Bolívia: democracia recuperada?
(Foto: Casa de América)
Vitória de Luis Arce na Bolívia é avanço, mas o golpe de 2019 e os interesses norte-americanos no país devem seguir no horizonte estratégico.
Por Pedro Marin | Revista Opera
Nas suas famosas notas sobre Maquiavel, Gramsci aconselha que a análise de situações e as relações de forças sejam feitas, “se não são questões abstratas ou sustentadas no ar”, em vários graus, “a começar pelas relações de forças internacionais”. Para tratar da vitória extra-oficial do candidato do MAS na Bolívia, Lucho Arce, começo portanto pelo mundo.
Durante a polêmica época de “reforma e abertura”, nos anos 80, a China manteve uma média de crescimento econômico de 10% por três décadas. A partir dos anos 2000, o país começou a experimentar uma rápida alteração na sua malha produtiva e mercado, diminuindo o peso da manufatura barata e de baixa qualidade (com salários igualmente baixos) e expandindo o do setor de serviços e tecnologia, com um complexo emaranhado de infraestrutura que conecta o setor privado e o estatal. Os métodos foram e são objetos de coléricas e importantes discussões, mas o fato é que o PIB chinês cresceu vertiginosamente, tornando-se o segundo maior do mundo em 2010. A perigosa ascensão de uma nova potência passou a figurar nas manchetes internacionais, a despeito do comportamento relativamente acanhado mantido por ela até a metade da primeira década desse século. E então, ao final do governo Obama, já estava evidente que o gigante asiático não poderia ser ignorado, que a abertura dos anos 80 não bastaria para controlá-lo política e economicamente, e que o dragão, no mínimo, buscava voar mais perto da águia.
Em 2012, o governo Obama fez seu pivô para a Ásia, estabelecendo como objetivo estratégico de sua política externa aumentar seu poderio econômico, militar e político nas portas da China. Mas uma boa parte da preocupação com a ascensão chinesa, para os Estados Unidos, deveria ser, antes de tudo, em seu hemisfério, na América do Sul, onde a presença chinesa – em especial no campo comercial – também crescia de forma impetuosa. Em tempos de indústria 4.0, o governo Trump tirou da cartola uma “Doutrina Monroe 2.0”, isto é, uma política que tem como premissa o entendimento do continente americano como uma zona vital e estratégica norte-americana, a ser “protegida” com todas as ferramentas necessárias e possíveis de qualquer influência estrangeira. Soma-se a isso a preocupação natural dos Estados Unidos com a Rússia, que apesar dos percalços dos anos 90 e a despeito de não ter vivido um crescimento chinês, manteve-se uma potência militar e fortaleza geopolítica integrada, como uma pedra no sapato do projeto de poder norte-americano, tendo capacidade inclusive de alguma influência sobre a Europa, braço estratégico da política dos EUA.
Chegamos então à Bolívia, um país que em dez anos (2008-2018) expandiu suas importações para a China em 254% e as exportações em 236%, que chegou a incluir a “diplomacia espacial” no rol de relações com a China, com o satélite Tupac Katari, desenvolvido pela China Aerospace Science and Technology Corporation (CASTC) e lançado do centro de lançamento de Xichang, na província de Sichuan, em 2013. Em 2016, veio também o anúncio de um empréstimo de 7 bilhões de dólares por parte da China para desenvolvimento de infraestrutura energética e de transporte na Bolívia. E em 2018, no marco dos 33 anos do estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, o presidente chinês Xi Jinping declarou que as relações “estavam no seu ponto mais alto” durante uma visita de Evo ao país, na qual se acordou uma parceria estratégica de quatro pontos, que incluía uma política de confiança mútua e apoio aos interesses de cada nação; a expansão da cooperação por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, a cooperação cultural, educacional, esportiva, midiática e turística; e a coordenação multilateral dentro das Nações Unidas para questões de desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas. Também com a Rússia se ampliou a cooperação energética e militar, e chegou-se a assinar um projeto para a instalação de um reator nuclear na cidade de El Alto.
É fundamental notar que essas iniciativas não ocorreram num país qualquer. Como escrevi em outubro passado, a obra do marechal Mário Travassos, Projeção Continental do Brasil, pode ser um ponto de partida interessante para compreender a importância da Bolívia no continente; trata-se de uma massa de terra que divide todo o continente pela gigantesca Cordilheira dos Andes e onde se entrelaçam as bacias do Prata e do Amazonas, com três faixas de relevo (altiplano na região andina, a sudoeste, que cumpre uma função de “muralha”; uma região intermediária em que se começa a ver long;as planícies mais ao leste e planícies mais baixas a norte e nordeste). Trata-se além disso de um país que faz fronteira com outros cinco, com uma infraestrutura que os integra relativamente bem, e que cumpre o papel bastante relevante de exportador de gás para a região (especialmente para o Brasil e Argentina). Para o professor Lewis Tambs, “quem controla Santa Cruz comanda Charcas. Quem controla Charcas comanda o Heartland [coração da terra, em tradução livre]. Quem controla o Heartland comanda a América do Sul”; tal é a importância do país onde caiu Che Guevara.
A primeira pergunta a se fazer, portanto, é se algo mudou do ponto de vista geopolítico na Bolívia neste último ano;,se a ameaça da influência chinesa e russa deixou de existir; se o Comando Sul dos Estados Unidos deixou de considerar a presença dos países na América do Sul uma ameaça; se os Estados Unidos podem abrir mão dessa porção chave do seu hemisfério no grande xadrez que se joga a nível global. Neste caso, a resposta é clara: não. A única diferença relevante neste um ano, do ponto de vista das disputas internacionais, é que os Estados Unidos estão às portas de uma eleição presidencial, o que pode motivar os movimentos mais variados (tanto uma postura intervencionista de última hora, visando popularidade, quanto uma postura menos intervencionista por ora em função dos acontecimentos internos). O fato é que a política de “proteção” de seu espaço vital de atores estrangeiros se mantém, quer vença Trump ou Biden: ainda que com algumas diferenças, com um enfoque quase obsessivo em questões judiciais e “combate à corrupção”, Biden também leva para seu programa a competição com a China como um elemento estratégico fundamental, falando em um esforço para os Estados Unidos “liderarem de novo”, acabando com o “vácuo de liderança”, e projetando uma política externa voltada para os interesses da classe média norte-americana, com criação de empregos e redução da dependência na produção chinesa – o que tal postura significa em termos de controle sobre recursos naturais no continente é evidente; uma tradição que faz lembrar do gosto ácido de chumbo das bananas da United Fruit Company.
Pois bem. As pesquisas de boca de urna das eleições bolivianas dão vitória com ampla margem para Luis Alberto Arce Catacora, candidato do MAS à presidência. “Lucho” Arce foi ministro da Economia e Finanças de 2006 a 2017, sendo apontado como um ator chave no “milagre econômico” de seus governos – o que pesou especialmente nestas eleições, já que a Bolívia tem vivido uma queda dura de sua produção durante a pandemia e um consequente aumento da pobreza. O resultado oficial deve ser divulgado nos próximos dias, mas os anúncios dos institutos de pesquisa bastaram para que a presidente de facto Jeanine Áñez, o ex-presidente e candidato Carlos Mesa e o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, reconhecessem a vitória do candidato do MAS.
É certo que, por um lado, o interregno de um ano da ditadura Áñez foi absolutamente destrutivo para sua popularidade, mas, de qualquer forma, Áñez nunca foi uma figura popular, e sua ascensão ao poder só poderia ter ocorrido por meio de um golpe. A incapacidade de se criar uma “frente ampla” de direita, que abarcasse Camacho e Mesa, também ficou clara; mas essa incapacidade também existia em novembro do ano passado, e isso não impediu que o golpe marchasse. Além disso é notável a aptidão que os movimentos sociais e sindicais ligados ao MAS tiveram em resistir durante esse ano, e merece destaque o papel que cumpriram há alguns meses, ao organizar mobilizações por todo o país para garantir que as eleições fossem realizadas – se há uma “volta da democracia” na Bolívia (e é ingênuo afirmá-lo) ela se deve primeiramente à capacidade de mobilização popular, não à votação de anteontem. Mas o que impressiona, parece paradoxal e motiva inquietações com os resultados da Bolívia é o fato de que aqueles que há um ano levaram adiante o golpe, com a falsa acusação de fraude, tomem hoje uma postura tão radicalmente oposta à que mantiveram ativamente não só nos primeiros meses do golpe, mas durante todo o ano que seguiu.
Fazer qualquer afirmação sobre um país que viveu um ano tão volátil e excepcional, com base em resultados eleitorais que sequer foram confirmados ainda, significa invariavelmente precipitar-se. Mesmo a janela de tempo até o anúncio oficial dos resultados oferece certas oportunidades de ação, ainda que sua concretização pareça cada vez mais improvável. O que já está desenhado são as linhas mestras do horizonte estratégico do conflito boliviano. Os interesses norte-americanos sobre o país, tão bem representados pela OEA, seguem vigentes, e têm na época em que vivemos um peso especial. Em igual pé está a disposição de certos setores da direita boliviana em recorrer ao golpismo, à violência, à insubordinação e a discursos puramente racistas – o processo que desaguou no último domingo, afinal, foi marcado por todos esses elementos, e é certo que não será por princípio que deixarão de usá-los.
O que já se sabe é que MAS e Luis Arce anunciam uma “nova etapa do movimento”, “sem ódio, com muito diálogo e focada na reativação econômica”. Fala-se em “escutar todos os setores” e traçar um caminho de reencontro e confraternização, “que não seja rancoroso”. Se se trata do discurso típico de um vencedor ou da preparação para uma virada de princípios, é cedo para afirmar. O certo é que mesmo que Arce queira “traçar um caminho de reencontro”, um pacto nacional, terá que lidar com as bases e objetivos do golpe de estado de 2019, não ignorá-los. Isso inclui a necessidade de reverter as medidas do governo Áñez e, principalmente, lidar com as Forças Armadas e com a Polícia Nacional da Bolívia, punir os culpados (inclusive os civis, como Camacho e sua organização semifascista), levar adiante reformas dentro das tropas ou, ainda, recorrer a um modelo similar ao venezuelano de milícias civis. Não fazê-lo, com a intenção de apaziguamento, significará tornar-se refém dos golpistas, seguir sob a tutela da espada e legitimá-la. E fazê-lo tampouco será fácil. É o tipo de ação capaz de gerar as primeiras ondas de reação, de trazer de volta as revoltosas marés de novembro de 2019 para a aparente calmaria de 2020, o que possivelmente seja precisamente o cálculo da direita boliviana. É dizer: a batalha boliviana segue viva, e na inação ou combate, na conciliação ou na contenda, os dados seguirão sendo jogados. Com a segunda postura, ao menos, as massas populares terão sua rodada.
Pedro Marin
24 anos, é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics. É autor de “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016” e co-autor de “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil.