Derrotar o neofascismo e a conciliação de classes

FOTO: SÉRGIO LIMA

Por Milton Pinheiro

Blog da Boitempo

“Vamos em um grupo cerrado por um caminho íngreme e difícil, de mãos fortemente dadas. Estamos cercados de inimigos e temos de caminhar sob seu fogo. Estamos unidos por uma decisão tomada livremente, justamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano vizinho, cujos habitantes desde o início nos condenam por termos constituído um grupo à parte e por termos escolhido o caminho da luta e não o caminho da conciliação.”
Lênin, em O que fazer?

Estamos sediados em um período histórico marcado por uma profunda derrota estratégica. As massas populares e a classe trabalhadora não conseguem desvelar a cena política da atual quadra histórica e sucumbem diante do projeto da direita e até do neofascismo que, em última instância, apresenta-se ridiculamente como antissistêmico. Existe, no tempo presente, uma sedução neofascista sobre a classe trabalhadora (que foi devastada pelos ajustes fiscais) e setores empobrecidos da população.

Em grande parte da Europa, Índia, EUA etc., o crescimento do neofascismo tem fincado raízes obscurantistas e nefastas para se contrapor a qualquer cultura progressista, que de forma ainda muito tímida, postula defender os direitos da classe trabalhadora, levando em consideração o seu novo perfil: populações negras, periféricas, mulheres, povos originários e comunidades LGBTs. Isso se comprova quando a direita e o neofascismo ganham espaço político diante da capitulação de setores progressistas e sociais-democráticos à lógica do Estado mínimo.

Mas não é tão somente nesses territórios, anteriormente citados, que a direita e o neofascismo ameaçam aquilo que definimos como progressista para a humanidade. No Brasil, pós derrota eleitoral do bolsonarismo, mesmo com o mínimo patamar de votos, o governo da coalizão burgo-petista segue o trágico caminho da capitulação à ideologia neoliberal da austeridade fiscal. Essa política sabota o avanço das lutas populares e proletárias, trazendo reforço ao discurso da extrema direita de perfil neofascista ou não.

Com o fim do primeiro ano do terceiro governo Lula, as indicações da luta política afirmam que nem a tradicional mediação da conciliação de classes lulista teve espaço em 2023. O projeto burguês venceu sem a mínima presença de qualquer contenção da social-democracia tardia ou de qualquer ato mais sério do governo petista. É relevante citar, para que não pairem dúvidas, que não é o governo que vai representar os interesses da classe trabalhadora. Contudo, diante de um discurso difuso que é emitido pelo PT, PC do B e segmentos importantes do PSOL, perpassa a noção de que o governo de Lula teria também esse papel.

A coalizão burgo-petista conformou-se serenamente no poder. Por um lado, as forças da centro-direita e a direita no parlamento estão muito confortáveis com a postura do governo e sua forma inerte de fazer política. No outro canto do governo, forças sociais democráticas fingem que o país está avançando e que o principal é ganhar eleições. Mas, também consideram, para efeito de informação na esquerda da ordem, que determinantes políticas minimamente focalizadas são importantes para o desenvolvimento de seus projetos político-eleitorais e suas relações com o povo…

A forma inerte que o governo do PT manuseia o fazer política, e sua incapacidade de se dirigir ao povo para questionar os entraves feitos pela direita aliada no parlamento, tem permitido enormes desgastes diante do conjunto da população. A opção tática da base social democrática é não fazer a disputa. Portanto, o que tem sido a política do governo da coalizão burgo-petista? Vamos analisar alguns poucos pontos.

O governo Lula avançou na oferta de espaços para controle da direita dentro da estrutura do Estado (Ministérios, CEF, autarquias, cargos comissionados em profusão). No entanto, essa condescendência fisiológica no balcão de negócios do parlamento, não tem garantido ao governo qualquer apoio mais forte nas votações. O papel de primeiro-ministro de província, exercido pelo presidente da Câmara dos Deputados, diante da incapacidade do governo, tem colocado em risco o país e facilitado a ação política do neofascismo.

Através do aliado Artur Lira, o projeto burguês das contrarreformas tem avançado no parlamento (reforma administrativa, possibilidade de nova reforma da previdência etc.). Toda uma operação articulada de ataques aos interesses públicos tem avançado (marco temporal, política de agrotóxicos etc.). Algum muro de contenção, organizado pelos instrumentos do PT, CUT, CTB, PC do B e segmentos governistas do PSOL foi levantado?

A relação do governo com a direita no parlamento (vulgarmente chamada de Centrão) tem imposto derrotas à classe trabalhadora e ao povo em geral. O melhor exemplo dessa relação é o orçamento aprovado para 2024, quando para preservar os interesses do Centrão foram feitos profundos cortes no orçamento do ano corrente.

A violência dos cortes fortalecerá o discurso da extrema direita e o neofascismo quando o caos social se apresentar. Foram cortados R$6,3 bilhões nas obras do PAC; R$4,1 bilhões no projeto Minha Casa-Minha Vida; R$4,9 bilhões no geral do orçamento dos Ministérios. O salário mínimo desceu do projetado R$1421 para R$1412,00, como se R$9 não fizessem diferença para essa faixa de trabalhadores/as.

A saúde perdeu R$851 milhões, dentro desse corte R$336,9 milhões eram para a Farmácia Popular. Em um país de vida urbana caótica e acidentada, o Ministério das Cidades perdeu R$336 milhões, dos quais R$49 milhões eram para a defesa civil (mesmo com os desastres climáticos que estamos assistindo regularmente pela televisão).

A educação foi atingida em R$320 milhões, sendo que dentro desse montante houve o corte de R$40,3 milhões para bolsas no ensino superior e R$25,9 milhões para os livros didáticos. Tudo isso, mesmo com o rotineiro discurso do presidente de que educação não é gasto e sim, investimento.

Mesmo com toda essa lógica de corte social e humanitário, com completo desrespeito ao conjunto dos interesses nacionais e as necessidades do povo em geral, o orçamento contemplou – destinando, pasmem, R$53 bilhões para emendas parlamentares (foco ad infinitum de corrupção e em ano de eleições municipais) e quase R$5 bilhões para o fundo eleitoral deste ano (cujos maiores beneficiados são o PL e o PT).

Mas, no quadro da atual política do governo ainda existem cenários de muitas preocupações. Apesar dos militares, enquanto burocracia de Estado, serem historicamente golpistas no Brasil, o governo Lula, mesmo após o 8 de janeiro de 2023, começou a premiá-los com cargos no governo e benesses.

Existe um golpismo encastelado nas Forças Armadas. A forma como a memória do golpe burgo-militar de 1964 é tratada pelo governo estimula a ação subterrânea dos golpistas. Não existe enfretamento ao rebotalho militar golpista. Tem que existir ações que modifiquem essa realidade. Precisamos mudar nomes de prédios e logradouros públicos, devemos recriar a comissão de mortos e desaparecidos, é urgente rever a Lei da Anistia. Por fim, em última instância, é necessário enfrentar o neofascismo nas Forças Armadas.

As últimas informações sobre a relação do neofascismo bolsonarista com a ABIN, e a cumplicidade dessa última com o GSI, devem servir de exemplo para sérias medidas do governo. As forças da esquerda revolucionária, segmentos progressistas e democráticos devem denunciar no Brasil e no mundo o papel dos neofascistas dentro dos órgãos de segurança. E, para além disso, é importante que o governo Lula corte relações com os setores de segurança de Israel, que estimulam os serviços de espionagem no Brasil. Segmentos esses que sempre estão a serviço do neofascismo e da extrema direita.

Enfrentar nas ruas o neofascismo é a lógica que deve mobilizar a esquerda revolucionária, suas organizações e aliados. Hoje, se faz necessário constituir um amplo instrumento de frente única desses setores político-sociais. Mas, não podemos deixar de compreender que onde a social-democracia capitula à ordem da ideologia neoliberal da austeridade fiscal, a classe trabalhadora e segmentos populares são seduzidos pelo projeto da extrema direita e do neofascismo.

O mapa da desmobilização da classe trabalhadora e dos setores populares deve ser a preocupação das forças políticas e sociais que querem colocar em movimento a classe que vive da venda do seu trabalho. Ter palavras de ordem que atinjam a subjetividade dos subalternos, organizar um programa mínimo que consiga derrotar o neofascismo e superar a conciliação de classes, esse deve ser o papel fundamental da vanguarda, para que, a partir de dentro da contrarrevolução, possa construir os caminhos da revolução brasileira.

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Milton Pinheiro é professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), autor/organizador de diversos livros, entre eles, Partido Comunista Brasileiro: 100 anos de história e lutas (Marília/SP, Lutas Anticapital, 2023) e Ditadura: o que resta da transição (São Paulo, Boitempo, 2014).

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