Um fragmento da ditadura que Bolsonaro quer apagar
No bairro de Perus até então não havia um cemitério; o mais próximo era localizado na cidade de Caieiras, vizinha ao distrito. Logo após sua fundação, o cemitério sofreu uma transformação, tendo se tornado exclusivo para corpos de indigentes e indivíduos não identificados, ou, mais precisamente, pessoas mortas pela violência exercida na ação repressiva do regime empresarial-militar. Em 1971, durante a gestão de Paulo Maluf, houve uma primeira tentativa de instalar no local um crematório.
Tanto Maluf quanto o diretor do IML da época, Harry Shibata, tentaram contratar uma empresa britânica especializada na construção de fornos crematórios. O projeto não teve continuidade, pois em virtude da crescente onda de violência do regime, a empresa considerou a atividade suspeita. O projeto dos fornos não incluía uma capela para orações, além de supostamente haver mudanças na legislação para cremações. O projeto foi repassado ao Cemitério Vila Nova Cachoeirinha (Zona Norte de São Paulo), onde também não houve efetividade, tendo sido posteriormente transferido para o Cemitério Vila Alpina (na Zona Leste), onde funciona até os dias atuais o Crematório Municipal de São Paulo.
O cemitério de Perus não foi o único a ter essa finalidade. O primeiro cemitério utilizado no período imediatamente após a decretação do AI-5 foi o da Vila Formosa (Zona Leste de São Paulo), onde foi enterrado como indigente Carlos Marighella, ex-militante do PCB e fundador da ALN (Aliança Nacional Libertadora), antes de ter seus restos mortais transladados para a Bahia. O Cemitério de Campo Grande (Socorro, Zona Sul de São Paulo) também foi utilizado para as ações e somente descoberto através de pesquisas de familiares das vitimas sobre documentos do cemitério e do IML.
O Cemitério do Lageado (Guaianases, Zona Leste de São Paulo) também recebia corpos considerados de indigentes e não identificados. Certas desconfianças surgiram sobre dois incêndios ocorridos em meados de 1974 e 1985, quando foram queimados salas de arquivos, registros, fotografias e documentos, além da carbonização de um funcionário.
Com a abertura do processo de “redemocratização”, a imprensa teve possibilidade de tratar casos até então sigilosos sobre o regime. As emissoras exploravam casos de violência policial e tiveram acesso a laudos do IML. Assim, foi possível encontrar, em diversas fichas, a letra “T” de terrorista, que identificava militantes perseguidos e mortos pelos policiais do DOPS. A denúncia foi feita durante o governo de Luiza Erundina, que determinou, em setembro de 1990, a abertura da Vala Clandestina de Perus. Nesse período foi também instalada uma CPI para investigar a origem das ossadas.
Transferidas pelo Governo de São Paulo para a Universidade Federal de Campinas (UNICAMP), as ossadas encontradas começam a ser verificadas por peritos, entidades dos direitos humanos e familiares. As comissões exigiram uma série de prestações de contas sobre as pesquisas realizadas, pois faltavam respostas concretas sobre o andamento das identificações das ossadas. Muitas irresponsabilidades foram cometidas ao longo de 15 anos, não se garantindo às famílias qualquer tipo de resposta mais efetiva a respeito. Nos anos 2000 é firmado um convênio com a Faculdade de Medicina da USP e também é realizada a transferência de 1049 ossadas para o Cemitério do Araçá (Consolação, Centro de São Paulo).
Anos depois, foi fundada em São Paulo a Coordenação de Direito à Memória e à Verdade, como um órgão auxiliador das investigações das ossadas, formando o Grupo Trabalho Perus (GTP) em 2014, através da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
O grupo hoje ameaçado pelo governo Bolsonaro possui dois comitês principais para seu funcionamento: Comitê de Acompanhamento e Comitê Científico, contando com a presença de familiares dos mortos e desaparecidos, órgãos da união, comissões, antropólogos e arqueólogos. O grupo também se destaca por promover políticas de memória para além de apoiar a análise das ossadas, com ações culturais, intervenções, formação de seminários e diálogo com trabalhadores no bairro de Perus. O trabalho realizado conseguiu identificar cerca de 580 ossadas até agora.
O Núcleo Noroeste da UJC, que tem por finalidade atuar nos respectivos bairros da região noroeste de São Paulo, incluindo o bairro de Perus, se manifesta a favor da permanência das continuidades dos trabalhos exercidos pelo GTP.
Perus foi mais um dos porões secretos da ditadura, localizada em meio ao território periférico, revirado pelos atos cruéis dos militares. O Cemitério Dom Bosco ainda guarda consigo inúmeras histórias e suposições que até hoje perduram sobre os atos desempenhados na ditadura. O bairro historicamente foi palco importante das lutas populares, onde se desencadeou uma série de lutas durante a ditadura civil-militar, com greves e ações clandestinas articuladas pela força dos movimentos sindicais.
Uma grande tarefa almejada no processo de construção do poder popular é o resgate da memória das lutas ocorridas em nossos bairros, as quais devem ser preservadas como momentos decisivos no desenvolvimento da luta de classes, tendo em vista que governantes, a serviço do capital, desejam sempre ocultar e destruir nossos legados históricos. Ainda presenciamos a responsabilidade do estado burguês sobre os atos do regime civil-militar, não oferecendo sequer alguma respostas às famílias das vítimas, desconsiderando os valores legais, humanos e democráticos. “Aos nossos mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta”.
Exigimos a memória, justiça e a verdade de nossos revolucionários.
Núcleo Noroeste da UJC – SP