena, contra o golpe. Em marcha acelerada pelas estradas, milhares de indígenas tomaram de assalto as ruas de La Paz e entraram em choques com as forças de segurança que reprimiu as manifestações com requintada violência. Ocorreram, então, dezenas de mortes, assassinatos, centenas de pessoas foram feridas, inumeras prisões ilegais, tortura, enfim, toda uma gama de barbárie característica do fascismo.
A considerar, ainda, que atuou no golpe da Bolívia a força de um racismo cultivado como ódio contra a população indígena.
Alvaro García Linera, Vice- Presidente de Evo, denunciou em artigo publicado em jornal argentino que as raízes do golpe de Estado na Bolívia, que forçou Evo Morales a renunciar possuem referências racistas, em especial contra os povos indígenas do país.
Linera ainda ressaltou que todos os 18 mortos e 120 feridos a bala, até então, são indígenas.
O vice de Morales sustenta que o motim policial veio no exato momento em que forças populares passaram a se mobilizar para resistir ao golpe, também recuperando o controle territorial das cidades “com a presença de trabalhadores, mineiros, camponeses, indígenas e colonos urbanos”.
Os confrontos das forças de segurança do atual governo de Jeanine Añez com as massas que se manifestaram contra o golpe fez com que Jeanine anunciasse, para breve, eleições na Bolívia. No entanto, a candidatura de Evo está proibida por lei.
O anúncio das futuras eleições amenizou a reação das massas bolivianas que estão, ainda, vigilantes para que se realizem eleições livres.