A etapa de deterioração fiscal no processo da crise econômica

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não consegue nascer. Nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.”

Gramsci

A crise econômica, anunciada na década de 60, visualizada claramente nos anos 70, transferida para a periferia do sistema capitalista nos anos 80 e 90 (crises da Argentina, do Brasil, da Rússia, Japão, etc.) e que atingiu o centro do capitalismo global, tornando-se aguda, em 2008, continua em processo.

Nesse processo, em que há avanços e recuos, a crise provoca uma deterioração fiscal que passou mais ou menos desapercebida e que, agora, transforma-se em séria preocupação para a economia burguesa, com perspectivas assustadoras para a classe trabalhadora.

Todos acompanhamos o que acontece na Grécia: o terrível pacote governamental de “austeridade fiscal”, projetado pela União Européia e pelo FMI, com o arrasador desmonte de já tradicionais direitos trabalhistas que eram patrimônio das conquistas populares gregas; a suposta ajuda financeira (diz-se suposta pois o dinheiro que entrar se destina ao pagamento dos credores, sendo que os principais são bancos franceses e alemães, seguidos de americanos e ingleses e quem pagará a conta são os trabalhadores gregos); e, a notável resistência do povo grego¸ a fenomenal capacidade convocatória e organizativa da central sindical PAME, liderada pelo heróico Partido Comunista da Grécia.

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Além do verdadeiro drama social, as medidas adotadas provocarão, segundo a revista The Economist (portanto insuspeita), queda de 5% na produção de bens e serviços até 2014 e o pagamento de juros aos credores pulará dos atuais 5% do PIB ao ano, para 8,4%.

Ao que tudo indica, a próxima bola da vez poderá ser tanto Espanha, quanto Portugal, Itália, Irlanda, Islândia, Bélgica, Inglaterra e, até, a sede do império, os EUA, tal a disseminação desta etapa do processo da crise.

Por que ocorre essa situação?

O gráfico abaixo foi publicado por The Economist com base em recente estudo do FMI.

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Pela imagem, nota-se que a dívida das chamadas economias avançadas se acelerou a partir de 2007. Nas duas décadas anteriores ela cresceu lentamente, passando de 60% a 75% do PIB. Agora, bastaram só três anos incompletos para atingir o patamar de 100% do PIB!

Quebrando os princípios neoliberais, os Estados tiveram de intervir na economia de seus países para evitar uma recessão similar à ocorrida nos anos de depressão que se seguiram à crise de 1929. Rios de dinheiro foram despejados dos cofres públicos para salvar bancos privados, seguradoras, corretoras e indústrias falidas como a GM. Os Estados, diante desse quadro, necessitam recuperar o dinheiro gasto e pagar os credores e vão jogar a conta daquela festa com o dinheiro público – que enriqueceu o setor privado – para os trabalhadores.

A crise humilhou os defensores do livre mercado e da auto-regulação das finanças. Agora¸ segundo ainda The Economist, querem uma revanche, propondo os já tristemente conhecidos remédios monetaristas. O FMI recomenda um grande choque fiscal global.

Já ouvimos tanto esse canto de sereia que chega a provocar náuseas! Mas, o risco de ser seguido é real. A Chanceler alemã, Angela Merkel, propõe que os países incapazes de reduzir o déficit público sejam apenados gradualmente até serem expulsos da zona do euro (pena máxima). Por sua vez, o indevidamente premiado com o Nobel da Paz, Barack Obama, constituiu, recentemente, uma Comissão Nacional de Responsabilidade Fiscal e Reforma, chefiada por parlamentares ligados ao sistema financeiro, e que tem, como um de seus objetivos, restringir programas de seguridade social. Portanto, é provável que o choque global, pretendido pelo FMI, se torne realidade.

A Folha de São Paulo de 10/05/2010 noticia que os bancos privados europeus estão a exigir que o Banco Central Europeu compre títulos dos estados da zona do euro que tenham déficit orçamentário. Com isso, os bancos privados evitam riscos de sofrerem calotes e garantem liquidez aos países devedores para pagar seus débitos junto aos próprios bancos privados. Ou seja, querem garantir os seus créditos com dinheiro público. Se o Banco Central Europeu aceitar a idéia, os contribuintes da zona do euro é que pagarão a festa para os bancos privados.

Esse quadro, uma vez tornado real, indica que haverá, necessariamente, um acirramento da luta de classes.

Uma das conseqüências da crise na zona do euro será o “fortalecimento” do dólar estadunidense. Mas isso não significa recuperação da economia americana, como a mídia certamente alardeará, e sim que a União Européia, na correlação monetária e cambial com os EUA, encontra-se em situação de desvantagem.

E o nosso Brasil, de lulas, tucanos e outros tantos animais indigestos, como se situa, no plano fiscal, nesse sombrio panorama global?

Segundo o governo, “nunca antes neste país” se esteve tão perto do paraíso.

Mas, a realidade é outra. Os números recentemente divulgados pelo Tesouro Nacional mostram que houve um aumento de mais de R$ 100 bilhões na dívida pública federal em 2009. Esse valor equivale aos R$ 100 bilhões emitidos pelo Tesouro Nacional para o BNDES enfrentar a falta de crédito provocada pela crise.

Segundo a Agência Brasil, a correlação entre dívida pública e PIB chegou a 42%, em março deste ano.

O FMI, em estudo sobre o necessário ajuste fiscal para a consolidação orçamentária pós-crise, publicou a seguinte tabela:

Fiscal adjustment (%of GDP) O ajuste fiscal (em% do PIB)

 

Public debt 2010

A dívida pública 2010

Structural primary budget balance 2010

Saldo orçamental primário estrutural 2010

Required adjustment in structural budget balance 2010-2030

Necessário ajuste no saldo orçamental estrutural 2010-2030

Grécia

130

-6.4

15.5

Portugal

83

-5.2

7.5

Espanha

64

-6.1

9.4

Irlanda

75

-8.7

13.5

Brasil

64

2.3

-1.0

Índia

81

-3.7

7.6

China

21

-2.7

2.9

Reino Unido

80

-9.6

10.4

E.U.A.

92

-8.0

10.6

Japão

229

-8.7

13,4

África do Sul

35

-3.4

3.8

Source: IMF

A dívida pública brasileira, segundo o FMI, em 2010, corresponderá a 64% do PIB, mesmo índice da já preocupante Espanha.

Por outro lado, a inflação brasileira acumulada em 2009 alcançou 4,1%, segundo dados do Banco Central.

O Tratado de Maastricht permite aos países da zona do euro atingirem os limites de 1,5% de inflação acima da média de três países com índices mais baixos de inflação e 60% de dívida pública em relação ao PIB. Além desses índices, os países da zona do euro podem sofrer sanções. Em março deste ano, 16 países da zona do euro tiveram um aumento de 1,5% em relação ao mesmo mês de 2008.

Se o Brasil pertencesse à zona do euro, estaria contrariando as regras monetárias européias, pois tivemos, em 2009, como já visto, 4,1% de inflação e há a previsão do FMI, para 2010, de 64% de dívida em relação ao PIB.

Portanto, pelos critérios financeiros internacionais, não vivemos no paraíso como trombeteia o governo. Se a essa situação financeira, que deve se agravar com os efeitos da crise européia, se acrescentar as condições de vida dos assalariados, endividados ao máximo, a péssima distribuição da riqueza, o aumento crescente da criminalidade, a diminuição de serviços de saúde, educação e segurança públicas, e os severos remédios apontados pelo FMI, podemos dizer que estamos à beira de um inferno “nunca antes visto neste país”.

*Militante do PCB (RS) e membro do seu Comitê Central.

Referências:

  1. Fundo Monetário Internacional: ”Estratégias para a consolidação orçamental a Pós-Crise Mundial”. 04 de fevereiro de 2010.

  2. Deutsche Bank Reseach: “Divida pública em 2020. A análise da sustentabilidade para a economia em MS e EM”. 24 de março de 2010.

  3. Folha de São Paulo. 5 e 10 de maio de 2010.

  4. Agência Brasil http://agenciabrasil.ebc.com.br

  5. Banco Central do Brasil http://www.bcb.gov.br/htms/relinf/port/2010/03/ri201003anp.pdf