A esquerda chilena tem que organizar uma guerra de classes que nem a direita
Entrevista com Camila Vallejo, tradução por Gercyane Oliveira, via Jacobin Brasil
A vitória da esquerda na eleição e na constituinte prometem enterrar o neoliberalismo no Chile. A deputada Camila Vallejo, que lidera a ala comunista da coalizão que apoia Gabriel Boric, falou à Jacobin sobre a atual luta de classes no país e sua esperança no poder da juventude.
Quando Camilla Vallejo anunciou em 2012 que pretendia concorrer ao Congresso chileno, muitos da esquerda a acusaram de ser uma “vendida”. No ano anterior, ela havia se tornado uma das faces mais visíveis dos protestos estudantis exigindo educação gratuita e de qualidade, como porta-voz da Confederação de Estudantes Chilenos (CONFECH). De fato, havia tanta atenção da mídia internacional ao seu redor que, em outubro de 2011, os leitores do The Guardian a escolheram como a pessoa do ano.
Mas, para muitos no Chile, sua candidatura ao Congresso foi uma traição ao sentimento anti-establishment dos protestos. Vinte anos após o retorno à democracia, a miséria neoliberal imposta pela ditadura de Augusto Pinochet persistiu – e muitos viram a política parlamentar como o lugar onde as promessas foram morrer, inclusive as de esquerda.
Hoje, Camila Vallejo está se aproximando do final de seu segundo mandato como congressista, e em agosto ela anunciou que não buscará um terceiro mandato. As reações a esta notícia foram bem diferentes da resposta à sua primeira candidatura nove anos atrás, pois uma onda de apoio nas redes sociais lamentou a saída da deputada comunista do Congresso. Mas também é verdade que o trabalho parlamentar de Vallejo tem sido uma luta difícil – não apenas por causa da firme defesa da direita do sistema neoliberal, mas também por causa de uma centro-esquerda teimosa, encalhada na fracassada política de “terceira via”.
Vallejo e seus camaradas parlamentares do Partido Comunista certamente usaram sua plataforma para pressionar por grandes mudanças no Chile. Eles lutaram para reduzir a semana máxima de trabalho de 45 para 40 horas e reivindicaram medidas de alívio pandêmico como um imposto sobre os super ricos e uma renda básica universal. Quando uma convenção foi convocada para reescrever a Constituição do país herdada do período Pinochet, após os protestos populares massivos de outono de 2019, Vallejo estava entre aqueles que resistiram à criação de um quórum de dois terços para suas decisões – uma barreira formidável à mudança, imposta pelos partidos mais antigos.
Embora todos estes movimentos tivessem o apoio popular majoritário nas ruas, eles encontraram grande oposição no Congresso. A maioria deles não prosperou, ou pelo menos ainda não. Mas outros encontraram um caminho. Recentemente, a Convenção Constitucional concordou que as decisões que não alcançassem os dois terços do quorum, mas desfrutarem de pelo menos 60% de apoio, seriam resolvidas através de referendos. Além disso, o projeto de lei de descriminalização do aborto promovido por Vallejo e outras congressistas foi recentemente aprovado no Congresso e está agora pronto para ser debatido no Senado.
Atualmente, Vallejo lidera a ala comunista da coalizão de esquerda na corrida presidencial do congressista Gabriel Boric. A campanha tem um elemento de reunião universitária: seu colega na ala moderada da campanha, Giorgio Jackson, foi presidente da Federação Estudantil da Universidade Católica do Chile (FEUC) no mesmo ano que ela, e Boric foi seu sucessor como presidente da Federação Estudantil da Universidade do Chile (FECH). Mas também é marcado pelas diferenças dentro da esquerda sobre a natureza da mudança que agora é possível, com o processo constitucional e as eleições presidenciais colocando o Chile em um ponto de virada.
Vallejo falou com Octavio García Soto da Jacobin sobre sua decisão de não buscar a reeleição, sua combinação de marxismo e feminismo, e suas esperanças na juventude chilena.
OG
Deputada, você já disse antes que é necessário ter um pé no governo e um pé nas ruas. O que significa estar nas ruas?
CV
Isso significa que nossa organização – seja o Partido Comunista ou uma aliança mais ampla com outras forças políticas e sociais – precisa ter presença nas organizações sociais, em todas as diferentes partes da sociedade que hoje vivem com as consequências de um modelo opressor, discriminatório e injusto.
Quando falamos em manter um pé no Congresso, ou no governo, e um pé nas ruas, o que estamos dizendo é que nosso coletivo precisa de camaradas que estejam presentes na realidade das pessoas e que nosso trabalho, assim como o meu trabalho no Congresso, não pode ser enclausurado dentro de quatro paredes 24 horas por dia, 7 dias por semana. Nosso coletivo precisa de um foco real na comunicação com as organizações sociais, no trabalho conjunto, na escuta constante das preocupações e opiniões de nosso povo e na capacidade de canalizar essas preocupações através da legislação.
É óbvio, quando se perde esse pé nas ruas, quando se deixa de ouvir e trabalhar com as organizações, você se torna um mero reprodutor da política neoliberal e de um Estado que representa os interesses de uma classe minoritária e não os interesses da grande maioria.
OG
Por que você não está concorrendo à reeleição?
CV
Não se trata de uma questão puramente pessoal. Somos uma força política com grandes militantes sociais em diferentes trincheiras. Acredito na importância de abrir espaços no Congresso para mais camaradas. Também é importante para mim continuar aprendendo e me desenvolvendo em outros espaços de educação política, por isso só não me vi no Congresso Nacional por mais quatro anos. Há sem dúvida muitas possibilidades de mudança, quando há uma boa correlação de forças, mas este não é o único espaço para lutar por isso.
Somos uma força viva, e o partido não é apenas seus quadros mais conhecidos. Há muitos outros camaradas que também deveriam estar lá e aprender o que significa a luta naquele espaço, porque se veem ali grandes contradições de classe. Em meu lugar estará outra camarada da Juventude Comunista, Daniela Serrano, que tem uma história particular de luta, que também é do movimento estudantil.
OG
Ao contrário de outros dirigentes estudantis, como Gabriel Boric e Giorgio Jackson, que rejeitaram os partidos tradicionais desde o início, você sempre foi membro do Partido Comunista. Qual é a sua história com o partido?
CV
Eu me tornei membro em 2007, antes do movimento estudantil de 2011. Para mim, a Juventude Comunista era uma escola. Lá, eu forjei minhas principais convicções. Foi com as convicções que me foram dadas por minha militância política que entrei no movimento estudantil e tentei representá-lo, em grande parte como porta-voz. Eu não ia abandonar essas convicções apenas para entrar no Congresso.
OG
Sua família tinha alguma história com o partido?
CV
Minha família mais próxima era comunista, mas eles me formaram mais em valores de solidariedade do que em militância política como tal. Decidi aderir por causa da experiência que tive na Universidade do Chile. Procurei ativamente um espaço, porque tinha certeza de que não queria entrar na faculdade apenas para estudar, queria contribuir para a mudança, em termos de democracia, justiça e maior igualdade. A Juventude Comunista foi a organização que achei mais séria e responsável, o produto de sua história e de suas propostas.
OG
Ser de esquerda implica em aceitar verdades duras: Desigualdade econômica, mudança climática, patriarcado… Como alguém que vai ser pai dentro de alguns meses, pergunto a vocês: Como você consegue responder às duras perguntas de sua filha de sete anos?
CV
É incrível como as crianças de hoje estão despertas. A inteligência delas é comovente e surpreendente. Minha filha sabe o que eu faço. Não sei se ela idealiza, poderei falar com ela sobre isso mais tarde, sobre como ela me via quando era criança. Mas no momento, ela entende que há coisas que precisam ser mudadas, que há pessoas que sofrem de fome. As crianças hoje em dia são muito cuidadosas com os animais, mesmo com os insetos, elas questionam muito os adultos sobre a proteção do meio ambiente.
Portanto, o que eu faço é apenas falar com ela. Não de um ponto de vista centrado nos adultos, mas como iguais, apenas usando palavras simples para explicar a ela por que temos problemas em nosso meio ambiente, por que há um esgotamento de nossos recursos naturais e nossa água. Falo de pessoas: há pessoas que exploram fortemente os recursos naturais, por exemplo as florestas, e depois vendem a madeira e o dinheiro que recebem dessa venda acaba nas mãos de poucos, e não de todos aqueles que trabalharam na referida exploração.
Explico-lhe que temos uma forma de organizar a sociedade que infelizmente beneficia os poucos que cortam árvores, extraem cobre e minerais de nosso país – e que não só a maioria das pessoas, mas também o meio ambiente é afetado. E ela entende perfeitamente, e faz cada vez mais perguntas.
OG
Você disse que está mais em sintonia com a Frente Amplio [a coalizão “Frente Ampla” formada por partidos progressistas] do que com a Concertación [coalizão de centro-esquerda dos partidos políticos tradicionais]. Qual é a diferença nos métodos de trabalho?
CV
Obviamente, temos mais programas em comum com a Frente Amplio. Nossa geração foi forjada na luta social dos últimos anos – bem, da última década [risos].
Mas o mais importante é o projeto. A Frente Ampla é uma coalizão bastante nova, mas tem conseguido consolidar um projeto cada vez mais claro para superar o neoliberalismo. Temos grandes coincidências programáticas e também uma verdadeira vontade de empurrar em direção a essas transformações.
Acredito que o que aconteceu com a Concertación foi que muitos de seus representantes estiveram na política institucional por mais de vinte, trinta, quarenta anos e suas ações demonstraram que seus interesses estavam mais próximos do modelo atual do que da superação do mesmo. Isto não acontece com a Frente Amplio. Podemos ter algumas diferenças teóricas ou circunstanciais, às vezes, mas no final estamos unidos pela necessidade de impulsionar um projeto de transformação a médio e longo prazo.
OG
O processo que começou com os protestos de 18 de outubro de 2019 está agora mudando o país enquanto falamos, através da Convenção Constitucional. Então por que dizemos “explosão social” e não “a Revolução Chilena” ou “nossa Revolução de outubro”?
CV
Primeiro de tudo, as palavras constroem a realidade e o que aconteceu em 18 de outubro foi, em minha opinião, erroneamente chamado de “explosão social”.
Não foi uma mera explosão – foi uma revolta social e popular, que tentou agitar e romper com o status quo com um profundo questionamento da política tradicional, com um forte questionamento de um modelo baseado em abusos. Além disso, não foi uma “explosão”, pois foi o resultado de um longo processo de acumulação de organização e luta. Não nasceu do nada – antes houve muitas mobilizações e muitas pequenas revoltas. Não estou falando apenas de 2011, onde já estávamos propondo claramente a quebra do modelo neoliberal, questionando o lucro na educação, propondo uma reforma fiscal… estávamos até mesmo falando da necessidade de uma nova Constituição desde 2006, 2005, 2001.
A segunda coisa é que este descontentamento foi canalizado institucionalmente através de um acordo político, que resultou em um referendo para definir se uma nova Constituição deveria ser criada ou não, e depois a criação desta Convenção Constitucional. Acredito que para que seja uma revolução temos que ver como termina a proposta de uma nova constituição.
Não posso falar de um processo revolucionário se não houver uma mudança real e concreta no caráter do Estado chileno. Se continuarmos com algo semelhante a um Estado subsidiário [a ênfase do atual modelo chileno de que os atores privados devem assumir as funções estatais sempre que possível], que não garante os direitos sociais fundamentais, cria instituições com os interesses das famílias trabalhadoras em mente, com um novo modelo de desenvolvimento que coloca no centro o valor do trabalho e coexiste em harmonia com o meio ambiente, então não vai ser um processo muito radical.
OG
A teoria revolucionária é desenvolvida de forma viva, aprendendo com tentativas anteriores e o contexto histórico no qual elas são feitas. Qual foi a contribuição do movimento feminista chileno?
CV
Penso que o movimento feminista tem desempenhado um papel extraordinário no debate político, tanto nas ruas, dentro das casas, na Convenção Constitucional, como no Congresso. Julieta Kirkwood [socióloga feminista chilena, 1936-85] foi muito sensível à importância deste debate, que a revolução também está em casa, na cama.
Não falamos mais apenas da superação do neoliberalismo ou do questionamento do capitalismo, mas também falamos de um casamento que deve ser quebrado, o casamento do neoliberalismo com o patriarcado. O modelo neoliberal se baseia e utiliza esta forma de dominação de gênero para gerar processos de acumulação de capital também.
OG
Você disse que o feminismo é inerentemente anti-capitalista.
CV
Não sei se o disse com essas palavras, mas acredito que sim. Eu sou feminista marxista. Se o feminismo não tem uma perspectiva marxista, ou se o feminismo não se esforça para superar o neoliberalismo, então está incompleto, acabará reduzido a um feminismo liberal que visa quase exclusivamente questões de paridade institucional, em vez de uma mudança no modelo.
Sou uma defensora da paridade de gênero em todas as instituições estatais, mas se nos mantivermos fiéis a isso e não questionarmos o modelo de produção, o modelo de acumulação, a geração de riqueza, a distribuição da riqueza e o valor do trabalho que hoje não é remunerado, então continuaremos promovendo um modelo de injustiça e desigualdade.
OG
A luta entre a busca de justiça e a busca de consenso com a direita é claramente visível na Convenção Constitucional. A experiência do golpe de Estado de 1973 mostra o que a direita chilena pode fazer se se sentir provocada. O que dizer àqueles que dizem que a busca de consenso é mais segura a longo prazo?
CV
O consenso mais importante está entre as grandes maiorias do povo chileno: uma reunião de forças das classes populares e de setores progressistas. É muito fácil para a esquerda chilena colocar suas divisões em evidência. Enquanto isso, a direita chilena luta até a morte entre si na mídia, mas quando se trata de defender seus interesses econômicos, eles rapidamente se alinham. Eles têm muito mais consciência de classe, infelizmente.
Acredito que o diálogo é sempre uma opção, estou no Congresso há oito anos e – acredite – já tentei. Mas há aqueles que simplesmente não vão ceder e aqueles que não querem ceder para proteger seus bolsos até a morte. Imagine, o atual presidente da república, um dos maiores bilionários do mundo, nunca sequer pensou em cobrar um imposto sobre os super ricos – algo simples, temporário, mínimo. Ele privilegia seus interesses econômicos e de classe diante do bem comum e antes de apoiar as famílias trabalhadoras que estavam passando por um período muito ruim na pandemia.
Portanto, quando este setor político no Chile, que é uma minoria mas tem muito poder, pede consenso, é basicamente para branquear as diferenças. No Chile, a única coisa para a qual a política de consenso tem sido boa é fazer com que tudo permaneça igual, impor acordos e mudanças falsas, mas em última instância sem questionar ou mudar as bases estruturais de um modelo de profunda injustiça social.
OG
Muito obrigado, deputada. Boa sorte e desejo-lhe um bom descanso se é isso que realmente deseja, e não um ministério sob um futuro Presidente Gabriel Boric.
CV
[Risos]. Vai ser difícil.
Sobre os autores
CAMILA VALLEJO
é membro comunista do Congresso chileno.
OCTAVIO GARCÍA SOTO
é jornalista freelance e escreveu para La Tercera (Chile), La Estrella (Panamá) e Taz (Alemanha).
Foto: Camila Vallejo em Nueva Imperial, Chile, 2017. (Fernando Lavoz / NurPhoto via Getty Images)