Trump mostra sem rodeios a face imperial
Charge: Mauro Iasi
Hugo Dionísio
ODIARIO.INFO
As reações de estupefação, repúdio e algum desconforto que se propagaram pela imprensa hegemônica, a propósito das declarações de Donald Trump, quanto à tomada da Groenlândia à força, do canal do Panamá e mesmo do Canadá, demonstram, na sua maioria, a mais desavergonhada hipocrisia, enormes doses de ilusão e inaceitável ignorância, especialmente por parte daqueles que fazem da sua vida dizer aos outros o que pensar, pressupondo-se que, para tal, estivessem de posse de um nível de informação acima da média.
Face ao que se tem constituído, desde a sua fundação, o comportamento dos Estados Unidos da América, dos seus presidentes, órgãos de soberania e daquelas que atuam como os seus principais tentáculos, dentro e além-fronteiras, falo das corporações multinacionais, afinal, em que destoa o comportamento de Donald Trump? É nova esta postura por parte de um presidente dos EUA?
Voltamos ao tempo do “politicamente incorreto”, da falta de polidez e educação, máscaras utilizadas para criar a ideia de que a elite estadunidense tem em atenção as pretensões alheias, cumpre o direito internacional e respeita a soberania das outras nações? Temos de assistir, outra vez, à reedição do desfile moralista que caracterizou o primeiro mandato, mesmo que acabassem todos, não apenas a fazer o que ele disse, mas, mais importante ainda, a não desfazer o que foi feito?
Donald Trump, como se verá mais tarde, apenas dá voz e corpo ao poder que julga e, de algum modo sabe, ter na mão, fazendo-o da forma mais direta, pragmática e brutal que é o seu jeito. Que foi jeito de muitos ao longo da história dos EUA. Inclusive de Biden. Trump faz tudo por apresentar-se como o “real deal”, ao invés do “politicamente correto” que caracteriza a igualmente bárbara atitude liberal e neoliberal. Sob Trump todos podemos ter acesso ao privilégio de vermos o império em toda a sua brutalidade e visceralidade, sem máscaras comportamentais, sem filtros emocionais.
O que antes estava vedado senão a uma elite de comando ou aos teimosos que insistem em assumir uma postura crítica em relação a qualquer fato, ideia ou informação que lhes surja, passa agora a desvelar-se a todo o povo. Nesse sentido, a atitude de Trump é mais mobilizadora de uma reação democrática, no sentido em que ativa, exorta e suscita a ação de resposta a um grupo social muito mais vasto, antes adormecido pela polidez, inocuidade e falsidade da atitude política situacionista.
Será a proposta de Trump assim tão diferente de outras anexações que os EUA foram fazendo ao longo da sua curta, mas intensa história? Seriam os EUA a superpotência que hoje são se, em meados do século XIX, não tivessem anexado o Texas, tornando-o no 28º Estado? Ou a Califórnia? Estados cuja partição deu ainda origem a Arizona, Colorado, Nevada, Novo México e Utah?
E quem foi o senhor responsável por tal anexação? Um republicano? Nem por isso. O responsável foi o democrata James K. Polk, eleito como 11º presidente dos EUA, tendo como objetivo a anexação do Texas, Califórnia e Oregon. É claro que se tratava do Partido Democrata recém-criado, intrinsecamente liberal e pré-guerra civil. Mas o processo não difere substancialmente do intervencionismo estadunidense, às mãos de democratas e republicanos, nos últimos 80 anos. Para tal bastou enviar uns colonos para esses locais, financiar a sua revolta e aplicar o chamado “Corolário Polk”, segundo o qual os EUA incorporariam os territórios cujos “povos” quisessem – mui “democraticamente” – a eles juntar-se. Os “povos”, portanto).
Importa ainda referir que a doutrina do “Destino Manifesto” era defendida essencialmente pelo próprio Partido Democrata, fundado em 1828. Foi com base nesta doutrina que se justificou a guerra contra o México que acabou com a conquista dos territórios atrás referidos. Ao contrário, os Whigs estavam contra o intervencionismo externo, principalmente no que tinha a ver com os colonizadores europeus. E não será a atitude de Trump um corolário da aplicação, sem máscaras, da Doutrina Monroe? A doutrina, segundo a qual, a América Latina foi classificada como o “pátio traseiro” ou “quintal” dos EUA?
Convenhamos que o expansionismo estadunidense não ficou por aqui, chegando a Porto Rico, território no qual os EUA praticaram todo o tipo de barbaridades para impedir a autodeterminação daquele povo, o qual apoiava esmagadoramente o Partido Nacionalista de Porto Rico (War against all Puerto Ricans, revolution and terror in America’s colony, de Nelson A. Denis), mantendo-se até hoje aquele território como uma colônia. Os povos indígenas terão centenas, senão milhares, de histórias iguais às de Trump. Trump é, na realidade, um presidente realmente norte-americano.
Já na atualidade, nada mudou, a não ser a capacidade propagandística, beneficiando-se amplamente dos conhecimentos científicos na área da comunicação e propaganda. Os exemplos de anexação são profusos, sendo a Síria apenas mais um exemplo. Foi com Obama que chegaram as tropas estadunidenses à Síria, nomeadamente a partir de 22 de setembro de 2014, supostamente para combater o ISIS, embora se saiba que, no essencial, as tropas enviadas por Obama estiveram no local para formar, treinar e mobilizar, o que designaram como “Exército Livre da Síria” e os seus “rebeldes moderados”). Em 2019, foi Trump quem desmobilizou as tropas na Síria, tendo deixado algumas para trás, segundo ele para “ficar com o petróleo”.
Interessante, ou apenas mais um exemplo do porquê de toda esta atitude face a Trump ser de uma hipocrisia monumental, é que Joe Biden, após cumprir um mandato inteiro, não apenas não desocupou o território sírio ilegalmente ocupado, como ainda teve papel fundamental no apoio à Turquia para destruir esta nação, criando condições para uma permanência mais prolongada e enraizada pelos EUA. Tampouco acabou com o roubo descarado do petróleo.
Portanto, a verdade aqui é muito simples: Trump, como Bush pai, como Bush filho, foram apenas as caras feias a quem os democratas – defensores do destino manifesto dos EUA, do globalismo e do intervencionismo – acusaram de praticar os atos que, mais tarde, os próprios democratas não apenas consolidaram, como aprofundaram. Com a exceção do Afeganistão, de onde Biden se retirou, o normal são os democratas, os seus discípulos e procuradores na Europa, Austrália, Japão, Coreia do Sul e Nova Zelândia, atirar as culpas do intervencionismo aos republicanos, mas os democratas, tal como os republicanos, não apenas não desfazem, como continuam e aprofundam tais políticas.
O exemplo do Afeganistão está para Biden assim como a retirada do Iraque está para Trump. Se Trump não retirou totalmente, tal deveu-se, uma vez mais, ao petróleo. Biden, mesmo depois de o parlamento iraquiano ter votado a saída das tropas estadunidenses, continuou resistindo à retirada das mesmas.
As frentes internacionais abertas por Trump, nenhuma foi encerrada por Biden. A guerra tecnológica contra Huawei foi intensificada e alargada por Biden a outras empresas e tecnologias, e idem para a guerra comercial. Ao contrário de Trump, que no seu primeiro mandato conseguiu dialogar com Vladimir Putin, Biden recusou-se a qualquer contato e, à boa maneira democrata, aprofundou os fossos relacionais com um país tão importante como a Federação Russa, criando uma crise de segurança internacional que há muito tempo não se vivia.
Foi também sob a “liderança” do Partido Democrata que a OTAN destruiu a Iugoslávia, foi com Biden que ocorreu o primeiro genocídio televisionado e online da história humana, em Gaza. Aliás, se existe figura proeminente e presente no intervencionismo dos EUA nos últimos 30 a 40 anos, essa figura é Joe Biden, braço direito de Bill e Hillary Clinton ou Barack Obama.
Todos se recordam da forma como Joe Biden disse, ao lado de um embasbacado e hierarquicamente subordinado Chanceler Scholz, que destruiria o gasoduto Nord Stream se a Rússia “invadisse” a Ucrânia. O gasoduto, propriedade conjunta da Federação Russa e de países da OTAN, foi assim destruído o que, nos termos do Direito Internacional constitui um ato de guerra contra uma infraestrutura civil, para mais, propriedade soberana de países “aliados”. Esta ameaça, mais tarde concretizada, nada difere, na essência, da brutalidade e do desrespeito pela soberania alheia, da pretensão que Trump assumiu relativamente à Groenlândia, a despeito da Dinamarca.
Talvez os “moderados”, epíteto usado para designar os fanáticos pelo situacionismo e demais fanboys do globalismo neoliberal liderado pelos EUA, gostem daquelas narrativas encomendadas para esconder a verdade, como aquela que foram um grupo de ucranianos bêbados que num dos mares mais bem guardados do universo, não apenas fizeram uma festa de arromba como rebentaram uma instalação energética protegida pelo Direito Internacional. Mas esta narrativa paradoxal, delirante e mentirosa apenas confirma tudo o que aqui tenho dito. Trump e os democratas apenas diferem na dose de honestidade com que assumem os seus interesses reais. O primeiro diz ao que vai, à moda do faroeste, os segundos são mentirosos e ilusionistas compulsivos, especialistas em apontar para um lado e virar para o outro, beneficiando-se do uso científico das disciplinas do ilusionismo e contorcionismo.
Tal como Trump, cuja atitude demonstra a pouca conta que tem com os atuais dirigentes europeus, não os considerando dignos sequer de recurso a um discurso eufemístico ou mistificador que justificasse a agressão, Biden não foi diferente. Tampouco respeitou Scholz como chefe de Estado de um dos países – ainda – mais importantes do mundo. Confirmando o que constatamos sobre o caráter de tais figuras, Sсholz nem se defendeu ou defendeu o seu país. Nem para tentar uma qualquer manobra de diversão. Uma piada, graçola ou qualquer coisa. Como se a proximidade ao chefe o congelasse de medo.
Talvez os supostos “moderados”, a maioria dos comentadores que povoam as cada vez mais irrelevantes TVs hegemônicas ocidentais e os eleitos para cargos políticos que se limitam a seguir as diretrizes emanadas dos diretórios de poder dos EUA/G7 e OTAN, deem muito valor a uma atitude cínica e hipócrita, tão em voga nos corredores do poder no ocidente e que consiste em pensar uma coisa e dizer outra; em querer-se muito algo e mostrar-se que nem se quer assim tanto. Mas quem está no terreno, no dia a dia da realidade, da luta pela sobrevivência e da luta pela transformação do mundo, talvez se beneficie com a susceptibilidade de um número crescente de pessoas, olharem para as TVs e, ao invés de assistirem a um qualquer show politicamente estilizado do Copperfield, terem acesso, para variar, à verdadeira cara do império, aos seus tiques, feitios e caprichos.
Não sei se trágico, se caricato, mas o espaço público no ocidente, o espaço da “pós-verdade” tornou-se num amplo e continuado teatro em que figuras desfilam continuada e sucessivamente, fazendo parecer que se faz o contrário do que se pratica, fazendo acreditar que se defende o contrário do que se objetiva, fazendo por esconder os reais responsáveis por aquilo que todos vemos e revemos acontecer. Nestes palcos da ilusão, em que se transformaram os órgãos de comunicação social, mistificar tornou-se sinônimo de informar, e o ilusionismo tornou-se na própria comunicação.
Tendo a certeza que 70% da população mundial não se importaria nada de viver numa “ditadura” como a bielorrussa em que qualquer ser humano é “obrigado” a não passar fome, não dormir na rua, não ficar no desemprego, não ficar à espera de operações médicas anos a fio, não sucumbir ao analfabetismo e à iliteracia e a não viver o drama do crime violento, tais classificações nada mais me merecem do que um sorriso irônico, quando se considera “democracia” atribuir o poder a meia dúzia de oligarcas e condenar vastas maiorias à miséria, e “ditadura” conferir condições dignas de vida, não à maioria, mas a toda a população, impedindo os oligarcas de mandar e desmandar à sua vontade, sob pena de exclusão. Assim, sem misticismos, nem ilusões. Tal como quando condenam, perseguem e calam todos os que tentam subverter, em nome de interesses estrangeiros, tais nações.
O que devemos questionar é para que necessitamos de um poder que diz estar contra a tortura, mas mantém Guantânamo funcionando e, como essa instalação, milhares de prisões secretas em todo o mundo. Ou um poder que, nos últimos 80 anos, transferiu cerca de 20% da riqueza produzida anualmente, dos 50% mais pobres, os trabalhadores, para os 10% mais ricos, os oligarcas, passando esses 10% a dominar mais de 30% do output dos EUA, e os 50% mais pobres ficando com uns meros 6 ou 7%. Tudo isto enquanto se fazem belos discursos sobre democracia – para os 10% mais ricos certamente – e direitos humanos, sempre que estes não colidam com interesses mais importantes, como os monetários.
Muito gostarão, tais gentes, de ouvir Biden, numa mesma conferência de imprensa, dizer que vai enviar armas para Israel e, logo em seguida, dizer que está preocupado com a situação humanitária em Gaza e pedir a Netanyahu que seja mais brando com as bombas que ele próprio autorizou o envio. Também gostarão bastante de ver Blinken dizer que tem de “ajudar” a Ucrânia com mais armas e depois acusar a Federação Russa de derrubar prédios ucranianos, para eliminar os soldados que para lá a OTAN envia. Ou assistir a Zelensky dizer que luta pela democracia enquanto eliminou toda a oposição à esquerda e ao centro.
A polidez e o cinismo que fazem confundir com “cultura democrática” e “respeito institucional” têm por base os mesmos princípios – ou falta deles – que os levam a proibir órgãos de comunicação social em nome da defesa da “liberdade de expressão” e perseguir indivíduos em redes sociais, escutando chamadas telefônicas, vídeos e analisando mensagens privadas, em nome da defesa da liberdade de opinião. É em nome desta polidez que se destinam os bilhões de dólares anuais que o orçamento dos EUA consagra para a comunicação social, para que produza informação que “contrarie a influência maligna” de Rússia, China ou Irã (https://www.hudson.org/foreign-policy/countering-malign-prc-influence-europe-peter-rough). Mesmo que, para se produzir tais mensagens, se tenha de inventar, mentir e manipular fatos. Como é que alguém são e minimamente preocupado com o seu povo admite que um país estrangeiro use fundos sem fim para eliminar a relação entre a Europa e a China, ou a Europa e a Rússia, como se fossem nossos patriarcas ou tutores e os povos europeus estivessem sujeitos a um processo de inabilitação civil, incapazes de exercer os seus direitos e assumir os seus deveres.
Ao assistirmos à intromissão de Elon Musk na política europeia, usando do seu “X” para propagar as suas ideias, todos os que se mostram chocados deveriam pensar duas vezes e perceber que a utilização do “X” por Musk não difere da utilização do Facebook, Google ou comunicação social dominante (concentrada segundo os auspícios de Clinton) pela Casa Branca e pela CIA. O desrespeito que Musk demonstra pela soberania dos estados membros europeus não difere do desrespeito a que se deram os representantes políticos desses estados consigo próprios e com os povos que dizem defender, quando prescindiram de governar e deixaram tudo nas mãos de Washington e da mandatária Ursula von der Leyen. No fundo, Elon Musk está apenas utilizando um poder que sabe existir, assim, sem máscaras também.
Trump, Elon Musk ou J.D Vance (ainda vão aparecer tipos a dizer que os apoio) desconcertam esta gente porque denunciam, sem subterfúgios, sem falsas modéstias, sem hipocrisias, o estado de submissão e subordinação em que se encontram os políticos europeus face à Casa Branca, face ao império corporativo que agora chefiam. Sabendo-o, usam com toda a frontalidade tal poder, rebaixando os destinatários das suas ordens ao nível do que são: meros funcionários corporativos à procura de subir na carreira e corruptos (moral ou financeiramente) procuradores, tão fáceis de manipular. Se existe capacidade que todos líderes afirmativos têm é a de saberem onde se encontram os gatilhos que manipulam cada ser, cada personalidade. Como ninguém, sabem puxá-los e premi-los para obterem o que pretendem.
Perante tal comportamento, gentes como António Costa, Ursula von der Leyen, Kaja Kallas, Montenegro, Starmer, Scholz, Macron ou Meloni (que agora promovem como uma nova Mussolini 2.0 em versão woke), ficam totalmente desarmados. Já não existe faz de conta. Das duas uma, ou seguem o líder ou são triturados. A outra opção é lutar, assumir uma alternativa. Trump obriga-os a assumir um comportamento e a deixar o pântano da indecisão, do salamaleque, do cinismo seguidista. Nenhum oportunista gosta de ser desmascarado desta forma. Nem para o bem, nem para o mal.
Como têm provado as administrações democratas, as atitudes brutais que os republicanos assumem são sempre mais tarde confirmadas e aprofundadas pelos democratas. Tal como fazem os partidos “social-democratas e socialistas” (agora todos “liberais”) na Europa, relativamente aos partidos assumidamente neoliberais, conservadores e reacionários. Os segundos abrem o caminho que mais tarde os primeiros consolidam, dizendo que não estão fazendo isto. No final, todos sabemos que ficamos mais pobres. E assim se cria a aparência de movimento que mantém tudo na mesma.
Esta não é mais do que a história do “policial bom – policial mau”. O papel dos Trumps e Bush é o de levar mais longe o destino manifesto, que é como quem diz, o alargamento do império, para que venham então os Clintons e Obamas como salvadores, e, por entre belas palavras de unidade, liberdade e democracia, normalizar a barbaridade que pretendiam e da qual retiraram vantagem. Falando em progresso, todos constatamos que vivemos numa sociedade mais violenta, mais empobrecida, mais atrasada, menos democrática.
Afinal, de que precisa o mundo senão da verdade? Seja ela brutal e opressiva, seja ela inaceitável ou desconfortável. Mas que seja a verdade e, nesse caso, Trump é muito mais fiel à verdade que Biden. Trump dá-nos a verdadeira face dos EUA, aquela que não é mascarada e obscurecida, ou abonecada, pelos discursos gobelianos do Partido Democrata. Até quando mente e conspira Trump nos diz a verdade, porque o faz com tanta presunção, imbecilidade e arrogância que se torna mais fácil desacreditar e desmontar o discurso. Trump nos mostra abertamente quem é o inimigo, dando nome e corpo ao monstro que se esconde por trás do globalismo liderado pelos EUA.