Política, meios, fins e mentiras
Por Mauro Luis Iasi
Blog da Boitempo
O perigo de uma meia verdade é você
dizer exatamente a metade que é mentira.
Millor Fernandes
Presenciamos em nosso tempo a emergência espetacular da mentira como arma política. Os meios digitais, algoritmos, redes sociais e plataformas, apenas potencializam a profundidade e a dimensão dos efeitos da falsificação dos fatos, inverdades e manipulações. São, portanto, uma nova forma sob a qual se reveste um velho conteúdo.
Aristóteles, lá na velha Grécia, afirmava que a política era fundamentalmente a associação mais elevada para garantir a vida plena. Acreditava que toda associação seria orientada pela natureza, desde associação entre homem e mulher para procriar, senhor e escravo para a vida cotidiana, até a associação entre seres livres na Polis, como forma superior de associação capaz de ir além da vida animal imediata.
Desta forma, a compreensão filosófica de Aristóteles sobre a vida se apresenta como ideologia, isto é, esconde as determinações de uma particular forma de produção e reprodução da vida, justificando e naturalizando, apresentando o interesse particular de uma aristocracia escravista como universal.
Mas a ideologia não é uma mera mentira, é a expressão invertida de um mundo invertido, é a expressão ideal de uma materialidade fundada no domínio de homens sobre mulheres e senhores sobre escravos; neste sentido é real e efetiva. No entanto, como já discutimos antes, baseados em Eagleton (1997), a mentira é um componente de toda ideologia e não um mero fator contingente (ver a coluna A mentira e a pós verdade, Blog da Boitempo). Isto é, apesar de expressar a materialidade real da qual parte, toda ideologia implica em inversão e falsificações.
Por exemplo, a ideologia escravista de Aristóteles expressa uma materialidade na qual mulheres se submetem ao domínio dos homens, e os gregos subjugam os bárbaros e os escravizam, mas falsifica descaradamente quando justifica esta dominação afirmando que a natureza criou uns para o mando e outros para a obediência, uns para a vida plena e outros para o trabalho. Isto é, em poucas palavras, mentira.
Aqui o que nos interessa diretamente não é o sentido geral da ideologia, mas sim a funcionalidade da mentira para o domínio político. A transição da política clássica para a política moderna, que emerge com o particular domínio burguês e o modo de produção capitalista, recoloca a questão em outros termos.
A política clássica pode esconder ideologicamente o domínio político sob o manto enganoso da virtude do bom governo ou dos governantes, orientados pela ideia de um superioridade inata das classes dominantes, ao passo que a razão moderna tem que equacionar a contradição entre os interesses individuais e o chamado interesse geral, o que a leva a uma forma inicialmente mais pragmática.
Antes que fosse revestida com grossas camadas de ideologia, a razão política moderna se expressou brutalmente em Maquiavel como um jogo de força e interesses, nos quais a principal virtude é conquistar e manter o poder, portanto, deve ser o hábil jogo que lança mão de ações boas ou más, verdades ou mentiras que devem ser julgadas pela eficiência ou não de manter o poder.
Dizia Maquiavel que o governante prudente deve ser um bom simulador e dissimulador, mas deve “disfarçar muito bem esta qualidade”, deve aprender a ser mau e se valer ou deixar de valer-se desta qualidade segundo a necessidade. Alerta o florentino que o governante não precisa de fato ter todas as virtudes, “bastando que aparente possuí-las” (Maquiavel, 2001, p. 88). Eis aqui o surgimento da separação entre a moral pública e a moral privada que mais tarde seria estudada por Weber.
Desta forma, ficamos informados que o exercício da política não só está autorizado, mas deve lançar mão de mentiras na luta política pelo poder. Um cidadão não pode mentir, mas um governante pode, por exemplo, afirmar que existem armas de destruição em massa para justificar um ataque a outro país ou dizer que explorar um pouco de petróleo na Amazônia equatorial não agride necessariamente a natureza.
Desde Getúlio afirmando que seria necessário um estado de sítio para combater uma iminente insurreição comunista no famoso Plano Cohen até o juizeco do Paraná que prendeu um ex-presidente pela compra de um triplex que não era dele, temos inúmeros exemplos históricos de mentiras e sua funcionalidade para a luta política.
No entanto, se, por um lado, o uso da mentira tem se mostrado uma constante, é também inegável que ela assumiu uma forma particular no momento presente. Vivenciamos uma espécie de pandemia de mentiras potencializadas por poderosas plataformas de divulgação e massificação daquilo que eufemisticamente se convencionou chamar de fake news. Certo, os jornais já mentiam, a televisão mente, assim como o rádio e outros meios sempre mentiram, mas os meios digitais parecem ter uma vantagem sobre seus antepassados na arte de mentir.
Estamos convictos que não é apenas a enorme capacidade potencializada de ramificação e contato direto com ouvidos receptivos que faz com que os atuais meios sejam poderosos veículos de mentiras. Vejamos mais de perto.
Como refletimos em outra oportunidade (O dilema do dilema das redes – 20/10/2020, Blog da Boitempo), as plataformas e aplicativos nada mais são que a versão moderna dos veículos de propaganda que se especializaram em captura de atenção para que os algoritmos pudessem dirigir com espantoso grau de certeza a propaganda. O dilema ético dos agentes técnicos das plataformas de captura de atenção se apresenta quando percebem que a manipulação pode ir além da imposição de mercadorias, mas induzir a comportamentos políticos.
Ora, a relação entre propaganda e política, não é exatamente uma novidade como podem comprovar o nazismo, a análise de Weber sobre a política americana submetida à racionalidade instrumental, o Estado Novo ou o lucrativo mercado dos marqueteiros nas campanhas eleitorais. O que há de particularmente novo é um tipo específico de propaganda em massa descaradamente fundada em mentiras e, principalmente, na assustadora eficiência de tais métodos.
O papel destacado de Steve Bannon na eleição de Trump em 2016 e na de Bolsonaro em 2018 consagraram o método da mentira e seu eficiente meio digital, mas a aparência do fenômeno levou muitos analistas a destacar mais os meios do que o conteúdo daquilo que se buscava compreender, acabando por culpabilizar o instrumento.
Creio que a eficácia da mentira como arma política se deva a dois aspectos pouco avaliados. Para entendê-los devemos focar nossa atenção, em um primeiro momento, no receptor. O mesmo Maquiavel já sabia que “aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar” (idem, ibidem), ou como diz mais diretamente minha sogra: “quando um bobo se acha esperto, sempre encontra um esperto que acha um bobo”.
A mensagem mentirosa encontra ouvidos receptivos e nisto devemos focar nossa atenção. Pessoas minimamente esclarecidas não deveriam acreditar que qualquer governo pudesse distribuir mamadeiras com bicos em formato de pênis para induzir homossexualismo em crianças ou que a República Popular da China teria criado uma pandemia, incluído microchips em vacinas para controlar as pessoas, num plano maquiavélico para que o comunismo tomasse o mundo. Mas a recepção favorável não tem nada a ver com o conteúdo manifesto da mentira.
O medo não é da mamadeira de piroca que não existe, mas de sua própria sexualidade reprimida e a insegurança que a ela vem associada. Da mesma forma, o receio não é de um chip escondido em uma vacina que faça as pessoas de bem entenderem a dialética marxista tornando-se homossexuais comunistas que cantam a Internacional e copulam fora dos sagrados laços do matrimônio. Existe uma dimensão ainda mais profunda: o receio de que um poder maior nos domine e possa afetar-nos sem que saibamos.
Veja bem, este poder existe e não apenas pode como faz isso mesmo, ou seja, controla sua vida e faz você fazer coisas terríveis. No entanto, este poder não é o abstrato “sistema” ou “tudo isto que tá aí”, este poder é a sociedade burguesa e o modo capitalista de produção e reprodução da vida fundada na mercadoria e no capital. Esta é a materialidade na qual estamos todos subsumidos e que produz uma sociabilidade na qual o ser social cindiu entre o indivíduo privado na sociedade civil burguesa e o ser coletivo (político) alienado no Estado como cidadão.
A ideologia, assim como seu componente constitutivo que é a mentira, para usar um termo de Althusser, interpela este conteúdo e produz um reconhecimento. Mas é necessário esclarecer que, do ponto de vista subjetivo, esta materialidade que nos conforma não revela suas determinações, uma vez que é interiorizada na forma abstrata de valores, cargas afetivas e representações e que, portanto, podem ser interpeladas por gatilhos distintos que busquem reconhecimento na substância abstrata da subjetividade capturada. Dito de forma direta, a manipulação política usa meu medo de ser um joguete do sistema e apresenta, no lugar daquilo que oculta (a sociedade do capital), a figura simbólica que deseja que odiemos.
A força e a convicção daquele que acredita na mentira e se move contra o objeto de ódio costuma surpreender e penso que esta surpresa se deva ao viés de nosso pensamento racional que acredita que podemos combater a mentira oferecendo argumentos racionais que demonstrem a verdade.
O problema é que costumamos desconsiderar que a interpelação da subjetividade alienada e reificada vem associada à mobilização de impulsos básicos, assim como o recalque e a repressão destes impulsos que voltam na forma de sintoma como defendia Freud e mais precisamente Reich. Estamos em uma forma societária que está em antagonismo com o desejo, não apenas na forma como pensava Freud, segundo a qual toda civilização e cultura só é possível com a repressão dos impulsos e desejos, mas da sociedade das mercadorias sob a forma do capital, que resulta em uma sociedade na qual a relação entre os seres humanos se apresenta na forma fantasmagórica de uma relação entre mercadorias (Marx), o que leva a repressão do desejo e dos impulsos básicos ao paroxismo.
Assim como analisou Reich ao tratar do nazismo, não podemos compreender a força da ideologia e a adesão dos trabalhadores à ordem que os oprime se não entendermos que este domínio se apropria da repressão da sexualidade como forma de dominação. Não é por acaso que os valores ditos conservadores dialogam com o senso comum mobilizando a defesa da família, a masculinidade e os valores religiosos, invocando os perigos do sexo livre, da homossexualidade e do abandono dos preceitos morais dos bons cristãos. A energia que se manipula pela mentira não é apenas a ordem que se impõe e nos controla, mas esta ordem econômica, social, cultural e política que, internalizada como uma instância de nosso psiquismo na forma de um superego, reprime nossos impulsos primários em nome das normas de uma civilização.
Na teoria política tal fato se expressa no medo hobbesiano da guerra de todos contra todos no qual sucumbiria a propriedade, a vida, a liberdade, o casamento monogâmico e o respeito às pessoas que usam fardas.
A mentira e a manipulação em sua vertente conservadora e reacionária apresenta ainda uma vantagem. Ao apresentar o inimigo que expressa a subjugação abstrata a uma ordem ou sistema abstrato, colocando como alvo deste perigo os valores tradicionais (a família, a religião, a propriedade, o patriarcalismo, etc), a manipulação ao mesmo tempo se anuncia como libertadora (contra o sistema que conspira contra você) e como controle civilizado que mantém seus impulsos fundamentais trancados no armário. Resulta que me sinto liberto e protegido de mim mesmo.
A forma digital desta interpelação, não por acaso denominada de “redes socias”, “comunidade” ou “grupos”, permite que a mentira massificada e a interpelação destas subjetividades se reconheçam como senso comum, levando à sensação de que é verdade, pois todos nós pensamos isso. Freud já percebia este fenômeno quando da situação de grupo. Dizia o pai da psicanálise:
Os grupos nunca ansiaram pela verdade. Exigem ilusões e não podem passar sem elas. Constantemente dão ao que irreal precedência sobre o real; são quase tão intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas” (Freud, 1976, p. 104)
Devemos somar a estas constatações um aspecto mais geral que as contém e determina. Não estamos falando de uma ordem capitalista somente, mas da ordem capitalista no momento mais agudo de sua crise e isto tem um impacto decisivo em nosso tema. Marx e Engels na Ideologia Alemã dizem que, no momento da crise, quando as forças produtivas avançadas acusam sua contradição com as relações sociais estabelecidas, é natural que as ideias que correspondiam a esta ordem percam sua correspondência e se tornem meras fórmulas idealizantes ou, nos termos dos autores, uma hipocrisia deliberada.
Quanto mais desmentidas pela vida, seguem os autores, “tanto mais são resolutamente afirmadas, tanto mais hipócrita, moralista e santa se torna a linguagem normal da sociedade em questão” (Marx e Engels , 2007, p. 284). Para nossa reflexão, o que se quer destacar é que, no período revolucionário da burguesia, esta classe podia invocar os valores de progresso, emancipação e razão, uma vez que apresentava em sua ideologia a emancipação burguesa como se fosse a emancipação humana, mas, no período de sua crise e decadência, na qual sua universalidade abstrata é reconduzida à sua particularidade medíocre, ela é obrigada a abandonar a razão, a sua teleologia histórica e abrigar-se no irracionalismo e na hipocrisia.
É natural que neste momento os argumentos, a razão e a ciência sejam substituídos pelo preconceito, o irracionalismo e a mentira, assumindo a forma explícita de uma hipocrisia deliberada, de uma ilusão consciente.
Todos nós estamos envoltos em nossa época e esta é a época da crise da sociedade do capital. No entanto, os trabalhadores e aqueles que querem ter o direito, o privilégio e a responsabilidade de representá-los devem guiar-se por princípios éticos que os façam diferenciar da ordem que agoniza e apontar a possibilidade de uma nova ordem que se anuncia. Para nós, comunistas, como defendia Gramsci, a verdade é revolucionária, pois nos interessa desvelar as determinações, desmitificar o que a ideologia apresenta como natural e revelar os interesses particulares que se ocultam em pretensas universalidades.
Não podemos ceder à tentação, uma vez constatada a eficiência da manipulação, de cair na ilusão de que podemos utilizar os mesmos meios para atingir nossos objetivos. Este não é apenas um desvio ético, mas principalmente um grande equívoco político. A experiência histórica tem tristes exemplos de falsificações e mentiras como arma na luta interna, com conhecidas e trágicas consequências.
Quando a direita mobiliza massas pela mentira, consegue uma adesão passiva, movida fundamentalmente por paixões e instintos, no lugar da razão. Isto pode levar a engajamentos momentâneos e uma eficácia de ação contra seus adversários, no entanto reforça a alienação e a dependência a líderes mistificados que podem fazer com que estas massas sigam, muitas vezes, contra seus próprios interesses.
Permitam-me um exemplo pessoal. A extrema direita no ano seguinte às eleições em que fui candidato pelo PCB, retirando do contexto a citação de um poema do Brecht, transformou-me em um perigoso comunista que propunha fuzilar todos os crentes e conservadores. Uma vez espalhada nas redes e reproduzida ad nauseam, comecei a receber milhares de mensagens ameaçadoras de pessoas que nunca vi e não me conhecem, mas que tinham convicções muito fores sobre meu caráter e propensão ao assassinato.
Ocorreu uma evidente manipulação do medo genérico em relação ao comunismo caricatural, muito longe de todo o fundamento do debate político e programático que o PCB desempenhara um ano antes. Da mesma forma os ataques (contra mim foi apenas um dos muitos casos similares, recentemente a camarada Sofia Manzano sofreu ataques do mesmo tipo) produzem a coesão do campo conservador em torno da liderança mitificada que viria a ganhar as eleições em 2018.
A extrema direita se utilizou do medo do comunismo para chegar a um governo catastrófico e genocida. A pandemia deixou 700 mil mortos, somente em 2021 a polícia matou 6.145, pessoas sendo 84% negras e várias pessoas foram assassinadas por bolsonaristas. Eu, até o momento em que escrevo esta coluna, ainda não fuzilei ninguém.
Bom, a mentira corre rápido, mas a verdade não se cansa.
Referências bibliográficas
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EAGLETON,T. Ideologia. São Paulo: Boitempo: UNESP, 1997.
FREUD, F, “Psicologia de grupo e a análise do ego [1921]”. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 18 (1922-1929).
IASI, M. L. A mentira e a pós verdade, Blog da Boitempo – https://blogdaboitempo.com.br/2017/04/11/a-mentira-e-a-pos-verdade/)
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