Um raio-x na democracia
Por Thales Emmanuel**
Um raio-x na democracia*
“Tudo se discute nesse mundo, menos uma única coisa: a democracia. Ela está aí, como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas está aí como referência.”
José Saramago
O imperialismo made in USA invade constantemente países em seu nome. A exportação armada e midiática da democracia coincide com a expansão da fome a índices nunca antes sentidos. Na manhã de 1° de abril de 1964, o golpe empresarial e militar no Brasil alvoreceu com o jornal O Globo noticiando: “Ressurge a Democracia!” Atualmente, um presidente usurpador impõe uma série de medidas contrárias ao povo e à opinião da maioria, povo e maioria que diz representar evocando respeito às regras democráticas. Como se a tivessem perdido e quisessem resgatá-la, vozes reagem gritando “Diretas Já!” e, civilizadamente, aguardam por 2018. Alguns a confundem com o voto. Será proposital? Outros a dissimulam de modo diverso, identificando-a com a alternância de siglas em cúpulas de governos. Os meios de comunicação que reproduzem repetidamente essas ideias pertencem a oito famílias apenas, num país com mais de 200 milhões de habitantes. Liberdade de imprensa? Liberdade para quem? As pessoas que não aceitam a imposição do modelo único de democracia são taxadas de vândalos e baderneiros na televisão. Nas periferias das cidades e do campo, Amarildos e Cláudias são chacinados cotidianamente sem jamais terem sido apresentados a ela. Afinal de contas, quem és tu, democracia?
A historiografia oficial registra que a democracia nasceu na Grécia antiga, por volta de 500 anos a.C. Numa sociedade já fraturada pela desigualdade social da estrutura de classes, intensas lutas populares fizeram eclodir o governo do povo, tradução literal para “demo” e “cracia”. Uma importante conquista para setores empobrecidos, mas também uma maneira dos ricos restabelecerem a ordem sem deixar de serem os ricos. Na democracia Ateniense se decidia diretamente os assuntos de interesse social; não era uma democracia representativa, como é hoje o sistema burguês de comando em alguns países. Porém, mesmo lá, o direito de decidir não era exercido por todas as pessoas. Mulheres, estrangeiros e escravizados não eram considerados cidadãos da polis. Ainda que se configure como um marco na história, a democracia direta era democrática para apenas 10% da população.
Séculos se passaram sem que a palavra “democracia” fosse evocada, até o sistema capitalista, que se hegemoniza politicamente na transição dos séculos 18 e 19, e traz na bagagem sua própria forma de operar a dominação, reintroduzi-la no imaginário social. Mesmo assim, não foi de imediato que democracia e capitalismo se misturaram ideologicamente como substâncias inseparáveis. Os primeiros dirigentes da nova ordem entendiam, sem ainda disfarçar esse entendimento, que o modelo parlamentar-constitucional se configurava tão somente numa forma atualizada de oligarquia, ou seja, que o governo, por excelência, continuaria como patrimônio de poucos. Nessa Europa em ebulição, até a metade de 1800, democracia era uma ideia que assombrava os donos do poder. Os lutadores e lutadoras do povo, que combatiam por uma democracia social, porque compreendiam que sem transformações radicais na estrutura da sociedade, transformações de raiz, nada mudaria, foram perseguidos, difamados e condenados à guilhotina. É do meio para o fim do século que o conceito é sequestrado e ressignificado para servir à dominação. Com o passar dos anos, das décadas, democracia foi sendo identificada cada vez mais com o direito de escolher representantes, ou seja, com o direito de decidir quem decidirá pelo povo. Tal fato não aconteceu sem que as instituições burguesas estivessem minimamente consolidadas. É só recordar que por um período o direito a voto só podia ser exercido por homens que, comprovadamente, possuíssem títulos de propriedade. No Brasil, até 1934, empobrecidos, negros, mulheres e analfabetizados sequer podiam decidir quem decidiria por eles.
A classe oprimida e explorada percebe então que a democracia propagada pela classe capitalista representava, para a maioria, uma ditadura e que a ideia de “unificar” interesses inconciliáveis se constituía uma maneira extremamente eficaz de garantir a “dominação do dinheiro sobre as pessoas”. O sangue popular que escorreu pelas ruas de várias cidades europeias entre 1848 e 1850, não só tingiu de vermelho a bandeira que simbolizaria dali em diante a luta de trabalhadores e trabalhadoras, como comprovou que a “liberdade, igualdade e fraternidade” da revolução burguesa na França de 1789 significavam adornos novos para um novo tipo de escravidão: o trabalho assalariado. Foi a partir daí, da luta prática e teórica, que a classe trabalhadora começou a formular seu próprio conceito de democracia, por essência, incompatível com a democracia de uns poucos da burguesia.
Explorados e exploradas, oprimidos e oprimidas, reconheceram, enfim, os estigmas do massacre histórico e da humilhação que estavam condenados a sofrer eternamente, caso não revolucionassem a ordem das coisas. Se a maioria fora barrada do baile democrático desde sempre, assaltar o poder deixava de ser opção e passava a condição de mandamento. A revolução socialista, a revolução dos de baixo, única maneira possível de democratizar a democracia, entra assim na cena histórica. Nasceu daí a Comuna de Paris, massacrada após 72 dias de heroica resistência contra o ódio implacável das classes opressoras unificadas. Vieram os sovietes e a Revolução Russa, os Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, as comunidades zapatistas no México e tantas outras experiências de Poder Popular; algumas derrotadas, outras ainda em curso e um sem número brotando teimosamente do chão da luta de classes.
A história não deixa dúvidas. Não existe regime político capaz de pairar no vácuo. Não existe sequer vácuo na política. Todo espaço é ocupado por interesses advindos da luta de classes. Com a democracia não é diferente. Manda e dela se serve a classe que detém o poder econômico. Por isso que os golpistas de ontem são os mesmos golpistas de hoje, só que fortalecidos por medidas “conciliatórias” que propagandeiam que é preciso crescer o bolo para depois reparti-lo. “Nossa frágil democracia foi violada”, como se costuma ouvir por aí, porque a raposa continuou sendo promovida a gerente do galinheiro. O problema da democracia da burguesia é que a democracia de fato sempre foi e sempre será um problema para a burguesia. E todas as vezes que os anseios populares se converterem em força política, no sistema capitalista, a classe dominante, apavorada em sua mesquinhez estrutural, recorrerá a golpes de Estado para reestabelecer seu mando e reduzir os entraves à realização de seus interesses. Basta recordar o início da década de 60 no Brasil, quando o povo se levanta em torno das Reformas de Base e o imperialismo reage lançando tanques às ruas, guerreando contra a classe trabalhadora e suas organizações. Basta olhar para a Revolução Bolivariana na Venezuela de agora, seguidamente golpeada. Enquanto existirem ricos enriquecidos e pobres empobrecidos, a democracia será sempre a arma dos primeiros apontada e disparada na direção dos segundos. “A burguesia não manda porque é maioria, ela é maioria porque manda”.
Isso não significa dizer que devemos pensar e agir somente em termos absolutos, como se não houvesse diferenças entre o regime instaurado com o golpe de 64 e o inaugurado com a Constituição de 88, por exemplo. Reconhecer que esta democracia que está aí não é nossa, não é o mesmo que desdenhar as conquistas da luta que pôs fim a ditadura militar-empresarial de outrora e assegurou alguns direitos ao povo brasileiro. Ao contrário, trata-se de não rendição, de não cooptação, de não ignorar a verdadeira autoria das conquistas, de compreender que uma escravidão “bem vestida” não significa a abolição do regime escravocrata.
Passando um raio-X na democracia, ou melhor, nas democracias, é fácil detectar que a substância que preenche a democracia da classe trabalhadora tem gosto amargo para os que vivem da exploração e da opressão, isso porque revoga contundente e definitivamente o direito de explorar e de oprimir, princípio sagrado da democracia capitalista, que só é democrática até o ponto em que o significado linguístico da palavra, poder exercido pelo povo, não passar de letra morta. “Que o verbo se faça carne”, então! Para dissabor dos que ora dominam e para o bem de toda humanidade.
*Originalmente publicado em Informativo Redentorista, edição VIII.
**Thales Emmanuel é militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Organização Popular (OPA).