O sangramento financeiro da periferia

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– Nova fase do capitalismo mundial

Prabhat Patnaik [*]

Há duas características definidoras e impressionantes da atual situação econômica mundial. Uma, que é bem discutida, é o aumento das taxas de juro em escala global em resposta ao aumento generalizado da inflação; ela geraria indubitavelmente recessão e desemprego, o que, não obstante todos os protestos em sentido contrário, é o verdadeiro objetivo por trás da mesma. A segunda característica, que é menos discutida, é que o sangramento (outflow) financeiro de outras partes do mundo para os EUA está contribuindo para um fortalecimento do dólar em relação a virtualmente todas as outras divisas, com a única e irônica exceção do rublo russo. Embora todas as principais divisas estejam enfraquecendo face ao dólar, incluindo o euro e a libra esterlina, o que nos preocupa aqui em particular é o enfraquecimento das divisas do terceiro mundo, das quais a rupia é um excelente exemplo.

No ano civil em curso estima-se que já voaram para fora da Índia US$200 bilhões, o que equivale a um terço das reservas cambiais do país. Estas reservas foram elas próprias sacadas em mais de US$100 bilhões pelo Banco de Reserva da Índia, na sua tentativa de escorar a rupia em relação ao dólar; mas, apesar deste saque, a rupia depreciou-se em cerca de 10 por cento.

Há uma crença de que os fluxos financeiros entre nações são determinados basicamente por diferenciais de taxas de juro, de modo que o presente fluxo de saída para os EUA resulta de aquele país ter aumentado as suas taxas de juro em maior escala do que outros países. Disto se segue que, quando os outros países elevam as suas taxas de juro tanto quanto os EUA o fizeram, eles já não enfrentam tais saídas de capital. Contudo, isto não é verdade. Embora os diferenciais de taxas de juro tenham sem dúvida um efeito sobre os fluxos financeiros, há algo ainda mais básico que influencia tais fluxos – e é o estado de euforia entre os financiadores. Quando as suas expectativas são eufóricas, eles mudam-se para países da periferia (alguns países, não todos); mas quando as suas expectativas são sombrias, preferem retornar à sua base de origem, os Estados Unidos. E um fator crucial que afeta a sua euforia ou melancolia é o nível das taxas de juro dos EUA.

Quando as taxas de juro americanas são baixas, todo o sistema ipso facto é inundado de liquidez barata, a qual depois vai para todo o mundo em busca de oportunidades para um posicionamento lucrativo; mas quando os EUA elevam as suas taxas de juro, há um aperto da liquidez e um medo de recessão mundial – e a finança retorna à sua base de origem. Segue-se que, enquanto a taxa de juro dos EUA estiver próxima de zero e a da Índia for, digamos, de 3%, haverá um maior fluxo financeiro para a Índia do que quando a taxa de juro dos EUA estiver próxima de 6% e a da Índia próxima de 9%, embora o diferencial de taxas de juro entre os EUA e a Índia seja o mesmo em ambos os casos.

O fato de qualquer nervosismo nos círculos financeiros, tal como o que a perspetiva de uma recessão mundial invariavelmente provoca, impulsionar a finança para a sua base de origem, os Estados Unidos, foi demonstrado na sequência da crise financeira de 2008. Os EUA tinham estado no próprio epicentro daquela crise, com o seu sistema financeiro cheio de ativos “tóxicos” consistentes de empréstimos feitos a mutuários que possivelmente não podiam reembolsar. No entanto, a crise financeira, ao invés de resultar num fluxo financeiro para fora dos EUA, levou imediatamente a um fluxo financeiro de retorno aos EUA a partir de todo o mundo, incluindo mesmo países como a Índia, que quase não tinham qualquer exposição a ativos “tóxicos”!

A principal razão para o atual fluxo financeiro para os EUA que está fortalecendo o dólar reside, naturalmente, no aumento das taxas de juro estadunidenses. Mas este aumento não importa muito porque torna os EUA um destino mais lucrativo para o posicionamento financeiro; importa porque anuncia um período de recessão mundial que torna as finanças extremamente nervosas. Por outras palavras, o capitalismo mundial está entrando numa fase totalmente nova na qual as economias do terceiro mundo assistirão a um persistente fluxo de saída da finança, mesmo se aumentarem as suas taxas de juro em conjunto com as taxas estadunidenses.

Isto tornaria a crise que se aproxima particularmente aguda para eles. Seriam afetados não só pelos efeitos recessivos do aumento das taxas de juro internas e estrangeiras. Além disso, sofreriam também pelo fato de o reescalonamento da dívida se tornar mais dispendioso e pelo fato de os déficits de transações correntes na balança de pagamentos se tornarem mais difíceis de financiar. Tudo isto convidaria a medidas de “austeridade” draconianas por parte do capital financeiro internacional através dos seus cães de guarda como o FMI e o Banco Mundial, que inevitavelmente seriam abordados para dar “assistência”.

Esta nova fase do capitalismo mundial também afetará negativamente países como a Índia, apesar de não estarem fortemente endividados com credores externos, até este momento, como muitos outros países do terceiro mundo. Até agora, a Índia tem tido acesso fácil a financiamento externo para gerir os seus déficits de conta corrente sob o regime neoliberal. Na esteira imediata da “liberalização”, isto deveu-se ao fato de o anterior “fechamento” do país a entradas de fluxos financeiros ter tornado a finança globalizada ansiosa por aproveitar as várias oportunidades que este proporcionava quando se abriu.

Subsequentemente, quando as taxas de juro estadunidenses foram reduzidas a zero para estimular uma recuperação da recessão engendrada pela crise financeira, as finanças, não surpreendentemente, fluíram para a Índia e outros países do terceiro mundo que ofereciam taxas de retorno muito mais elevadas.

Em consequência, o aumento das taxas de crescimento do PIB da Índia em comparação com o anterior período dirigista testemunhado no início deste século poderia ser sustentado sem quaisquer constrangimentos decorrentes da balança de pagamentos. De fato, durante quase uma década, entre 2002 e 2012, o valor cambial da rupia em relação ao dólar permaneceu notavelmente estável, mesmo quando o país estava experimentando um aumento sem precedentes na taxa de crescimento do PIB. É uma questão à parte que esta subida não tenha trazido qualquer melhoria nas condições de vida da população trabalhadora mas, quaisquer que tenham sido os seus efeitos, não foi constrangida por quaisquer dificuldades na balança de pagamentos. Na verdade, pelo contrário, foi tão grande a escala do influxo financeiro em relação ao déficit na conta corrente que o Banco de Reserva da Índia teve de aumentar as suas reservas cambiais do país a fim de impedir uma valorização da rupia. Tal valorização teria causado uma “desindustrialização financiada pela dívida” totalmente gratuita, ou seja, uma ultrapassagem dos produtores nacionais pelos fornecedores estrangeiros devido a uma rupia valorizada mesmo quando o endividamento externo do país a financiadores estrangeiros estava crescendo.

Essa fase do neoliberalismo está agora terminada. Não só a Índia deixaria de registrar um crescimento do PIB dessa ordem de grandeza devido a uma restrição da procura resultante do crescimento maciço das desigualdades, tanto dentro do país como internacionalmente, um fato que já se tornou evidente há bastante tempo, mas mesmo esta taxa mais baixa de crescimento do PIB devido à restrição da procura tornar-se-ia por sua vez insustentável por causa das dificuldades na balança de pagamentos.

A extraordinária rapidez com que dificuldades na balança de pagamentos podem pôr um país de joelhos é ilustrada na própria vizinhança da Índia, com o Sri Lanka constituindo um exemplo clássico. Considerado ainda há pouco um “país de rendimento médio” que havia ascendido do seu estatuto de baixo rendimento, a sua economia é agora confrontada com uma dívida externa crescente e uma escassez aguda de divisas estrangeiras que o torna um mendigo perante o Fundo Monetário Internacional, o qual impõe condições onerosas de “austeridade”. A propaganda imperialista faz com que todas essas narrativas de “da riqueza à miséria” no terceiro mundo apareçam exclusivamente como consequência da corrupção local, das trapaças de gente como os Rajapaksas. Apesar de estes trapaceiros sem dúvida desempenharem o seu papel, concentrar-se apenas neles e perder de vista as enfermidades estruturais introduzidas pelo neoliberalismo é o cúmulo da loucura.

Uma característica distintiva do capitalismo neoliberal é que as condições de vida de vastas massas de trabalhadores são determinadas pelos caprichos de um bando de especuladores financeiros. O nervosismo de um bando de especuladores financeiros perante o recrudescimento da inflação e as suas sequelas provocará na sua esteira dificuldades agudas para os trabalhadores do terceiro mundo. As medidas draconianas de austeridade que seriam impostas a estes países devido às suas dificuldades de balança de pagamentos significa que povos que jamais obtiveram quaisquer benefícios com o florescimento do neoliberalismo ironicamente se tornaram as vítimas da sua decadência.

20/Novembro/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/1120_pd/outflow-finance-periphery. Tradução de JF.

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