China: ascensão, queda e retomada como poder global – as lições da história

Introdução

O estudo do poder mundial tem sido prejudicado por historiadores eurocêntricos que têm distorcido e ignorado o papel dominante que a China desempenhou na economia mundial entre 1100 e 1800. A brilhante pesquisa histórica de John Hobson1 a respeito da economia mundial durante esse período fornece dados empíricos abundantes, que tratam da superioridade econômica e tecnológica da China sobre a civilização ocidental na maior parte do milênio, antecedendo sua conquista e o declínio no século XIX.

A reemergência da China como poder econômico mundial levanta importantes questões sobre o que podemos aprender de sua anterior ascensão e queda, bem como a respeito das ameaças internas e externas a esse superpoder econômico emergente para o futuro imediato.

Primeiramente, vamos esboçar os principais contornos da ascensão histórica da China rumo à superioridade econômica no Ocidente antes do século XIX, seguindo de perto as considerações de John Hobson emThe Eastern Origins of Western Civilization [As origens orientais da Civilização Ocidental]. Desde que a maioria dos historiadores econômicos do ocidente (liberais, conservadores e marxistas) apresentou a China histórica como uma sociedade estagnada, retrógrada e paroquial, como um “despotismo oriental”, algumas correções cuidadosas precisam ser feitas. É especialmente importante enfatizar como a China, a potência tecnológica mundial entre 1100 e 1800, tornou possível a emergência do Ocidente. Foi apenas por meio do empréstimo e assimilação das inovações chinesas que o Ocidente foi capaz de fazer a transição para as economias modernas capitalistas e imperialistas.

Na parte 2, vamos analisar e discutir os fatores e as circunstâncias que levaram ao declínio da China no século XIX e sua subsequente dominação, exploração e pilhagem pelos países imperiais do Ocidente, primeiramente a Inglaterra e depois o resto da Europa, Japão e Estados Unidos.

Na parte 3, vamos delinear brevemente os fatores que levaram à emancipação da China do jugo do poder colonial e neocolonial e analisaremos sua recente ascensão à condição de segunda maior potência econômica mundial.

Por fim, vamos observar as ameaças do passado e do presente ao processo de emancipação da China com relação ao poder colonial e neocolonial, destacando as similaridades entre o colonialismo britânico dos séculos XVIII e XIX e as atuais estratégias imperialistas dos EUA, focando nos pontos fracos e nos pontos fortes das respostas chinesas do passado e do presente.

China: a ascensão e a consolidação do poder global (1100-1800)

Num formato comparativo sistemático, John Hobson fornece uma fartura de indicadores empíricos demonstrando a superioridade da China na economia global com relação ao Ocidente e em particular à Inglaterra. Eis alguns fatos marcantes:

Já em 1078, a China era o maior produtor mundial de aço (125.000 toneladas); enquanto a Grã-Bretanha em 1788 produzia 76.000 toneladas.

A China era a líder mundial em inovação técnica na manufatura têxtil, sete séculos antes da “revolução têxtil” da Inglaterra, no século XVIII.

Suas inovações na produção de papel, impressão de livros, armas de fogo e ferramentas produziram uma superpotência manufatureira, cujas mercadorias eram transportadas pelo mundo afora pelo mais avançado sistema de navegação.

A China possuía os maiores navios comerciais do mundo. Em 1588, as maiores embarcações inglesas suportavam 400 toneladas; as chinesas, 3 mil toneladas. Mesmo já tardiamente, no final do século XVIII, os mercadores chineses empregaram 130.000 navios de transporte, muitas vezes o contingente total da Grã-Bretanha. A China manteve sua posição proeminente na economia mundial até o início do século XIX.

Industriais ingleses e europeus seguiram a liderança chinesa, assimilando e tomando de empréstimo sua mais avançada tecnologia, ansiosos para penetrar no avançado e lucrativo mercado chinês.

Com bancos, com uma economia de papel-moeda estável, com produção e altos resultados na agricultura, a renda per capita da China equiparou-se com a da Grã-Bretanha já em 1750.

A posição de domínio global da China foi desafiada pela ascensão do imperialismo britânico, que adotou as inovações tecnológicas, de navegação e de mercado da China e outros países asiáticos, a fim de saltar etapas anteriores e se tornar uma potência mundial.2

O imperialismo ocidental e o declínio da China

A conquista britânica e ocidental do Oriente foi baseada na natureza militar do Estado imperialista, nas suas relações econômicas não recíprocas com os parceiros comerciais estrangeiros e na ideologia ocidental imperialista, que motivou e justificou as conquistas em terras estrangeiras.

Diferentemente da China, a revolução industrial inglesa e sua expansão além-mar foi dirigida por uma política militarista. De acordo com Hobson, durante o período de 1688-1815, a Grã-Bretanha esteveenvolvida em guerras durante 52% do tempo.3 Enquanto os chineses se basearam nos mercados abertos, na produção superior, na sofisticada atividade bancária e comercial, a Inglaterra se utilizou da proteção alfandegária, da conquista militar, da destruição sistemática de empresas estrangeiras competitivas e da apropriação e saque de recursos locais. A predominância global da China foi baseada em “benefícios recíprocos” com seus parceiros comerciais, enquanto a Inglaterra recorria ao uso de exércitos mercenários de ocupação, repressão brutal e à política do “dividir para conquistar”, de estímulo às rivalidades locais. Diante da resistência nativa, a Inglaterra (assim como outras potências imperialistas ocidentais) não hesitou em exterminar comunidades inteiras.4

Impossibilitada de superar o mercado chinês através de uma melhor competitividade econômica, a Inglaterra recorreu ao brutal poderio militar. Ela mobilizou, armou e comandou mercenários, retirados de suas colônias na Índia e em quaisquer lugares para forçar sua transferência para a China e impor tratados desiguais com tarifas mais baixas. Como resultado, a China foi inundada pelo ópio inglês produzido em suas plantações na Índia – apesar das leis chinesas que proibiam ou regulavam a importação e a venda de narcóticos. Os governantes chineses, há muito acostumados à sua superioridade comercial e industrial, estavam despreparados para as “novas regras imperialistas” impostas pelo poder global. A disposição ocidental para usar o poder militar a fim de ganhar colônias, pilhar recursos e recrutar amplos exércitos mercenários comandados por oficiais europeus, decretou o fim da China como potência mundial.

A China tem baseado sua predominância econômica na “não interferência nos assuntos internos de seus parceiros comerciais”. Em contraste, os imperialistas britânicos intervieram violentamente na Ásia, reorganizando economias locais para seguir as necessidades do império (eliminando competidores econômicos, inclusive fabricantes de algodão indianos mais eficientes) e passou a ter controle na política local, no aparato econômico e administrativo a fim de estabelecer o Estado colonial.

O império britânico foi construído com recursos trazidos das colônias e através de militarização massiva de sua economia.5 Desse modo, foi fácil garantir a supremacia militar sobre a China. A política externa da China foi prejudicada pela excessiva confiança de suas elites nas relações comerciais. Autoridades chinesas e elites comerciais locais visaram acalmar a Inglaterra e convenceram o seu imperador a conceder enormes regiões extraterritoriais, abrindo mercados em detrimento das manufaturas chinesas, entregando a soberania local. Como sempre, a Inglaterra incentivou rivalidades internas e revoltas que vieram a desestabilizar o país.

A penetração ocidental e inglesa e a colonização do mercado da China criaram uma classe inteiramente nova: os ricos ‘compradores’ entreguistas chineses importavam bens ingleses e facilitavam a tomada dos mercados locais e seus recursos. A pilhagem imperialista forçou uma maior exploração e taxação de grande contingente de camponeses chineses e trabalhadores. Os governantes da China eram obrigados a pagar as dívidas de guerra e financiar o deficit comercial imposto pelo poder imperial ocidental através da exploração do seu campesinato. Essa situação levou os camponeses à fome e à revolta.

No início do século XX (menos de um século depois da Guerra do Ópio), a China descendeu da condição de potência econômica mundial para a de um país semicolonial falido, com uma enorme população pobre. Os principais portos foram controlados por administrações imperialistas ocidentais e o campo passou ao jugo de violentos e corruptos caudilhos. O ópio inglês escravizou milhões.

Acadêmicos britânicos: apologistas eloquentes pela conquista imperialista

Toda profissão acadêmica ocidental – sobretudo os historiadores do imperialismo britânico – atribuíram o domínio imperialista inglês da Ásia à “superioridade tecnológica”, à miséria da China e o status colonial ao “atraso oriental”, omitindo qualquer menção ao milênio do progresso técnico e comercial chinês, com sua superioridade até o alvorecer do século XIX. Pelo fim dos anos de 1920, com a invasão imperialista japonesa, a China deixou de existir como país unificado. Sob a égide da lei imperialista, centenas de milhões de chineses passaram fome, foram desapropriados ou assassinados, assim como os poderes do ocidente e do Japão saquearam sua economia. A elite chinesa “colaboradora” entreguista foi desmoralizada diante do povo chinês.

O que permaneceu na memória coletiva de grandes contingentes do povo chinês – e o que estava totalmente ausente das considerações de prestigiosos acadêmicos ingleses e estadunidenses – foi o fato de a China ter sido uma vez uma potência global próspera e dinâmica. Comentaristas ocidentais descartaram essa memória coletiva da ascensão da China como se fossem pretensões tolas de uma realeza e uma nobreza nostálgicas – como arrogância Han sem sentido.

A China levanta das cinzas da humilhação e do saqueio imperialista: a Revolução Comunista Chinesa

A ascensão da China moderna para se tornar a segunda maior economia do mundo foi possível apenas através do sucesso da revolução comunista chinesa na metade do século XX. O Exército “Vermelho” de Libertação Popular derrotou primeiramente o exército invasor imperialista japonês e posteriormente o exército “nacionalista” liderado pelo Kuomintang e sustentado pelo imperialismo dos EUA. Isso permitiu a reunificação da China como Estado soberano independente. O governo comunista aboliu os privilégios extraterritoriais dos imperialistas ocidentais, acabaram com os feudos dos caudilhos e gângsteres regionais e expulsaram os milionários proprietários de bordéis, traficantes de mulheres e de drogas, bem como outros “provedores de serviços” para o império euro-estadunidense.

No pleno sentido do termo, a revolução comunista forjou o moderno Estado chinês. Os novos líderes começaram então a reconstruir uma economia arrasada pelas guerras imperialistas e pela pilhagem ocidental e dos capitalistas japoneses. Depois de 150 anos de infâmia e humilhação, o povo chinês recuperou seu orgulho e dignidade nacional. Esses elementos sociopsicológicos foram essenciais na motivação dos chineses na defesa de seu país contra os ataques, sabotagens, boicotes e bloqueios dos EUA, montados imediatamente após a libertação.

Ao contrário do que afirmam economistas chineses e ocidentais neoliberais, o crescimento dinâmico da China não começou em 1980. Teria começado em 1950, quando a reforma agrária proveu terra, infraestrutura, crédito e auxílio técnico a centenas de milhões de camponeses e trabalhadores rurais sem-terra e despossuídos. Através do que hoje é chamado “capital humano” e gigantesca mobilização social, os comunistas construíram estradas, aeroportos, pontes, canais e linhas férreas, assim como as indústrias de base, como de carvão, ferro e aço, para formar a coluna vertebral da moderna economia chinesa. Os vastos sistemas comunistas chineses de saúde e educação gratuitos criaram uma força de trabalho motivada, saudável e instruída. Seus militares altamente profissionais impediram que os EUA expandissem seu império militar através da península coreana até as fronteiras do território chinês. Assim como os velhos scholars e propagandistas ocidentais fabricaram uma história de um império “estagnado e decadente” para justificar sua conquista destrutiva, também seus equivalentes modernos têm reescrito a história dos primeiros 30 anos da história comunista chinesa, negando o papel da revolução no desenvolvimento de todos os elementos essenciais para uma economia, Estado e sociedade modernos. Está claro que o rápido crescimento econômico da China, baseado no desenvolvimento de seu mercado interno, no rápido crescimento de seu quadro científico, em técnicos e trabalhadores qualificados, na rede de segurança social que protegeu e promoveu a mobilidade da classe trabalhadora e camponesa, foram produzidos pelos investimentos e planejamentos comunistas.

O avanço da China rumo ao poder global começou em 1949, com a expulsão de todas as camadas parasitárias entreguistas, especuladoras e financeiras que serviram de intermediárias para imperialistas europeus, japoneses e estadunidenses, que drenaram grandes riquezas da China.

A transição da China para o capitalismo

A partir de 1980, o governo chinês iniciou uma guinada drástica em sua estratégia econômica: através das três décadas seguintes, ele abriu o país para investimentos estrangeiros em larga escala; privatizou milhares de indústrias e isso colocou em movimento um processo de concentração de renda baseado numa estratégia deliberada de criar novamente uma classe dominante de bilionários ligados aos capitalistas estrangeiros. A classe política dominante na China abraçou a ideia de tomar emprestado o know how técnico e o acesso aos mercados estrangeiros de firmas internacionais em troca de disponibilizar trabalho barato e abundante, com o custo mais baixo possível.

O Estado chinês redirecionou grande quantidade de subsídios públicos para promover alto crescimento capitalista através do desmantelamento de seu sistema nacional de educação pública gratuita e assistência à saúde. Eles terminaram com as habitações públicas subsidiadas para centenas de milhões de camponeses e trabalhadores fabris urbanos e concederam fundos para especuladores imobiliários para a construção de apartamentos privados de luxo e arranha-céus comerciais. A nova estratégia capitalista da China, bem como seu crescimento de dois dígitos, foram baseados em profundas mudanças estruturais e amplos investimentos públicos tornados possíveis pelo governo comunista anterior. A decolagem do setor privado da China foi baseada em grandes gastos públicos efetuados desde 1949.

A nova classe capitalista triunfante e seus colaboradores do ocidente reivindicaram todo o crédito pelo seu “milagre econômico”, uma vez tendo a China ascendido à condição de segunda maior economia do mundo. Essa nova elite chinesa tem sido menos apressada para anunciar a condição da China em termos da brutal desigualdade de classes, rivalizando apenas com os EUA.

China: da dependência imperialista a competidor mundial

O crescimento sustentado da China no seu setor manufatureiro foi resultado de investimentos públicos altamente concentrados, altos lucros, inovações tecnológicas e um mercado doméstico protegido. Enquanto ocapital estrangeiro lucrava, isso ocorria sempre dentro da plataforma das prioridades do Estado chinês e suas regulamentações. A dinâmica do regime de “estratégia exportadora” levou a enormes superavitcomerciais, que eventualmente fizeram da China um dos maiores credores mundiais, especialmente da dívida dos EUA. Tendo por objetivo manter suas indústrias dinâmicas, a China demandou amplos influxos de matérias-primas, resultando em investimentos internacionais de larga escala e acordos comerciais com países de exportação agromineral na África e América Latina. Em 2010, a China deslocou os EUA e a Europa da condição de principal parceiro comercial de muitos países na Ásia, África e América Latina.

A ascensão da China moderna como potência econômica mundial, como sua predecessora entre 1100 e 1800, está baseada em sua gigantesca capacidade produtiva: comércio e investimento foram governados por uma estrita política de não interferência nas relações internas de seus parceiros comerciais. Diferentemente dos EUA, a China não iniciou guerras brutais por petróleo; em vez disso, assinou contratos lucrativos. E a China não faz guerras pelos interesses de chineses no estrangeiro, como os EUA têm feito no Oriente Médio por Israel.

O aparente desequilíbrio entre o poder econômico e militar chineses está em gritante contraste com os EUA, onde um império militar inchado e parasitário continua a erodir a sua própria presença econômica global.

O gasto militar dos EUA é vinte vezes o da China. Cada vez mais os militares dos EUA desempenham um papel-chave na definição das políticas de Washington na tentativa de impedir a ascensão da China como potência global.

A ascensão da China como potência global: a história vai se repetir?

A China tem crescido cerca de 9% por ano e seus bens e serviços estão aumentando rapidamente a qualidade e o valor. Em contrapartida, os EUA e a Europa têm afundado em cerca de 0% de crescimento de 2007 a 2012. O contexto técnico-científico inovador da China assimila constantemente as últimas invenções do ocidente (e Japão) e as aperfeiçoa, reduzindo assim o custo de produção. A China substituiu as “instituições financeiras internacionais” controladas pelos EUA e Europa (FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento) como principal credor na América Latina. A China continua a liderar como primeiro investidor nos recursos de energia e mineração na África. A China substituiu os EUA como principal mercado para o petróleo da Arábia Saudita, Sudão e Irã, com perspectiva de logo tomar a posição dos EUA como principal mercado para derivados de petróleo da Venezuela. Hoje, a China é o maior produtor de bens industrializados e o maior exportador do mundo, dominando até mesmo o mercado estadunidense, enquanto desempenha seu papel no mercado financeiro, detendo mais de 1,3 trilhão de dólares em títulos do Tesouro dos EUA.

Sob crescente pressão de seus trabalhadores e agricultores, os governantes chineses têm desenvolvido o mercado doméstico com aumentos de salários e gastos sociais para equilibrar a economia e evitar o espectro da instabilidade social. Em contraste, a renda nos EUA, os salários e os serviços públicos vitais têm caído vertiginosamente em termos absolutos e relativos.

Dadas as atuais tendências históricas, está claro que a China vai assumir o lugar dos EUA como potência econômica mundial na próxima década, isso se os EUA não revidarem e se as profundas desigualdades de classe na China não produzirem maiores convulsões sociais.

A ascensão da China moderna como poder global enfrenta sérios desafios. Em contraste com a ascensão histórica da China em nível mundial, o poder econômico mundial da China moderna não está sendo acompanhado por nenhuma concorrência imperialista. Contudo, a China ficou seriamente defasada com relação aos EUA e à Europa na capacidade de promover guerras. Essa opção pode ter permitido que a China direcionasse recursos públicos para maximizar o crescimento econômico, mas isso deixou o país vulnerável diante da superioridade militar dos EUA com seu enorme arsenal, sua rede de postos avançados e bases militares em posições estratégicas, próximas da costa chinesa e territórios adjacentes.

No século XIX, o imperialismo britânico demoliu a posição global da China com sua superioridade militar, tomando seus portos – por reconhecer a dependência da Inglaterra à China com relação à sua “superioridade mercantil”.

A conquista da Índia, Birmânia e a maior parte da Ásia permitiu à Inglaterra estabelecer bases coloniais e recrutar exércitos mercenários locais. A Inglaterra e seus aliados mercenários cercaram e isolaram a China, criando as condições para uma grave perturbação dos mercados chineses e a imposição de condições comerciais brutais. A presença armada do império britânico determinava o que a China importava (com o ópio contabilizando mais de 50% das exportações da Inglaterra nos anos de 1850), enquanto minava as vantagens competitivas da China com políticas tarifárias.

Hoje em dia, os EUA estão tentando políticas semelhantes: a frota naval dos EUA patrulha e controla as linhas de navegação chinesas e os recursos de petróleo do exterior através de suas bases marítimas. A Casa Branca de Obama-Clinton está em processo de desenvolver uma rápida resposta militar envolvendo suas bases na Austrália, Filipinas e outros lugares da Ásia. Os EUA estão intensificando seus esforços para abalar o acesso chinês a recursos estrangeiros estratégicos enquanto sustentam separatistas e “insurgentes” no oeste da China, Tibete, Sudão, Birmânia, Irã, Líbia, Síria e outros lugares. Os acordos militares dos EUA com a Índia e a instalação de um regime fantoche no Paquistão são avanços na estratégia de isolar a China. Enquanto a China sustenta sua política de “desenvolvimento harmonioso” e “não interferência nos negócios estrangeiros de outros países”, o imperialismo dos EUA e da Europa atacaram uma série de parceiros comerciais da China para basicamente reverter a pacífica expansão comercial chinesa.

A carência de estratégia política e ideológica da China para proteger seus interesses econômicos no exterior tem sido um convite aos EUA e à OTAN para erigir regimes hostis à China. O exemplo mais marcante é a Líbia, quando os EUA e a OTAN intervieram para depor um governo independente liderado pelo presidente Kadafi, com quem a China havia assinado acordos de investimentos e comerciais de muitos bilhões de dólares. O bombardeio da OTAN nas cidades da Líbia, nos portos e instalações petrolíferas, forçou a China a retirar 35 mil engenheiros de petróleo e trabalhadores de construção em questão de dias. A mesma coisa aconteceu no Sudão, onde a China investiu bilhões para desenvolver sua indústria de petróleo. Os EUA, Israel e a Europa armaram os rebeldes sudaneses do Sul para romper o fluxo de petróleo e atacar os trabalhadores chineses.6 Nos dois casos, a China permitiu passivamente que os militares imperialistas dos EUA e da Europa atacassem seus parceiros comerciais e sabotassem seus investimentos.

Sob Mao Tse-tung, a China teve uma política ativa contra a agressão imperialista: ela sustentou movimentos revolucionários e governos independentes no terceiro mundo. A China capitalista de hoje não tem tido uma política ativa de apoio a governos ou movimentos capazes de proteger o comércio bilateral chinês e seus acordos de investimento. A inabilidade chinesa para confrontar a agressão militar contra seus interesses econômicos é devida a profundos problemas estruturais. A política exterior da China é orientada por grandes interesses comerciais, financeiros e industriais que contam apenas com suas “margens econômicas de competitividade” para ganhar fatias crescentes de mercados, não tendo a devida compreensão a respeito dos fundamentos militares do sistema econômico mundial. A classe política da China é profundamente influenciada por uma nova classe de bilionários que possuem laços fortes com os fundos de capitais ocidentais e que tem absorvido acriticamente os valores culturais do ocidente. Isso é ilustrado pela sua preferência a enviar seus próprios filhos para universidades de elite nos EUA e Europa. Eles procuram “adequação ao ocidente” a qualquer preço.

Essa falta de qualquer entendimento estratégico a respeito da construção militar de um império os tem conduzido a responder de maneira ineficaz e ad hoc a cada ação imperialista que vise minar seu acesso a recursos ou mercados. A perspectiva de “negócios em primeiro lugar” da China parece ter funcionado enquanto o país era um jogador menor no tabuleiro econômico mundial e os imperialistas dos EUA viam na “abertura capitalista” uma chance de facilmente capturar as empresas públicas da China e saquear sua economia. Contudo, quando a China (ao contrário da antiga URSS) decidiu reter controles de capitais e desenvolver uma “política industrial” cuidadosamente controlada e dirigida pelo Estado, direcionando o capital ocidental e a transferência de tecnologia para empresas estatais, que efetivamente penetraram nos mercados domésticos e estrangeiros dos EUA, Washington começou a reclamar e falou em retaliação.

Os enormes superavit comerciais da China com os EUA provocaram uma resposta dupla em Washington: eles venderam massivas quantidades de títulos do Tesouro dos EUA para os chineses e começaram a desenvolver uma estratégia global para bloquear o avanço da China. Desde que os EUA viram declinar sua influência econômica, para reverter o processo, eles se ativeram à sua única “vantagem comparativa” – sua superioridade militar baseada num sistema mundial de bases de ataque, uma rede internacional de regimes-clientes, representações militares, ONGs, intelectuais e mercenários armados. Washington voltou-se para seus aparatos militares ostensivos e clandestinos para sabotar os parceiros comerciais da China. Washington depende de antigos laços com governantes corruptos, dissidentes, jornalistas e magnatas da mídia para promover sua poderosa proteção de propaganda, enquanto avançam sua ofensiva militar contra os interesses da China ao redor do mundo.

A China não tem nada comparável ao “aparato de segurança” internacional dos EUA, pois pratica a política da “não interferência”. Dado o estado avançado da ofensiva imperialista ocidental, a China tem tomado apenas algumas iniciativas diplomáticas, tal como financiar meios de comunicação em língua inglesa para apresentar sua perspectiva, usando seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU para se opor aos esforços dos EUA para derrubar o regime independente de Assad, na Síria, e se opor às imposições de sanções drásticas contra o Irã. Ela repudiou seriamente o questionamento ácido da secretária de Estado estadunidense Hilary Clinton a respeito da “legitimidade” do Estado chinês quando este votou contra a resolução dos EUA-ONU de preparar um ataque na Síria.7

Estrategistas militares chineses estão mais atentos e alarmados a respeito da crescente ameaça militar contra a China. Eles têm exitosamente solicitado um aumento anual de 19% nos gastos militares nos próximos cinco anos (2011-2015).8 Mesmo com esse aumento, as despesas militares da China vão continuar abaixo de um quinto do orçamento militar dos EUA e a China não tem sequer uma base militar estrangeira, em gritante contraste com as mais de 750 instalações estrangeiras dos EUA. As operações da inteligência chinesas no exterior são mínimas e ineficazes. Suas embaixadas são dirigidas por e para os interesses estritamente comerciais, que claramente falharam na compreensão da política violenta da OTAN para mudar o regime na Líbia e na necessidade de informar Pequim a respeito de sua significação para o Estado chinês.

Há ainda outras duas fraquezas estruturais que prejudicam a ascensão da China como potência mundial. Trata-se da altamente “ocidentalizada” intelligentsia que tem engolido de maneira acrítica a doutrina econômica dos EUA a respeito dos livre-mercados, enquanto ignoram a militarização da sua economia. Esses intelectuais chineses repetem como papagaios a propaganda da doutrina econômica dos EUA a respeito das “virtudes democráticas” das campanhas presidenciais de bilhões de dólares, enquanto sustentam a desregulamentação financeira que teria levado Wall Street a adquirir bancos e reservas chinesas. Muitos consultores financeiros e acadêmicos chineses foram educados nos EUA e foram influenciados pelos seus vínculos com acadêmicos estadunidenses e instituições financeiras internacionais diretamente ligadas a Wall Street e Londres. Eles prosperaram como executivos de alta renda, recebendo prestigiosas posições em instituições chinesas. Eles identificam a “liberalização dos mercados financeiros” com “economias avançadas” capazes de aprofundar laços com os mercados globais, em vez de atuarem como fontes da atual crise financeira. Esses “intelectuais ocidentalizados” são como seus homólogos entreguistas do século XIX, que subestimaram e rejeitaram as consequências de longo prazo da penetração imperialista ocidental. Eles não conseguem entender como a desregulamentação financeira nos EUA precipitou a atual crise e como a desregulamentação levaria a uma captura do sistema financeiro da China pelo ocidente – o que teria como consequência a realocação das reservas domésticas da China para atividades nãoprodutivas (especulação financeira), precipitando a crise financeira e finalmente comprometendo a posição de liderança global da China.

Esses yuppies imitam o que há de pior nos estilos de vida consumistas do ocidente e suas posições políticas são guiadas por esses estilos de vida e por identidades ocidentalizadas que impedem qualquer sentido de solidariedade com a sua própria classe trabalhadora.

Existe uma base econômica para os sentimentos pró-ocidente nos neoentreguistas da China. Eles transferiram bilhões de dólares para contas bancárias estrangeiras, compraram mansões e apartamentos de luxo em Londres, Toronto, Los Angeles, Manhattan, Paris, Hong Kong e Singapura. Eles têm um pé na China (a sua fonte de riqueza) e outro no ocidente (onde consomem e guardam sua riqueza).

Os entreguistas ocidentalizados estão plenamente integrados ao sistema econômico chinês, tendo laços familiares com as lideranças políticas na estrutura partidária e no Estado. Suas conexões são mais fracas entre militares e nos crescentes movimentos sociais, apesar de alguns estudantes “dissidentes” e ativistas acadêmicos nos “movimentos democráticos” serem patrocinados por ONGs imperialistas do ocidente. Na medidaem que os entreguistas ganham influência, enfraquecem as fortes instituições econômicas do Estado que dirigiu a elevação da China à condição de potência, assim como fizeram no século XIX como agentes intermediários do império britânico. Anunciando o “liberalismo” do século XIX, o ópio britânico viciou mais de 50 milhões de chineses em menos de uma década. Anunciando “democracia e direitos humanos”, os barcos militares dos EUA agora patrulham a costa da China. A ascensão da China à potência mundial dirigida pela elite gerou desigualdades monumentais entre milhares de novos bilionários e multimilionários no topo e centenas de milhões de trabalhadores empobrecidos, camponeses e trabalhadores imigrantes na base.

A rápida acumulação de riqueza e capital da China foi possível através da intensa exploração de seus trabalhadores, que foram retirados de suas redes de proteção social e das suas condições de trabalho regulamentado anteriormente vigentes sob o comunismo. Milhões de famílias chinesas estão sendo desapropriadas em razão de se promoverem e desenvolverem especuladores imobiliários que então constroem altos prédios de escritórios e apartamentos de luxo para as elites domésticas e estrangeiras. Esses aspectos brutais do crescente capitalismo chinês criaram uma fusão entre o local de trabalho e um espaço ativo de lutas de massas que está crescendo a cada ano. O slogan empreendedor-especulador “enriquecer é maravilhoso” perdeu seu poder de iludir o povo. Em 2011, existiam mais de 200 mil vilas rurais e fábricas populares no entorno urbano.

O próximo passo, que certamente virá, será a unificação dessas lutas em novos movimentos sociais nacionais com uma agenda classista que exigirá a restauração dos serviços de saúde e educação de que se gozava durante o período dos comunistas, assim como uma melhor distribuição da riqueza da China. Demandas atuais por melhor renda podem se converter em demandas por uma maior democracia nos locais de trabalho. Para responder a essas novas demandas populares, os novos liberais entreguistas e ocidentalizados da China não podem indicar como “modelo” os EUA, uma vez que os trabalhadores estadunidenses estão tendo seus benefícios retirados, enquanto que os chineses lutam para reconquistá-los.

A China, cindida por crescentes conflitos políticos e de classe, não pode sustentar sua continuidade rumo à liderança econômica mundial. A elite chinesa não pode confrontar a ameaça militar imperialista crescente dos EUA com seus aliados entreguistas entre as elites liberais internas, enquanto o país é uma sociedade profundamente dividida com uma classe trabalhadora de hostilidade crescente. A época da exploração indiscriminada do trabalho chinês tem que acabar para encarar o cerco militar estadunidense à China, bem como os ataques econômicos nos seus mercados estrangeiros. A China tem enormes recursos. Com mais de 1,5 trilhão de dólares em reservas, a China pode financiar programas abrangentes de saúde e educação públicas através do país.

A China pode bancar a obtenção de um intensivo “programa público de habitação” para os 250 milhões de trabalhadores migrantes atualmente vivendo em condições de miséria. A China pode impor um sistema de tributação de renda progressiva sobre seus novos bilionários e milionários, financiando pequenas propriedades rurais, cooperativas familiares e indústrias rurais para reequilibrar a economia. Seu programa para desenvolver fontes alternativas de energia – como painéis solares e fazendas de energia eólica – são um começo promissor para mitigar sua grave poluição do meio-ambiente. A degradação ambiental e os problemas de saúde relacionados já mobilizam a preocupação de dezenas de milhões.

Atualmente, a melhor defesa da China contra as interferências imperialistas seria um regime estável baseado na justiça social para centenas de milhões e uma política externa de apoio a movimentos anti-imperialistas no estrangeiro – para quem a independência é um interesse vital da China. É necessária uma política pró-ativa baseada em parcerias de benefício mútuo, incluindo solidariedade militar e diplomática. Um ainda pequeno, mas influente, grupo de intelectuais chineses tem levantado a questão do crescimento da ameaça militar estadunidense e estão “dizendo não à diplomacia dos navios de guerra”.9

A China moderna tem plenos recursos e oportunidades, então inexistentes na China do século XIX quando estava subjugada pelo império britânico. Se os EUA continuarem a incrementar sua política militarista agressiva contra a China, Pequim pode dar início a uma séria crise fiscal por meio do despejo de algumas das centenas de bilhões de dólares do Tesouro estadunidense que detém.

A China, uma potência nuclear, deveria se aproximar de sua similarmente armada e ameaçada vizinha Rússia, para confrontar e atrapalhar os devaneios bélicos da secretária de Estado dos EUA, Hilary Clinton. O futuro presidente da Rússia, Putin, promete que vai aumentar os gastos militares de 3% para 6% do PIB durante a próxima década, para se contrapor à ofensiva de Washington e suas bases de mísseis nas fronteiras da Rússia, bem como para contrariar os programas de “mudança de regime” de Obama contra seus aliados, como a Síria.10

A China tem poderosas redes econômicas, de comércio e investimentos ao redor do globo, bem como poderosos parceiros econômicos. Essas ligações têm se tornado essenciais para o crescimento continuado de muitos países ao redor do mundo em desenvolvimento. Ao confrontar a China, os EUA terão que enfrentar a oposição de muitas elites econômicas poderosas ao redor do mundo. Poucos países ou elites vêem algum futuro no atrelamento de suas fortunas a um império economicamente instável baseado no militarismo e em ocupações colonialistas destrutivas.

Em outros termos, a China moderna, uma potência mundial, é incomparavelmente mais forte do que já foi no início do século XVIII. Os EUA não têm a influência econômica que o ascendente império britânico possuía nas guerras pelo ópio. Além disso, muitos intelectuais chineses e a larga maioria dos cidadãos não têm a intenção de deixar esse grupo de “entreguistas ocidentalizados” vender o país. Nada agravaria mais a polarização política na sociedade chinesa e aceleraria a vinda de uma segunda revolução social na China do que uma liderança tímida submetida a uma nova era de pilhagem pelo imperialismo ocidental.

Notas

1. John Hobson, The Eastern Origins of Western Civilization (Cambridge UK : Cambridge University Press, 2004).

2. Ibidem, Ch. 9, pp. 190-218.

3. Ibidem, Ch. 11, pp. 244-248.

4. Richard Gott, Britain’s Empire: Resistance, Repression and Revolt (London: Verso 2011) Para uma crônica histórica detalhada da selvageria que acompanhou o império colonial britânico.

5. Hobson, pp. 253-256.

6. Katrina Manson, “South Sudan puts Beijing ’s policies to the test”, Financial Times, 21/2/2012, p. 5.

7. Entrevista de Clinton NPR, 26/2/2012.

8. La Jornada, 15/2/2012 (Mexico City).

9. China Daily (20/2/2012).

10. Charles Clover, “Putin vows huge boost in defense spending”, Financial Times, 12/2/2012.

Tradução: PCB (Partido Comunista Brasileiro)