Colômbia sob pressão dos “criminosos de paz”

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Maurice Lemoine *

… os dois homens [Macron e Duque], infelizmente, não tiveram tempo de evocar os 7 milhões de deslocados internos colombianos, nem os 462 dirigentes sociais, comunitários, indígenas, camponeses e defensores dos direitos humanos assassinados no país, de janeiro de 2016 a fevereiro de 2019 (incluindo 172 em 2018), a crer no Provedor de Justiça (Ombudsman) Carlos Negret, nem os 133 ex-guerrilheiros executados (assim como 34 membros da sua família), depois de haverem deposto as armas, confiantes na palavra do Estado.

Em visita oficial à França, o presidente colombiano, Iván Duque, foi recebido, em 19 de junho, no Palácio do Eliseu. Na ocasião, o presidente Emmanuel Macron recordou o empenho de Paris no pleno êxito dos acordos de paz, assinados em 24 de novembro de 2016, entre o poder e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), “acordos financeiramente apoiados numa base bilateral, com a intermediação da União Europeia”, realçou ele. No que lhe diz respeito, Duque evocou sobretudo “a sua preocupação com as consequências na Colômbia da crise migratória venezuelana”. Em linha com o seu interlocutor – Paris e Bogotá reconheceram o “imaginário presidente” venezuelano, Juan Guaidó e invocaram o Tribunal Penal Internacional (TPI) para julgar o legítimo chefe de Estado, Nicolás Maduro, que, obstinadamente, se recusa a deixar-se derrubar – Macron anunciou que a França irá duplicar este ano sua contribuição para o Alto Comissariado da ONU para os refugiados (ACNUR) e para o Comitê Internacional da Cruz vermelha (CICV), colocando sobre a mesa 1 milhão de euros para ajudar os migrantes e deslocados venezuelanos.

Com uma agenda manifestamente muito carregada, os dois homens, infelizmente, não tiveram tempo de evocar os 7 milhões de deslocados internos colombianos [1], nem os 462 dirigentes sociais, comunitários, indígenas, camponeses e defensores dos direitos humanos assassinados no país, de janeiro de 2016 a fevereiro de 2019 (incluindo 172 em 2018), a crer no Provedor de Justiça (Ombudsman) Carlos Negret, nem os 133 ex-guerrilheiros executados (assim como 34 membros da sua família), depois de haverem deposto as armas, confiantes na palavra do Estado [2].

Para não deixar o campo aberto a uma possível e leve sensação de desconforto, o ministro da Transição Ecológica, François Henri Goullet de Rugy (“macronista” de fresca data, tendência “o verde está no fruto” [3]), assinou um acordo bilateral de cooperação para a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais com o seu homólogo Ricardo Lozano, que fazia parte da delegação colombiana. Também aí, por uma questão de equilíbrio e de não ingerência nos assuntos internos de um Estado soberano, foi assumido não mencionar a autorização dada por Bogotá para a exploração não convencional, por fraturação hidráulica (“fracking”), do petróleo e do gás de xisto presentes no subsolo colombiano; as primeiras experiências vão arrancar continuamente em 33.915 quilômetros quadrados, nos departamentos de Santander, César, Bolívar e Antioquia [4]. Caro ao presidente francês – como este recordou por ocasião da assinatura de um acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) – a implementação do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas encontrar-se-á, sem dúvida, muito facilitado…

Paradoxalmente, foi dos Estados Unidos que, para o presidente de extrema-direita Iván Duque, vieram as contrariedades. Com efeito, em 18 de maio, numa manchete de uma “primeira página” muito notada, o New York Times afirmou: “As novas ordens do exército colombiano para matar preocupam” [5]. Baseada em documentos oficiais e testemunhos anônimos de oficiais de alta patente, a investigação revelou as instruções do comandante em chefe das forças armadas nomeado por Duque, em dezembro de 2018, o general Nicacio Martínez, exigindo das suas tropas que duplicassem o número de “capturas” e de “eliminação de criminosos”. A injunção recorda a sinistra prática dos “falsos positivos” que, para “fazer número”, levaram à execução de civis apresentados como guerrilheiros mortos em combate – 2.248 vítimas, entre 1988 e 2014 (oficialmente), dos quais, mais de 90% durante os dois mandatos do mentor de Duque, Álvaro Uribe (2002-2010).

Sob o fogo da justiça, em relação a 283 destas execuções extrajudiciais, nos departamentos de Cesar e da Guajira, entre outubro de 2004 e janeiro de 2006, a 10.ª Brigada Blindada tinha então como Vice-comandante e Chefe do Estado Maior … Nicacio Martínez (nomeado depois por Duque às mais altas funções, bis repetita).

Percebendo uma possível reprovação internacional, o Exército suspendeu essa diretiva dois dias após a revelação do New York Times (NYT). Todavia, o “incidente” não terminou aí. Depois de o ministro da Defesa, Guillermo Botero, ter denunciado o artigo como estando “cheio de incoerências”, foi desencadeada uma feroz caça às bruxas dentro das unidades militares para encontrar, ameaçar e punir os responsáveis por aquelas revelações. Os dois colaboradores do NYT, o jornalista Nicholas Casey e o fotógrafo Federico Ríos, foram objeto de violentas rajadas de declarações agressivas – incluindo as do senador e ex-presidente Uribe, ou da senadora María Fernanda Cabal (esposa de José Felix Lafaurie, presidente da Fedegan, a poderosa federação de latifundiários, os principais beneficiários das terras arrancadas aos camponeses por paramilitares) – e insultados, acusados e, até, ameaçados de morte nas redes sociais, pelo que tiveram de deixar o país por razões de segurança.

Tendo feito de Duque um de seus principais comparsas na Organização dos Estados Americanos (OEA) para desestabilizar a Venezuela, Donald Trump, em 6 de maio de 2019, nomeou embaixador em Bogotá, Philip Goldberg, diplomata expulso da Bolívia em 2008, pelo seu papel numa violenta tentativa de derrubar o presidente Evo Morales. Isto é simbólico. Para não dizer um programa. No entanto, por vezes acontece que os Estados Unidos restringem com uma mão o que estimulam com a outra. Sobretudo em período eleitoral! Os oponentes a um segundo mandato de Trump lançam-se assim contra os aspectos mais absurdos de sua política – matéria que não falta, no caso da América Latina em geral e da Colômbia em particular.

É assim que, em 29 de maio, preocupados com a viragem dos acontecimentos, com o apoio da Casa Branca, setenta e três membros democratas do Congresso norte-americano apresentaram uma carta aberta muito crítica ao Secretário de Estado, Mike Pompeo, pedindo-lhe para pressionar Duque, com o objetivo de deixar de pôr em causa os Acordos de Paz. De onde, reforçando essa acusação, um outro editorial do New York Times – “Colombia’s peace is too precious to abandon” (“A paz na Colômbia é preciosa demais para ser abandonada”) –, os média e o pessoal político (neste caso democrata), sob a cobertura de informação independente, seguem muitas vezes de mãos dadas.

Por que se havia de duvidar… É também o NYT, embora muito pouco alinhado com Caracas, que atirou uma pedra ao charco, confirmando, com atraso, o que um punhado de jornalistas independentes clamava no deserto: no espetáculo que pretendia fazer entrar “ajuda humanitária” na Venezuela, desde Cúcuta (Colômbia), em 23 de fevereiro, foram partidários do “fantoche” Guaidó – e não as forças de segurança “de Maduro” – que incendiaram um camião da caravana de “benfeitores da humanidade”; um sítio da Web, libertário conservador, o PanAm Post, revelou-lhe a corrupção dos “representantes” de Guaidó, que, no lado colombiano da fronteira, desviaram dezenas de milhares de “dólares humanitários”, teoricamente destinados a essa generosa operação; por sua vez, a CNN em espanhol confirmou a tentativa de assassinato do presidente Nicolás Maduro, com a ajuda de dois drones carregados de explosivos, em 4 de agosto de 2018, entrevistando na Colômbia, onde vive em completa tranquilidade, um dos participantes neste magnicídio frustrado (por pouco). Tantas ações escabrosas e pesados fracassos imputáveis à política de Trump e dos seus falcões, Mike Pompeo, John Bolton (assessor de segurança nacional) e Eliott Abrams (“enviado especial” à Venezuela), que, como os seus comparsas venezuelanos, saem ridicularizados. Daí algumas revelações, mas a ofensiva contra Caracas continua noutros campos.

Porém, notar-se-á incidentalmente – desculpe-se este aparte! – que essas fugas dos média livres raramente excedem um razoável limite. Como testemunha um edificante episódio, relatado (28 de junho de 2019) por Daniel Espinosa, no semanário peruano Hildebrandt en sus trece. Em 15 de junho, o NYT publica um artigo revelador sobre a escalada de “ataques cibernéticos” realizados pelos Estados Unidos contra… a rede elétrica russa (o que, entre parênteses, reforça as suspeitas causadas pela gigantesca falha de energia que, recentemente, paralisou a Venezuela). Como é seu hábito e num instante, Trump atira-se por Tweet ao New York Times: a difusão desta informação constitui “um virtual ato de traição”. Em relação ao que, com grande candura, o departamento de comunicação do “órgão de comunicação (muito) independente” responde e revela: “Nós submetemos este artigo ao governo, antes da sua publicação. Como o mencionamos na nota, os oficiais de segurança nacional de Trump disseram-nos que não havia problema” …

Nas circunstâncias, e o que quer que se pense destas relações, adversas ou incestuosas, consoante o momento, o atual conluio “antiTrump” tem apenas aspectos negativos. Porém, há todos os motivos para nos preocuparmos com uma aliança ainda mais mortífera: a da extrema direita colombiana e do Partido Republicano Americano.

Em fevereiro de 2019, Duque apresentou a sua nova política de defesa e segurança: esta interdita, a partir de agora, as tréguas bilaterais no quadro do conflito armado interno, que continua a opor o Estado ao Exército de Libertação Nacional (ELN), histórica guerrilha ainda em atividade. Uma medida perigosamente contraproducente para o relançamento de uma possível “negociação”, atualmente congelada, especialmente quando se observa que, desde a sua chegada ao poder, Duque está a fazer tudo para rasgar os compromissos assumidos em nome do Estado pelo seu antecessor, Juan Manuel Santos, quando ele concretizou o fim do conflito com as FARC. Um terrível precedente. E, acima de tudo, representa o assassinato de um Prêmio Nobel!

O quinto ponto do Acordo de Paz, assinado em 24 de novembro de 2016, no teatro Colón de Bogotá, previa um “sistema de justiça, verdade, reparação e não repetição”, incluindo uma jurisdição especial para a paz, que o Congresso colombiano aprovou, em 27 de novembro de 2017.

“Ni trizas ni rizas!” (“nem rompimentos nem regozijos”). Fortalecido pela consulta popular, durante a qual, em 2 de outubro de 2016, após uma intensa campanha orquestrada pelo ex-presidente Uribe, 50,2% dos eleitores se pronunciaram contra o texto original dos Acordos, Duque, antes mesmo de sua eleição, e seguindo à letra as imprecações do seu mentor, nunca escondeu a sua intenção de retornar à espinha dorsal do dispositivo: a Justiça Especial para a Paz (JEP). Implementada, ela faria suar mais do que um membro do “establishment”. Originalmente, deveriam comparecer perante ela trinta e oito magistrados, 13.000 ex-guerrilheiros (que respeitam este compromisso e estão prontos a assumir as suas responsabilidades), polícias e militares, assim como atores comprometidos da sociedade dita “civil” – empresários ligados ao financiamento do paramilitarismo e agentes (não membros da força pública) do Estado. Com, como possível castigo, sentenças de restrição da liberdade (mas sem prisão) de cinco a oito anos – ou, mesmo, de vinte anos de prisão efetiva para quem, autor dos mais graves abusos, tentasse subtrair-se à revelação da verdade.

Crimes de guerra, crimes contra a humanidade… Eles bem puderam dar-se ares de segurança, Álvaro Uribe e os seus não quiseram ir longe. Já em setembro de 2017, o muito “uribista” Procurador Geral da República, Néstor Humberto Martínez, se recusou a cooperar com a procuradora do Tribunal Penal Internacional (TPI), Fatou Bensouda, e a entregar-lhe os relatórios e documentos por ela solicitados. Ela mostrou-se muito irritada (mas sem grandes consequências). Os mesmos lutam, desde então, como o diabo numa pia de água-benta, para bloquear o outro canal de acesso às atrocidades sob o terrorismo de Estado, aberto pela JEP.

Com efeito, desejando beneficiar das adaptações das suas penas em troca da verdade devida às vítimas, mais de 300 paramilitares pedem para comparecer perante a jurisdição, para revelar o seu papel e o dos setores políticos que financiaram e promoveram o seu movimento. Pelas mesmas razões, 1.914 militares, incluindo cinco generais e vinte coronéis, alguns dos quais fortemente condenados (por “falsos positivos” ou ligações ao paramilitarismo), apresentaram-se à JEP para beneficiar dos seus mecanismos, resultando da sua confissão e das suas revelações penas muito inferiores às da justiça ordinária (sabendo-se que eles não podiam ter acesso à JEP, antes de terem passado pelo menos cinco anos na prisão).

Um grande passo para repor a verdade, mas um pesadelo para os seus superiores e os seus patrocinadores, os “assassinos de colarinho branco”. Razão pela qual o presidente Duque declarou a sua intenção de reformar alguns artigos da lei.

A tentativa de desmantelamento da instituição criada para julgar e mostrar ao país a realidade de um conflito sangrento, com mais de cinquenta anos, não é de hoje. Já em 13 de julho de 2018, após uma longa passagem pelo Congresso, o Tribunal Constitucional eliminou a possibilidade da JEC convocar civis –, ficando apenas autorizado um comparecimento “voluntário” destes. Depois de uma sentença (570 páginas) obrigar um não combatente a comparecer perante este tribunal, tal passaria a ser “contrário à Constituição”, porque afasta o juiz natural do processo civil, que é a justiça ordinária. Esta, além disso, na pessoa do Procurador Geral, Néstor Humberto Martínez, não deixou de expressar a sua hostilidade ao que considera como uma instância ilegítima. O confronto de poderes foi até o questionamento, em setembro de 2018, da diretora dos Assuntos jurídicos da JEP, Martha Lucía Zamora, e de dois advogados e consultores, July Milena Henríquez e Luis Ernesto Caicedo Ramirez, acusados de “aconselhar e proteger” antigos combatentes das FARC. A alta funcionária foi empurrada para a demissão.

Finalmente remetida pelo Tribunal Constitucional ao Congresso, em dezembro de 2018, para que fosse assinada pelos presidentes da Câmara e do Senado, encarregados de a remeter, em seguida, ao Chefe de Estado, a lei estatutária da JEP não terminou assim o seu percurso de combate. Enquanto Duque disse que levaria “todo o tempo necessário” para a ratificar, o seu assessor para a paz, Miguel Antonio Ceballos, anunciou que o governo pretendia “fazer objeção à lei” por “inconveniência” (literalmente: “inconveniente”). A única possibilidade que resta quando o Tribunal Constitucional julga uma lei conforme com a Constituição, a “objeção por inconveniência” permite ao Chefe de Estado modificá-la, parcial ou totalmente, devendo o Congresso decidir em seguida se aceita ou recusa a “objeção”. Por outras palavras, Duque tenta usar a sua maioria parlamentar para desrespeitar os Acordos e a decisão do Tribunal Constitucional, instância suprema que lhe coloca areia na engrenagem.

Foi, então, em 10 de marco de 2019, num discurso televisionado que Duque anunciou, efetivamente, a sua intenção de alterar seis dos cento e cinquenta e nove artigos que regulam a JEP, dos quais um, altamente sensível, se refere à extradição dos ex-guerrilheiros. Um tema tanto mais delicado quanto, no quadro de um caso particularmente “arrevesado” e altamente significativo, os Estados Unidos reclamam especificamente a extradição de um dos mais prestigiados ex-comandantes das FARC, Seuxis Paucias Hernández Solarte, mais conhecido sob o nome de guerra que usava no comando do Bloco do Caribe: “Jesús Santrich”. Intelectual, sofrendo de cegueira, ele dirigia aí, essencialmente, as ações de agitação e de propaganda, mais do que as operações estritamente militares da oposição armada.

Em Havana, de outubro de 2012 a agosto de 2016, Santrich foi um dos mais duros negociadores das FARC frente aos emissários de Juan Manuel Santos. Excelente orador, brilhante analista, ele devia ocupar uma das dez cadeiras do Congresso (cinco membros, cinco senadores) reservadas, durante duas legislaturas, aos dirigentes da Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC) –, novo nome da guerrilha transformada em partido político, conforme acordado no final das conversações. No entanto, em 9 de abril de 2018, foi preso com base numa circular vermelha da Interpol, emitida pelo Tribunal Federal do distrito sul de Nova York, acusado de “conspiração”, pelo envio de dez toneladas de cocaína para os Estados Unidos.

A prova (que não prova nada): uma foto alegadamente tirada em 8 de fevereiro de 2018, enquanto Santrich estava supostamente “negociando” a expedição para o Norte do carregamento de cerca de US $ 15 milhões, com um agente “infiltrado” da Administração de Repressão da Droga (DEA, os “stups” [estupefacientes – NT] dos EUA) e alguns cúmplices – incluindo um certo Marlon Marín, sobrinho de Iván Márquez (o principal negociador das FARC em Havana).

Curiosa maneira de conspirar discretamente com perigosos narcotraficantes: o sulfuroso encontro teve lugar na casa de Santrich, vigiado e protegido de forma permanente pela polícia, por causa da personalidade sensível do seu habitante! Num vídeo produzido ulteriormente, veem-se os mesmos “verdadeiros falsos narcotraficantes” discutindo e entregando um documento ao ex-guerrilheiro. Detalhe que mata: nos referimos que Santrich é cego. Alguém poderia oferecer-lhe a Bíblia, fazendo-o acreditar que é o Alcorão. Nenhum som permite ouvir as palavras “cocaína”, “branco”, “droga”, “narcótico”, “cheiro”, “carga” ou algum outro nome aproximado.

Contudo, o conteúdo da acusação não deixa de ser muito sério. Santrich protesta em sua boa fé. Tendo-se apresentado como o sobrinho de Iván Márquez, Marlon Marín inspirava-lhe confiança. Ele e os outros, incluindo o provocador da DEA, falavam nesse dia sobre fundos para “um projeto produtivo, especificamente de fazenda agrícola, nas zonas onde os acordos da reforma rural deveriam ser implementados” destinados, entre outras coisas, à reintegração dos antigos combatentes. “Isso far-se-ia com funcionários do Ministério do Pós-conflito, inclusive com o doutor [Rafael] Pardo [6]”.

A acusação permanece, avançada pela toupeira dos stups americanos e Marlon Marín (imediatamente extraditado para os Estados Unidos, onde vive como “testemunha protegida” sem ter, em qualquer momento, testemunhado perante a justiça colombiana): misturado com a Venezuela (forçosamente!) e o cartel de Sinaloa, no México, Santrich não é nada além de um vulgar narcotraficante.

Seja qual for o lado por que se lhe pegue e com toda a necessária prudência, esta história “fede” a provocação. E, depois, a evidente vontade do Centro Democrático (partido de Uribe e Duque), da Procuradoria de Néstor Humberto Martínez e das turbulentas organizações de Washington de descartar um temível opositor, torpedear moralmente as FARC e quebrar o impulso dos partidários da paz.

Mesmo do ponto de vista legal, o processo usado para prender Santrich é proibido na Colômbia. No mundo da espionagem, existem dois tipos de operações: a do agente clandestino (“undecover agent”), que se infiltra numa organização para aí recolher informações; e a do agente provocador, que engana a sua presa (“entrapment”) e incita-a a cometer um delito. Amplamente utilizada nos (e pelos) Estados Unidos, esta última técnica foi proibida na Colômbia pelo artigo 243 do Código de Processo Penal e por, pelo menos, duas sentenças do Tribunal Constitucional (C-176, de 1994 e C-156, de 2016) [7].

Esta grosseira violação da lei não impede Juan Manuel Santos, então presidente, de justificar a prisão como “necessária para tornar credível um Acordo de Paz que os colombianos acreditam ter sido excessivamente generoso com os rebeldes” e de esclarecer: “A minha mão não tremerá para autorizar a extradição”.

“Antes morrer do que apodrecer numa cadeia nos Estados Unidos”, reagiu Santrich. Ele inicia uma greve de fome, em abril/maio de 2018, que duraria 43 dias.

A partir daí tem início uma batalha legal para saber quem deve decidir o seu destino. Se o delito, o crime ou a “conspiração” destinada a cometê-los ocorreram até à entrada em vigor dos acordos de paz (1º de dezembro de 2016), a JEP é competente e, conforme especifica a lei, qualquer extradição está excluída. Se ocorreram posteriormente, a justiça ordinária toma conta do alegado delinquente, com todas as suas possíveis consequências (incluindo uma viagem gratuita e sem fim às infernais prisões americanas), sabendo-se que as duvidosas provas apresentadas (foto e vídeo) não permitem determinar a data exata da “conspiração”. Mesmo se, neste ponto, Santrich nunca tivesse mantido qualquer ambiguidade: a reunião suspeita ocorreu “depois” da data chave. O verdadeiro problema reside no fato de se tratar de uma manipulação destinada a difamá-lo, para o esmagar.

Em 20 de junho de 2018, a JEP considera-se competente para julgar o caso. Há linchamentos no ar: roxo de raiva, Néstor Humberto Martínez acusa a jurisdição “concorrente” de “ameaçar a ordem constitucional”. Tenaz como a varíola, recusa duas vezes o pedido de habeas corpus apresentado pela Santrich. A tomada de posse oficial de Duque, a 7 de agosto, aumenta a energia. À JEP, que lhe pediu o dossiê de extradição do ex-guerrilheiro, ele enviou, em setembro, presumíveis provas diferentes daquelas que a justiça norte-americana alegadamente dispõe (sem nunca as ter comunicado aos colombianos). O que leva uma comissão rogatória da JEP a reclamá-las a quem de direito, através do Ministério da Justiça (colombiana) e do Departamento de Estado (americano). Sem resultado. No início de fevereiro de 2019, o embaixador dos EUA, Kevin Whitaker, contentou-se em afirmar: “Até agora, não recebemos nada do governo [colombiano] sobre este assunto”.

O péssimo folhetim torna-se ridículo (ou obsceno): quando está para terminar o prazo de quarenta dias concedido pela JEP ao Ministério da Justiça para lhe remeter as provas que os Estados Unidos dispõem contra Santrich, a ministra Gloria María Borrero anuncia descobrir “com surpresa” que a solicitação oficial, uma “carta ordinária” enviada a Washington através do serviço postal público 4-72, se perdeu… no Panamá [8].

Ao mesmo tempo, e na esperança de deslegitimar a tão incômoda JEP, os duvidosos métodos da DEA fazem das suas. Em março, no bar do luxuoso hotel JW Mariott, situado na “zona rosa”, bairro financeiro e de entretenimento do norte de Bogotá, a polícia prende em flagrante delito um juiz da JEP, Carlos Julio Bermeo. Acabava de receber uma primeira parcela de 40.000 dólares dos 500.000 que lhe prometeram para “adulterar” o dossiê de Santrich, para evitar a sua extradição. Corrompido em potência e perfeito “pombo”, Bermeo nunca duvidou que estava lidando com um agente provocador da… Procuradoria colombiana [9].

Quando os fundamentos do “show” são descobertos, o procurador que os musicou justifica os métodos utilizados e afirma que se deve considerar como “normal” que o procurador-geral Néstor Humberto Martínez tenha autorizado a utilização dos 500.000 dólares, assinando uma resolução para permitir retirá-los dos “fundos especiais” da Procuradoria.

As provas solicitadas aos Estados Unidos nunca chegam. E como o seu homólogo Trump, Duque vai sempre “mais além”. Claramente preocupada, a Missão de verificação da ONU na Colômbia exige que seja respeitado “integralmente, o Acordo de paz assinado com as FARC”. Em 8 de abril, apesar da presença onipresente no hemiciclo de um furioso Néstor Humberto Martínez e das pressões do novo embaixador norte-americano, Kevin Whitaker, a Câmara dos Deputados rejeita as “objeções” do Chefe de Estado, com uma clara maioria de 110 vozes contra 44. A sua derrota acentua-se quando o Senado vota no mesmo sentido, no início de maio.

Voltados de costas, o Centro Democrático e os seus aliados contestam falsamente o resultado da última votação – faltaria “uma voz” – e pedem ao Tribunal Constitucional para resolver. Este último apenas destaca o óbvio, em 29 de maio: um quórum de 93 senadores foi convocado para votar e 47 rejeitaram as “objeções” – estas foram rejeitadas. O braço de ferro inclina-se, cada vez mais, contra o governo.

Em 15 de maio, a Jurisdição Especial para a Paz anunciou que recusava o pedido de extradição de Santrich: “As provas apresentadas pela Procuradoria dos EUA não permitem afirmar [que este] fez tráfico de droga depois da entrada em vigor do Acordo de paz”. Por outro lado, considerou a sentença, “os membros da DEA [que desenvolveram a provocação] não foram legalmente autorizados pela Procuradoria colombiana, que teria podido (e devido) fazê-lo, através dos mecanismos existentes em matéria de cooperação judiciária”. Por outras palavras: os “serviços” ianques acreditam que podem atuar na Colômbia como num país conquistado.

O Tribunal Constitucional está agora caminhando no mesmo sentido. Depois de treze longos meses de encarceramento, decide ele, Santrich deve ser libertado! Acusando a JEP de “desafiar a ordem jurídica” e “ameaçar a democracia”, o procurador-geral Néstor Humberto Martínez anuncia espetacularmente a sua demissão e apela aos cidadãos “para se mobilizarem com determinação no restabelecimento da legalidade e da defesa da paz”. A ministra da Justiça, Gloria María Borrero segue-o. Na sua missão de se alinhar com os descontentes, Washington anula o visto a um membro (John Jairo Cárdenas), que denunciou publicamente a ingerência do embaixador Kevin Whitaker, e anunciou sanções contra três juízes – dois do Tribunal Constitucional (Antonio José Lizarazo, Diana Fajardo) e um do Supremo Tribunal de Justiça (Eyder Patiño).

Decidida em 13 de maio, a libertação da Santrich arrasta-se inexplicavelmente, obrigando a defesa a apresentar um novo habeas corpus. Ainda foi preciso esperar até ao dia 17 para que o ex-guerrilheiro deixasse a prisão de alta segurança de La Picota, em péssimo estado, numa cadeira de rodas. E, golpe de teatro, é recapturado dez minutos depois, por ordem do Procurador. Tudo isto sem explicações. Dependendo das suas opiniões, este golpe de teatro entusiasma, petrifica ou escandaliza os colombianos. Mas só mais tarde se poderá reconstituir a cadeia de acontecimentos.

A ordem para libertar o ex-guerrilheiro entregue pela JEP às autoridades do Instituto Nacional Penitenciário e Prisional (INPEC) chegou a 17 de maio, às 9h. Nada acontece, nenhuma autoridade aparece. Em todo o lado farfalham as conversas, o “disse me disse”. Desde o dia 13, o ex-presidente Uribe dispara em todas as direções. De acordo com o que espalha aos quatro ventos, Santrich vai ser transferido para a base do Comando aéreo de transporte militar (CATAM), próxima do aeroporto internacional el Dorado, de Bogotá, entregue à DEA e enviado manu militari para os Estados Unidos. Hipótese confirmada quando, vindo das altas esferas, surgiu um pequeno ruído: Duque vai decretar o Estado de comoção interna e, efetivamente, entregar o detido [10].

Santrich tomou conhecimento desses rumores. E descobre que, apesar das ordens da JEP, continua preso. Ele anunciou sempre a cor. Em nenhum caso sofrerá o destino do seu camarada Ricardo Palmera Pineda (conhecido como “Simón Trinidad”), preso em 2 de janeiro de 2003, no Equador, entregue por Uribe, um ano depois, aos Estados Unidos, e enterrado vivo durante 60 anos numa prisão de alta segurança, no meio do deserto, no Colorado. Absolvido pelos tribunais norte-americanos depois dos três primeiros julgamentos (dois por narcotráfico e um por tomada de reféns), Simón Trinidad foi finalmente condenado por pertencer ao Secretariado (o Estado-Maior) das FARC – de que não era membro! –, responsável pela “tomada de reféns” de três mercenários norte-americanos em missão de espionagem e capturados pela guerrilha, depois de esta ter abatido o seu avião, em fevereiro de 2003. Num mundo normal, estes homens são classificados como “prisioneiros de guerra”. …

Mergulhado neste precedente e como ele mais tarde confirmará ao senador de esquerda Iván Cepeda, Santrich tenta suicidar-se, abrindo as veias. Quando, na tarde do dia 17, acontece o simulacro da sua libertação, as dezenas de câmaras que o aguardam no portão da prisão filmam um homem meio comatoso e, sobretudo, após a chegada da polícia, de surpresa, a sua detenção imediata.

O Procurador, em seguida, afirma ter novas provas contra ele. Elementos que ele nunca comunicou à JEP e provenientes da “testemunha protegida” Marlon Marín e da “cooperação internacional” dos Estados Unidos. Esta tentativa de “julgamento expresso” fracassa. Em 29 de maio, de uma vez por todas, o Supremo Tribunal ordenou a imediata libertação de Santrich e interrompeu qualquer tentativa de extraditá-lo.

Pode, a partir daí, considerar-se que “tudo está bem no melhor dos mundos”. A primeira decisão que permitiu tal abordagem foi a do Conselho de Estado. Este considerou que Santrich manteve a sua investidura como deputado, na medida em que, se ele não tinha tomado posse e ocupado o seu lugar ao assumir o cargo na nova Assembleia, em 20 de julho de 2018, foi por uma razão de força maior – tinha sido preso! O Supremo Tribunal de Justiça confirmou que Santrich era deputado e acrescentou que, portanto, a sua acusação por “narcotráfico” só poderia ser julgada por si. Pelo que, em 10 de junho, Santrich pôde finalmente prestar juramento no cargo de vice-presidente da Assembleia e, em 11 de junho, sentar-se pela primeira vez como membro do Parlamento.

No entanto, o cozido nauseabundo que o precedeu provocou, em profundidade, uma tripla movimentação, com consequências ainda imprevisíveis: uma divisão no seio da FARC; uma crise institucional no coração do poder; um inquietante enfraquecimento das esperanças de paz.

Desafiando a palavra do Estado quando os assinou, os Acordos de Paz foram constantemente modificados unilateralmente, através dos mais altos tribunais (Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal de Justiça) e da maioria de direita do Congresso. Em detrimento da reintegração social e econômica dos insurgentes e das reformas necessárias para superar a injustiça estrutural que provocou o conflito, juntando-se à campanha de terror realizada através do assassinato seletivo e diário de dirigentes sociais, a ofensiva dos Estados Unidos (via DEA) e da dupla “Duque-Uribe” (através de Néstor Humberto Martínez) contra Santrich, tornou claro que as facções mais arcaicas da direita colombiana (e “yanquee”) apostavam na política do quanto pior melhor.

Causalidade, finalidade, consequências … Desde a prisão do seu “camarada” Santrich, em abril de 2018, o emblemático Iván Márquez (de seu nome verdadeiro Luciano Marín Arango), primeiro dos negociadores das FARC em Havana, denuncia “uma montagem” e anuncia que, na ausência de garantias suficientes, ele próprio não tomará posse do seu assento senatorial, em julho: o Ministério Público e a DEA, segundo ele, e com métodos semelhantes, pretendem acusá-lo pelo mesmo tipo de delitos. Márquez insta os ex-guerrilheiros agrupados nos vinte e quatro Espaços Territoriais de Treino e Reincorporação (ETCR) a “exigir a libertação imediata de Santrich” e a “defender a implementação dos acordos”. Por outro lado, o ex-comandante-em-chefe dos rebeldes e atual líder do novo partido FARC, Rodrigo Londoño Echeverri (mais conhecido por seu nome de guerra de Timoleón Jiménez ou Tymoshenko), apela à calma e pede ponderação.

Uma primeira e clara divisão aparece quando Márquez deixa Bogotá e se junta à ex-base de guerrilheiros do ETCR de Miravalle (Caquetá), antes de passar à clandestinidade. Lá, encontrou Hernán Darío Velásquez Saldarriaga (também conhecido como “El Paisa”) e Henry Castellanos Garzón (“Romaña”) e outros ex-comandantes de primeira linha em ruptura. Sem pertencer de nenhum modo à minoria de ex-insurgentes que se recusaram a depor as armas, seja por razões políticas ou para se entregar a atividades mafiosas, eles manifestam-se regularmente em mensagens, como a de 25 de dezembro de 2018 – “Nós realmente agíamos como cegos quando não queríamos ver os inúmeros antecedentes de traição desta oligarquia, depois da assinatura de episódios de paz” – ou a que, no final de janeiro de 2019, denuncia a agressão dos Estados Unidos, com a cumplicidade de Duque, contra a Venezuela bolivariana.

Em setembro do ano passado, numa carta ao Ministério Público, “Romaña” confirmou o seu compromisso de cumprir os acordos, exigiu fundos prometidos aos ex-guerrilheiros para o financiamento de projetos produtivos e pediu “segurança jurídica” em apoio à sua intenção de “não voltar à ilegalidade”. Ao mesmo tempo, um outro “histórico”, Fabián Ramírez, ratificou, através de um comunicado à Comissão de Paz do Congresso, que se mantinha no quadro do “pacto firmado com o governo de Santos”, explicando as razões do seu desaparecimento na natureza: “Por este motivo [a perda de confiança devido à montagem contra Santrich] e pela nossa segurança pessoal, optamos por não ser uma vítima adicional da manobra suja orquestrada através do roteiro dado a Marlon Marín para que manchasse o nome de alguns dos nossos camaradas com acusações totalmente falsas [11]”.

O Partido balança. Ele também reafirma a sua vontade de continuar o processo de paz, mas, temendo a sua influência na base, pede aos seus dirigentes discordantes que respeitem as suas obrigações e, em particular, permaneçam no ETCR, sem conseguir unanimidade nas suas fileiras. Enquanto alguns, na direção, são muito críticos dos “dissidentes”, outros compreendem e aprovam os seus motivos.

O debate agudiza-se ainda mais quando, no final de abril de 2019, o governo oferece uma recompensa de US $ 1 milhão por qualquer informação que permita a prisão de El Paisa. Convocado três vezes pela JEC, não compareceu. Esta revoga a “liberdade condicional” de que beneficiava e, em 15 de maio, confirma o mandado de prisão contra ele. A medida chega num momento em que, apesar de uma ordem de libertação, Santrich é mantido na prisão. É demais para Iván Márquez. Numa carta incendiária destinada aos milhares de ex-rebeldes, ele “dá um murro na mesa”: “Colegas do ETCR: em nome dos comandantes militares do antigo Estado-Maior Central das FARC, comandantes das frentes e das colunas, afetados pela traição do Acordo de Paz de Havana perpetrada pelo Estado, reiteramos, de uma forma autocrítica, que foi um grave erro ter entregado armas a um Estado trapaceiro, confiantes na boa fé do parceiro. Que ingenuidade não nos termos lembrado das sábias palavras de nosso comandante em chefe Manuel Marulanda Vélez, que nos advertiu que as armas eram a única garantia de cumprimento desses acordos [12]”.

Desta vez, podemos falar de uma verdadeira fratura. Quando Santrich, saindo em cadeira de rodas da Prisão de La Picota, foi espetacularmente detido novamente, “Tymoshenko”, o número “um” do partido, fez o serviço mínimo, em termos de solidariedade com um dos seus: se Santrich é extraditado ou não, “estamos com a paz, aconteça o que acontecer”. Ele reage infinitamente mais à carta de Márquez, que ele acusa de “procurar o aplauso de um punhado de cabeças quentes”: “Infelizmente, Iván não percebeu a dimensão do cargo que a nossa longa luta o levou a ocupar. Partiu, sem dar qualquer explicação e recusou-se a ocupar o seu lugar no Senado, deixando a nossa representação parlamentar sem direção, num momento que exigiria ainda mais a sua presença”. Chega a culpá-lo do papel do sobrinho Marlon Marín, na tenebrosa série intitulada “Narcos”.

No seio da FARC, muitos continuam sem voz. Ouvem-se os primeiros murmúrios. Disparam-se críticas mais ou menos filtradas: para o deputado do partido, Benedicto González, a opinião de “Tymoshenko” é “respeitável”, mas “não podemos fazer crer que é partilhada pelo Conselho Nacional dos Comuns [a maior autoridade do partido das ex-FARC que agora se designa Força Alternativa Revolucionária do Comum – NT], nem pelas bases”. No seio das quais uma perda de confiança na direção se torna perceptível, ameaçando, desta vez realmente, a coesão de ex-guerrilheiros a cada dia mais insatisfeitos com as condições execráveis em que se desenrola a sua suposta reintegração.

Na trincheira oposta, o Estado, como tal, sai enfraquecido desta sequência, abalado pela guerra aberta entre as suas várias instituições. Do lado do governo, o tempo já não é para triunfalismos. Os acontecimentos não se viraram a seu favor. Mesmo as elites econômicas estão divididas entre “arcaicos” e “modernos”, repetindo (ou continuando) as discordâncias entre os ex-presidentes Uribe e Santos, depois deste ter sido eleito para a presidência, em 2010. Ao rejeitar as “objeções” do atual chefe de Estado, a Câmara dos Deputados e o Senado infligiram-lhe, claramente, uma humilhação. Já não dispõe de uma maioria automática para governar. Os partidários de Santos, ex-aliados (Cambio Radical), os Verdes e o centro-esquerda juntaram forças para impedir, na medida do possível, o atropelo final dos Acordos de Paz.

A sequência de acontecimentos provocou tanta discussão que não foi possível a Duque declarar o estado de comoção interna (por enquanto). A renúncia do seu grande aliado Néstor Humberto Martínez também lhe pôs uma pedra no sapato. Não escapou a ninguém que o Procurador Geral aproveitou a oportunidade para sair pela “porta grande” – a da “convicção desrespeitada” – quando se aproximava dele, a alta velocidade, uma análise do seu papel no escândalo “Odebrecht” – do nome do gigante da construção civil brasileiro, que salpica todo o continente [13]. Advogado da empresa de serviços financeiros Corficolombiana, sócia da Odebrecht na Colômbia, Martínez sabia das irregularidades no grupo de construção, na ordem de US $ 6,5 milhões, e não as denunciou. Um caso que é ainda mais complicado, porque três testemunhas capitais morreram em condições mais do que suspeitas nestes últimos meses. E que outro grande caso de corrupção também está abalando as altas esferas do exército.

Finalmente, o outro grande “sócio”, Donald Trump, é tão imprevisível e versátil com Duque como com qualquer outra pessoa. Aos abraços e cenouras (para atingir a Venezuela), sucedem-se os golpes quando, queixando-se do aumento de 50% das culturas de coca e da produção decorrente de cocaína, o inquilino da Casa Branca declara secamente “Duque é um bom rapaz, mas não fez nada por nós”. Já vimos amigos mais calorosos.

Em relação ao futuro, é preciso ser muito esperto para o prever. O último golpe de teatro (antes do próximo): quando teve de comparecer perante o Supremo Tribunal de Justiça, em 9 de julho, para ser ouvido sob a acusação de “narcotráfico”, Jesús Santrich desapareceu, no dia 30 de junho. Multiplicam-se os comentários duros e a especulação arriscada. As mesmas palavras, os mesmos raciocínios de antes. Esquecendo uma verdade fundamental: o presente explica-se sempre pelo passado. Vamos mencionar aqui algumas hipóteses, tomando o cuidado de excluir a palavra “certeza” (“palavra que um homem que viveu um pouco risca do seu dicionário”, segundo Voltaire, precisamente no seu Dicionário, no artigo “Certo”).

Assim que, a 11 de junho, Santrich finalmente tomou o seu lugar na Câmara dos Representantes, o presidente Duque, depois de regressar da Argentina, onde conspirava com o seu colega Mauricio Macri, para descobrir como acabar com Maduro, acabara de pedir ao Ministério Público “que impedisse esta tomada de posse”, apesar de o Conselho de Estado a ter claramente aprovado. O chefe de Estado teve de a aceitar, não sem comentar acidamente: “Não podemos deixar de chamar as coisas pelo seu nome. Aliás, Jesús Santrich é um mafioso e todo o país sabe que ele negociou a expedição de um carregamento de cocaína”.

De Washington chovem as críticas contra o Supremo Tribunal da Colômbia, por ter libertado o ex-guerrilheiro. “Consideramos esta decisão lamentável e que é essencial e urgente um recurso”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Morgan Ortegas (antes de aquecer o ambiente com a discussão da aliança entre os dois países, na tentativa de introduzir ajuda humanitária e soldados na Venezuela para “fazer frente” a Maduro).

Quando, finalmente, o novo deputado, impassível atrás dos seus óculos escuros, os ombros cobertos com seu eterno keffiyeh palestiniano, toma o seu lugar na Assembleia, dá-se uma bronca. Representantes do Centro Democrático exibem cartazes “Fora com Santrich!”. Mesmo os chamados “Verdes” exibem faixas: “Defendemos a paz, não Santrich”.

Não é preciso um meteorologista para saber em que direção sopra o vento. Em tal contexto, com tais pressões de todos os lados, que hipóteses tem Santrich para escapar das nuvens negras que se acumulam sobre a sua cabeça? Um julgamento e um veredicto muito incertos do Supremo Tribunal de Justiça? Ao terem início os procedimentos contra ele, descobriu que não era “necessário, proporcional ou razoável” encarcerá-lo durante esta etapa, porque a sua possível privação de liberdade poderia ser decidida após tê-lo ouvido no enquadramento da informação judicial (“indagatória”) de 9 de julho, com o risco, em caso de prisão seguida de condenação, de vê-lo extraditado, uma vez que a JEP tinha sido afastada! Não havia a certeza se o rebelde queria jogar a roleta russa …

Quando deixou La Picota, tinha declarado claramente o seu alinhamento com alguns dos seus camaradas: “[Iván] Márquez assumiu uma posição autocrítica, mas reiterou o seu desejo de paz; envio-lhe uma mensagem de amor e fraternidade. (…) O que fazem Márquez e El Paisa é insistir na necessidade de respeitar o acordo, e é também o que vou fazer [14]”.

Já que estamos falando de Márquez, notemos de passagem que, em 14 de junho, o Conselho de Estado decretou a sua perda de lugar no Senado, por não o ter tomado dentro do tempo requerido e “sem apresentar qualquer prova” do que ele considera “uma ausência de garantias”.

A enumeração dos possíveis esconderijos de Santrich varia até o infinito: alguns veem-no em casa do diabo mais velho, protegido pelo ELN; outros, na Venezuela, com (ou sem) o seu camarada Márquez, ajudado pelo seu “cúmplice” Maduro; outros ainda, com um dos grupos armados remanescentes das FARC; ou à procura de asilo político num país garantidor dos acordos de paz (Noruega e Cuba). Seusis José Hernández, seu filho, mostra-se muito preocupado: “Duvido que o desaparecimento do meu pai tenha a ver com um ato de rebeldia ou qualquer coisa que vá contra a paz”, diz ele, não descartando que o ex-guerrilheiro tenha sido sequestrado e se tenha juntado à longa lista dos “desaparecidos” [15].

Onde quer que esteja, a situação não é boa para ninguém. Exceto, talvez, para os adversários da paz e da JEC, a começar por Duque, que dizem fanfarronadas, comem do bom e do melhor e gozam a vida. Assim que a notícia foi dada, o movimento cidadão “Defendamos a Paz”, temendo as consequências previsíveis, pediu a Santrich que informasse as autoridades sobre o seu paradeiro e comparecesse perante o CSJ, em 9 de julho, como estava previsto.

Nesse dia, em que apenas os seus advogados compareceram e Santrich não reapareceu, o Supremo Tribunal de Justiça emitiu um mandado de prisão e ordenou a sua captura. Ei-lo agora marcado com o status de “fora da lei”. Sem surpresa, o centro, a direita e a extrema direita reagiram de forma mecânica e com ódio, como robôs. Da esquerda moderada de Gustavo Petro – candidato do Pólo Democrático Alternativo (PDA), na última eleição presidencial (41,8% dos votos) – até ao altamente comprometido senador Iván Cepeda, veio uma reprovação unânime. Alguns claramente vituperaram, maldisseram, culparam e condenaram o rebelde. “O que aconteceu é triste”, disse Cepeda, que tinha acompanhado Santrich quando foi libertado da prisão e que estava preocupado pelos danos causados ao processo de construção da paz.

Numa declaração pública, o Conselho Político Nacional da FARC esclareceu que a conduta de Santrich “é de sua única responsabilidade” e que, “tal como fez com outras decisões pessoais, não [consultou] o partido nem a sua direção”. Olhando para o movimento como um todo, a declaração concluiu expressando a sua confiança em que “a comunidade internacional e a justiça saberão fazer a diferença entre as determinações de indivíduos ou grupos que rejeitam o que foi assinado nos Acordos de Havana, e a grande maioria de nosso partido FARC, que se mantém leal e firme no seu projeto de paz com justiça social”.

Por estas linhas, compreendeu-se facilmente a lógica dos líderes de um partido já impopular na opinião publica, diretamente afetado pela reprovação geral que, por ricochete, recai sobre eles. Os líderes estão também preocupados com o sinal negativo que esse regresso à clandestinidade envia a milhares de guerrilheiros de base que, tanto respeitam Iván Marquez ou “El Paisa”, como apreciam e admiram Santrich. No entanto, a dureza do tom em relação a este último chocou muitos “camaradas”. Em particular, o tom do senador da FARC, Carlos Antonio Lozada, ex-negociador em Havana, particularmente virulento nas suas observações: “Não há nenhuma justificação para que Santrich se tenha ido embora assim! [16]”.

Curioso, mesmo assim … Porque é esse mesmo Lozada que, no dia 10 de julho, informou no Twitter e através de vários meios de comunicação que vai apresentar uma queixa, em nome do partido, e trará “provas, ou pelo menos pistas” de que “está em marcha um plano para assassinar os [altos] dirigentes das FARC”. No dia anterior, dois novos ex-guerrilheiros foram executados no distrito de Cauca, elevando para 137 o número de “camaradas” assassinados.

Poucos dias antes (6 de julho), numa carta enviada ao presidente Duque, três civis que nunca pegaram numa arma (mas da oposição e muito envolvidos na implementação dos Acordos de Paz!), os senadores Iván Cepeda, Roy Barreras e Antonio Sanguino, denunciaram ser vítimas de escutas ilegais da Direção Nacional de Inteligência (DNI), destinadas a neutralizá-los através de “montagens judiciais”. Como Santrich? De qualquer forma, este é um bom e velho retorno às “chuzadas”, escutas e investigações clandestinas sobre ativistas, sindicalistas, políticos, partidos tradicionais, jornalistas e membros do Supremo Tribunal efetuadas pelo Departamento Administrativo de Segurança (DAS), dependendo diretamente de uma presidência da República ocupada por Álvaro Uribe, entre 2002 e 2010. O mesmo DAS – mas quem se lembra? – que passava as informações aos paramilitares, para assassinarem oponentes políticos [17].

Nestas condições, vamos esperar para saber mais para nos pronunciarmos definitivamente sobre o “caso Santrich”. Afinal de contas, a sua decisão de escapar pode ter boas razões. O futuro o dirá. Infinitamente mais preocupantes são, para a Colômbia, as ameaças que pairam sobre os oponentes e o processo de paz.

Notas

[1] Segundo a Agência das Nações Unidas para os refugiados, 7,4 milhões, em março de 2017 – https://www.unhcr.org/fr/news/briefing/2017/3/58c2d740a/hausse-deplacements-forces-colombie-malgre-signature-laccord-paix.html

[2] Ao ritmo de (no mínimo) duas ou três vítimas por semana ; estes números aumentaram consideravelmente depois desta contagem.

[3] https://www.lepoint.fr/politique/francois-de-rugy-epingle-pour-des-diners-luxueux-a-l-hotel-de-lassay-10-07-2019-2323748_20.php?M_BT=638344349633#xtor=EPR-6-[Newsletter-Mi-journee]-20190710

[4] Uma das principais consequências da fraturação hidráulica é a poluição das águas e dos solos. Alguns pesquisadores acreditam que ela poderia estar relacionada com terremotos, deslizamentos de terras e outras atividades sísmicas. Outros evocam sequelas sanitárias, por vezes importantes para as populações locais.

[5] https://www.nytimes.com/2019/05/18/world/americas/colombian-army-killings.html?module=inline

[6] Ministro da Defesa durante o mandato do presidente César Gaviria (1990-1994), Pardo tornou-se um alto conselheiro para o pós-conflito, os Direitos do Homem e a Segurança, em novembro de 2015.

[7] Semana, Bogotá, 3 de junho de 2019.

[8] Em 2006, alegando “problemas financeiros”, a Administração postal nacional (Adpostal) foi liquidada pelo governo colombiano. Em sua substituição, criou o 4-72, a atual rede pública.

[9] O advogado Bermeo apresentou-se às eleições regionais, em 2015, no Departamento de Cauca, apoiado pelo partido Opção cidadã, do ex-senador Luis Alberto Gil, condenado em 2011 (saiu da prisão em 2013) pelas suas ligações ao paramilitarismo. Também envolvido na provocação ligada ao “dossiê Santrich”, Gil foi preso ao mesmo tempo que Bermeo, que estava a acompanhar.

[10] Na Colômbia, sem dissolver o Congresso nem suspender (teoricamente) as liberdades fundamentais, o “Estado de comoção interna” (Estado de sítio) permite ao governo legislar por decreto e suspender a aplicação de certas leis.

[11] El Tiempo, Bogotá, 10 de setembro de 2018.

[12] De seu verdadeiro nome Pedro Antonio Marin, Manuel Marulanda, aliás “Tirofijo” (tiro certeiro), foi fundador e dirigente das FARC, de 1964, ano do seu nascimento, até à sua morte, em 26 de março de 2008, de morte natural. Tinha abraçado a guerrilha em 1948, nas milícias de autodefesa camponesas, durante o período chamado “la Violencia”.

[13] Advogado da sociedade de serviços financeiros Corficolombiana, ele próprio associado à Odebrecht, na Colômbia, Martinez estava ao corrente das irregularidades do grupo de construção, ascendendo a 6,5 milhões de dólares, e não as denunciou.

[14] https://www.elheraldo.co/politica/los-tres-escenarios-para-santrich-tras-su-fuga-647828

[15] Digital BLU Radio, 2 de julho de 2019.

[16] Semana, Bogotá, 7 de julho de 2019.

[17] Hernando Calvo Ospina, “Quand l’Etat colombien espionne ses opposants [Quando o Estado colombiano espia os seus opositores]”, Le Monde diplomatique, avril 2010.

*Maurice Lemoine é jornalista.

Fonte: http://www.medelu.org/La-Colombie-sous-la-coupe-des-criminels-de-paix, publicado em 2019/07/11, acedido em 2019/07/18

Tradução do francês de TAM

https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/colombia-sob-a-pressao-de-criminosos-72498