Offshore Leaks: as caixas pretas do poder global
Vazamento inédito revela pontos obscuros da globalização, onde bancos e multinacionais misturam-se ao crime organizado, para se esconder das sociedades
Por Antonio Martins I Imagem: Connor Maguire, The honnest banker-gangster
Um facho de luz está iluminando o lado obscuro do poder global desde o início do mês, sem que os jornais brasileiros pareçam interessados em segui-lo. Após 15 meses de trabalho, uma equipe do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês) começou a publicar reportagens muito constrangedoras sobre os centros financeiros offshore, também conhecidos pelo termo eufemístico de “paraísos fiscais”. Por envolverem políticos e magnatas conhecidos do público, as revelações já estão provocando sobressaltos políticos em países tão diferentes como França (onde caiu o ministro das Finanças), Canadá, Indonésia, Filipinas, Venezuela, Rússia e Azerbaijão.
O trabalho do ICIJ tem como fonte um vazamento de informações extraordinário. Um operador anônimo, de uma instituição financeira que opera nas Ilhas Virgens britânicas, enviou a Gerard Ryle, diretor do Consórcio, um disco rígido de computador contendo 260 gigabytes de dados – 2,5 milhões de documentos, acumulados ao longo de trinta anos. Em volume, são 160 vezes mais dados que o material vazado, pelo Wikileaks, a partir do Departamento de Estado dos EUA. Por isso, o caso tornou-se internacionalmente conhecido como o “offshore leaks”. Uma equipe de 86 jornalistas, de 37 publicações (nenhuma brasileira…) analisou as informações e está produzindo as reportagens. É possível acompanhá-las, por exemplo, em seções especiais criadas no próprio site do ICIJ, mas também no Guardian, de Londres, e no Le Monde, de Paris.
A importância política dos documentos é proporcional a seu tamanho. Até o momento, estes jornais preferem destacar o lado mais vistoso das revelações: governantes, super-ricos e celebridades que escondem dinheiro em pontos longínquos do planeta, para sonegar impostos. Mas o que já foi publicado permite outra leitura, menos superficial. As praças offshore não podem mais ser vistas como ilhas tropicais paradisíacas, para onde flui a riqueza resultante de alguns negócios marginais. Elas são uma engrenagem fundamental no centro do capitalismo contemporâneo.
Primeiro, por seu próprio tamanho. Conforme estudos citados pelo ICIJ, os centros offshore acumulam depósitos estimados entre 21 e 31 trilhões de dólares – entre um terço e metade do PIB anual do planeta. Segundo, por sua própria constituição. As ilhotas pitorescas que compõem a galáxia do offshore são apenas a franja (e, num certo sentido, a fachada), numa vasta rede oculta em cujo centro está Londres – a principal praça financeira do mundo.
A geografia política de tal rede é descrita — numa entrevista que Outras Palavras publica também hoje — por Nicholas Shaxon, autor de obra recente e fundamental sobre o offshore: Treasure Islands: Uncovering the Damage of Offshore Banking and Tax Havens1. Ele explica: a grande teia do sistema financeiro nas sombras parte da capital britânica e articula-se por meio de dois núcleos intermediários, de onde se estende por todo o planeta. Um dos núcleos tem base em três ilhas do litoral inglês – Jersey, Guernsey e Man – e abre-se para Ásia e África. Outro, baseia-se nas Ilhas Cayman e Bermundas, voltando-se para as Américas.
A Grã-Bretanha articula a enorme estrutura de captação de recursos. Mas os Estados Unidos são o principal destino do dinheiro, prossegue Shaxon. Maiores devedores do planeta há décadas, os EUA abriram-se, a partir dos anos 1970, ao mundo offshore. Acostumaram-se a fechar suas contas externas, cronicamente deficitárias, atraindo também dinheiro de origem duvidosa – ao qual oferecem isenções fiscais e proteção legal.
É neste mundo de finanças ocultas e anonimatos, relata o ICIJ, que escondem e “lavam” (legalizam) seu dinheiro as grandes redes do crime organizado: máfias de distintas nacionalidades, políticos corruptos que se apropriam de recursos públicos, traficantes de seres humanos, beneficiários de caça proibida, escroques de todos os tipos. O esquema é conhecido. Quem precisa dar aparência de legalidade a uma soma obtida por meios ilícitos transfere-a para uma conta bancária offshore. Aproveita-se dos impostos muito baixos cobrados pelos “paraísos fiscais”. Mais tarde, reintroduz o dinheiro no país, na forma de crédito proveniente de uma instituição respeitável, com sede na Suíça, em Luxemburgo ou nas Ilhas Virgens. Quem irá investigar a origem primeira do dinheiro?
Mas o circuito que abastece o crime seria insustentável, continua Nicholas Shaxon, sem uma presença luxuosa: a das grandes corporações transnacionais. Praticamente todas as empresas com atuação internacional, relata ele, atuam offshore. Fazê-lo tornou-se quase obrigatório, na dinâmica que a globalização assumiu. Permite evasão sistemática de impostos, explicada na entrevista. A tal ponto que não operar offshore penalizaria as corporações eventualmente dispostas a respeitar seus sistemas tributários nacionais, obrigando-as a cobrar preços superiores aos das concorrentes.
Surge, aqui, um primeiro círculo de conveniências e cumplicidades. Se as transnacionais deixassem o circuito offshore, raciocina Shaxon, ele ira tornar-se rapidamente insustentável. Seria uma confraria frágil de milionários fora-da-lei, facilmente denunciável e desmontável. Sua força, e sua suposta honorabilidade, é transferidas pelas grandes corporações.
Por elas e, é claro, pelos bancos. Quase todas as instituições bancárias importantes, conta a reportagem do ICIJ, têm relações com a rede financeira das sombras. Por meio delas, tornam-se capazes de oferecer aos clientes premium a faculdade de ocultar dinheiro obtido legal ou ilegalmente – e de reintroduzi-lo no país, sempre que necessário.
Os bancos chegam a competir entre si, na oferta de serviços eficazes de ocultamento de recursos. Num documento vazado, o Crédit Suisse, com sede em Zurique e representações em todo o mundo (inclusive no Brasil, onde “patrocina” a Orquestra Sinfônica de São Paulo), é descrito como “o Santo Graal” da rede. Os procedimentos que adota nas transferências de recursos são tão “eficientes” – admira-se um operador offshore – que autoridades policiais ou bancárias eventualmente interessadas em descobrir a identidade de um depositante irão “deparar-se com uma muralha blindada”… Mas não se trata de um exemplo isolado. Reportagens do Der Spiegel e do Le Monde estão revelando como instituições “respeitáveis” como o Deutsche Bank (alemão), Banque National de Paris e Paribas (franceses), IMG e Amro (holandeses) envolveram-se no esquema.
Nem mesmo a crise iniciada em 2008 parece abalar o mundo financeiro clandestino. Segundo o ICIF, entre 2005 e 2010, os depósitos dos 50 maiores bancos do mundo mais que duplicaram, avançando de 5,4 para 12 trilhões de dólares. Este salto ajuda, aliás, a compreender o cenário global em que se alastra o universo offshore; e também o ambiente ideológico que o alimenta. Na última década, a desigualdade espalhou-se pelo mundo (com a exceção notável da América do Sul). Mesmo num país como os Estados Unidos, 400 pessoas detêm tanta riqueza quanto metade da população. O grupo restrito dos ultra-ricos formou o que o filósofo francês Patrick Viveret chamou de uma oligarquia financeira. Esta possível “nova classe” tem enorme poder econômico e político. Deseja ter mãos livres tanto para intervir nas decisões dos Estados nacionais quanto para driblá-las, quando contrariam seus interesses. Vê, numa galáxia financeira opaca, um instrumento extremamente funcional para preservar seus privilégios e ampliar seu poder.
É possível enfrentar o universo offshore? Do ponto de vista técnico, não faltam alternativas, explica Nicholas Shaxon. Os fluxos de recursos para os “paraísos fiscais” podem ser limitados tanto por tributação mais elevada – que inibe as transferências – quanto por restrições diretas dos Estados. O difícil, ressalta o autor de Threasury Islands, é enfrentar a força política da oligarquia financeira. Entre os grupos diretamente interessados em manter a situação atual estão banqueiros, grandes empresas, bancadas políticas corruptas e crime organizado.
A mídia exerce um papel central na resistência às mudanças. Os jornalistas dos meios tradicionais normalmente sabem muito pouco sobre finanças internacionais, observa Shaxon. Nas raras vezes em que escrevem sobre o tema, recorrem aos “especialistas do mercado financeiro” – precisamente os que mais têm interesse em que nada mude.
É sintomático que nenhum jornal, TV, rádio ou portal de internet brasileiro tenha dado destaque ao Offshore Leaks. Considere a participação dos bancos e das transnacionais em sua carteira de anunciantes…
Mas é animador que, em todo o mundo, o episódio tenha alcançado tanta repercussão. A crise financeira tornou as sociedades mais críticas. A vida de luxo e ostentação dos altos executivos é vista com desconfiança e desconforto crescentes. Muitos julgam-na uma afronta, diante do empobrecimento de vastos setores sociais.
Nunca houve condições tão favoráveis para abrir um debate sobre o assunto. Um sintoma é o fato de você estar lendo este texto, apesar do boicote da mídia brasileira sobre o tema…
1[Ilhas do Tesouro: revelando os danos dos paraísos fiscais e das finanças “offshore”, infelizmente ainda sem tradução em português – ler verbete na Wikipedia, ou comprar]
Muito mais que bucólicos “paraísos fiscais”
By Nicholas Shaxson
Autor de livro indispensável para entender finanças offshore sustenta: o sistema bancário das sombras ocupa o centro do capitalismo global
Por Nicholas Shaxon, entrevistado por Christophe Ventura, em Memoire des Luttes | Tradução: Inês Castilho
Um escândalo mundial – o Offshore Leaks – está revelando, desde o início de abril, a promiscuidade entre os mundos da política institucional, das finanças e da economia off shore, a grande rede dos chamados “paraísos fiscais”. Nesta entrevista, publicada originalmente em novembro de 2012, no site francês independente, “Memoire des luttes”, o jornalista investigativo e escritor Nicholas Shaxson ajuda a entender o que está em jogo.
Autor de um livro produzido a partir pesquisa profunda no mundo paralelo das finanças ocultas – Treasure Islands: Uncovering the Damage of Offshore Banking and Tax Havens1 –, Nicholas Shaxson escreve regularmente no “Financial Times” e no “The Economist”. Em sua obra de referência, ele lança uma nova luz sobre o papel da City de Londres e da rede formada pelas ex-colônias do Império Britânico na galáxia offshore.
Christophe Ventura: Em seu livro, você indica quantias exorbitantes (ativos bancários, investimentos diretos de multinacionais no exterior, frutos da evasão fiscal etc.) que transitam pelo sistema internacional dos paraísos fiscais. Segundo você, “mais da metade do comércio internacional (…) passa por ele”. Mas, na verdade, o que é um paraíso fiscal?
Nicholas Shaxson: Podemos explicar facilmente o que é um paraíso fiscal com duas palavras: “fuga” e “outro lugar”. Os paraísos fiscais possibilitam sonegar impostos, certamente, mas também fugir às leis penais, à regulação financeira, às obrigações de transparência etc. Em uma palavra, às responsabilidades civis e sociais. Eles isentam os ricos e as grandes empresas das restrições, dos riscos e das obrigações que a democracia exige de cada um de nós. A tributação é apenas um aspecto da questão.
A palavra “outro lugar” é igualmente crucial. Quem pretende fugir às suas responsabilidades, precisa colocar seu dinheiro (o próprio ou de sua empresa) em outro lugar. Daí a palavra “offshore”, literalmente, em Inglês “fora do país”. Assim, por exemplo, a legislação das Bahamas é concebida para atrair dinheiro não dos habitantes do arquipélago, mas de estrangeiros.
Qual é a função dos paraísos fiscais na arquitetura das finanças internacionais?
Os paraísos fiscais servem a vários objetivos. Seus apologistas dizem que eles permitem corrigir as “deficiências” do sistema financeiro internacional: graças a eles, o capital move-se mais rápido pela economia e enfrenta menos obstáculos. Uma imagem muitas vezes usada é a de grãos de areia numa máquina: os paraísos fiscais forneceriam o óleo que lubrifica o motor. Mas se você olhar mais de perto, tem uma perspectiva completamente diferente. Quais são esses “obstáculos” que supostamente desaceleram as finanças globais e as tornam menos “eficientes”? São os impostos, a regulação financeira e as obrigações de transparência – todas elas, coisas que têm uma boa razão de existir! Não se vê muito bem, por exemplo, como o sigilo bancário pode ser “eficiente”: ele é talvez bem conveniente para pessoas privadas, mas prejudica o sistema como um todo.
Você descreve um dos mecanismos a que recorrem as multinacionais: a “manipulação dos preços de transferência”. Do que se trata?
Os preços de transferência são um recurso usado pelas multinacionais para reduzir o valor dos seus impostos. Basicamente, permite transferir as receitas de uma empresa para um paraíso fiscal – onde ela não é tributada – e os custos para um país de forte tributação – onde eles permitem redução de impostos. Como procede uma multinacional? Manipulando os preços dos bens e serviços que as suas subsidiárias comerciam. Tomemos, por hipótese, o caso de uma máquina fabricada na França e vendida ao Equador, por meio das Bermudas. O preço de venta no Equador é de 2 mil dólares; os custos de produção, 1 mil dólares. A filial das Bermudas paga para a matriz francesa U$ 1001 dólares pela máquina, que é faturada em seguida à filial equatoriana por US$ 1998. A companhia francesa obtém, portanto, um dólar de lucro (1001-1000 = 1); a subsidiária equatoriana, 2 dólares (2000 – 1998 = 2), o que gera muito pouca receita tanto para o Estado francês como para o Estado equatoriano. Já a filial das Bermudas realiza ela um lucro de 997 dólares (1998 – 1001 = 997), que não é tributado. E pronto! Aí está como desaparece uma nota fiscal! A realidade é, naturalmente, mais complexa, mas o procedimento básico é esse.
O que é o Círculo Mágico Offshore?
Este é o nome dado a um pequeno grupo de escritórios de advocacia que dominam o setor financeiro “offshore”. Eles têm escritórios em múltiplos paraísos fiscais ao redor do mundo e são mestres na arte de elaborar montagens financeiras transnacionais, muito frequentes hoje em dia.
Você analisa a geografia política dos paraísos fiscais em escala internacional e apresenta ao leitor os vários grupos de “jurisdições de sigilo”. Na sua opinião há uma “teia de aranha” formada por três círculos, dos quais o mais importante e agressivo gravita em torno da City de Londres. Você desenvolve a ideia de que o sistema de paraísos fiscais teria uma filiação à história colonial britânica, mas também francesa. Do que se trata? Como funciona esse novo império financeiro? Qual é o papel atual da City de Londres no mundo “offshore”?
A Grã-Bretanha está no centro de uma rede de paraísos fiscais que abastece a City [distrito financeiro] de Londres de capital e lhe fornece um gigantesco volume de negócios. O primeiro círculo da teia é constituído do que é chamado de dependências da Coroa – Jersey, Guernsey e Ilha de Man –, cuja atividade principal são transações com os países da Europa, África, ex-URSS e Oriente Médio. O segundo círculo inclui territórios britânicos no exterior, incluindo as Ilhas Cayman e Bermudas, voltados principalmente às Américas do Norte e do Sul. Estas entidades (dependências da Coroa e territórios ultramarinos do Reino Unido) são parcialmente britânicos, parcialmente autônomos. A Grã-Bretanha se coloca em sua defesa, assegura a sua “boa governança” e seus governantes são nomeados pela rainha; em troca, sua política interna é independente. Além desses dois círculos, outros paraísos fiscais mantêm relações estreitas com a City de Londres, mas cortaram todos os laços institucionais com a antiga potência colonial. É o caso de Hong Kong, por exemplo. Essa rede de paraísos fiscais envolve o planeta: cada link “captura” o capital que transita por sua esfera geográfica e o envia para a City.
E os Estados Unidos?
Particularmente desde os anos 1970, os EUA têm adotado, de forma deliberada, uma legislação que assegura aos fundos estrangeiros o sigilo bancário e vários benefícios fiscais; isso atrai ao país trilhões de dólares de capital flutuante, proveniente do exterior. Certas infraestruturas “offshore” existem num ou noutro Estado norte-americano, mas os mais importantes são diretamente disponíveis em nível federal. Os Estados Unidos também dispõem de uma pequena rede de satélites, tais como o Panamá ou as Ilhas Virgens norte-americanas, mas essa rede nem se compara à britânica.
Ao mergulhar o leitor na história da evasão fiscal e financeira, você indica que o “verdadeiro Big Bang” teve lugar no final dos anos 1950, com a emergência dos eurodólares – dólares detidos fora dos Estados Unidos – e do euromercado. Você pode nos explicar melhor?
É uma longa história, muito emocionante. Resumindo, a City de Londres ofereceu aos bancos um novo ambiente, não regulamentado, que lhes permitiu, desde os anos 1950, contornar a regulamentação financeira estrita praticada nas fronteiras nacionais. Em última análise, graças a este playground “offshore”, Wall Street tem podido crescer extraordinariamente e recuperar todo o seu poder político: ele tem o controle sobre o aparelho de Estado dos Estados Unidos e convenceu o Legislativo de que a única forma de avançar é a que foi escolhida por Londres.
Você propõe enfrentar o “sistema offshore” e apresenta, para isso, diversas propostas específicas. Elas dizem respeito aos países ocidentais (incluindo o Reino Unido), assim como aos do Sul, ao tema das reformas tributárias e ao da luta contra a corrupção. Como seria, a seu ver, um sistema financeiro regulado pelas sociedades?
O sistema de Bretton Woods, praticado nos vinte e cinco anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, é o melhor exemplo de finanças bem regulamentadas, Sob sua égide, diversos países haviam introduzido controles de capital e controles de câmbio. Os intercâmbios financeiros e a especulação internacional eram severamente enquadrados. As taxas de imposto sobre a renda eram muito altas. Alguns hoje consideram esse período como a idade de ouro do capitalismo: o comércio era relativamente livre, mas não as finanças. Houve um forte crescimento econômico, poucas crises financeiras, e redução das desigualdades. É interessante notar que, recentemente, o FMI reconheceu que o controle do capital não era talvez uma ideia tão má…
O que um Estado nacional pode fazer para lutar eficazmente contra os efeitos nocivos das finanças “offshore”?
Não há receita mágica. A primeira coisa a ser feita é compreender bem o papel dos centros “offshore” na economia mundial. É necessário criar uma consciência nova. Em seguida, tomar uma série de medidas específicas – descrevo algumas em meu livro. Deve-se, por exemplo, estabelecer um sistema em que as multinacionais são tributadas em função de sua atividade econômica real, em vez de sua forma jurídica artificial e complicada. Em tal sistema, sua atividade nos paraísos fiscais não seria levada em conta. Se as multinacionais se retirarem dos paraísos fiscais, eles vão perder uma grande parte da proteção política de que desfrutam há anos.
A construção europeia, que tem como dois princípios fundamentais “a livre circulação dos capitais” e “a livre concorrência” não favorece também a “concorrência fiscal” e, portanto, a criação de novos paraísos fiscais dentro de suas próprias fronteiras (Luxemburgo, Países Baixos, Irlanda etc. ), ao lado dos “tradicionais” como a Suíça?
Certamente. Todo o mundo sabe que a Suíça é um paraíso fiscal, mas há outros na Europa: Luxemburgo, em particular, claro, o Reino Unido. A Áustria, os Países Baixos e a Irlanda também desempenham um papel importante. Sempre que a União Europeia tenta resolver o problema, ela enfrenta obstáculos políticos – e isso, desde que existe.
Os países emergentes como a China, a Índia e outros não vão também procurar se aproveitar das facilidades das finanças “offshore”?
Os paraísos fiscais beneficiam as elites ricas de vários países do mundo. Eles causam, sem dúvida, muito mais danos nos países em desenvolvimento do que nos países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E, sim, é verdade: as elites chinesas apoiam fortemente Hong Kong (e seu colaborador próximo, as Ilhas Virgens Britânicas), apesar das consequências desastrosas para o resto da população do país.
Nas conclusões do livro, você se dirige também à mídia. Qual é a sua mensagem para os jornalistas e especialistas?
Um consenso conseguiu se impor. E afirma que o sistema é “eficiente” e os paraísos fiscais são uma boa coisa. Comece por questionar este pressuposto. O assunto é tão complexo que muitas vezes, para explicar como as coisas funcionam, os jornalistas recorrem a “especialistas” – na maioria das vezes, os profissionais do “Big Four”, as quatro grandes empresas de auditoria. O problema é que essas empresas de auditoria têm como fonte de suas receitas ajudar seus clientes a sonegar impostos e outras obrigações fiscais. Seu ponto de vista é, portanto, enviesado em favor do sistema. Sempre que jornalistas recorrem a eles, sua visão de mundo perniciosa dissemina-se e coloniza cada vez mais as consciências.
Você considera que é possível atribuir, aos centros “offshore”, alguma responsabilidade nas dificuldades da zona do euro, do sistema bancário europeu e da Grécia?
Aqueles que, nos paraísos fiscais, fazem as leis, são sempre separados daqueles que sofrem suas consequências. Nunca há qualquer consulta democrática real quando essas leis são adotadas. O problema é que este não é apenas um ato deliberado. As coisas vão mais longe. Trata-se da própria essência dos paraísos fiscais. Suas leis são feitas por pessoas iniciadas por iniciados: pessoas que não prestam contas a ninguém, ao contrário do que a democracia exige. Os paraísos fiscais são máquinas legais de uso privado, quase cabines secretas. As conclusões a serem tiradas da recente crise financeira, como da próxima, deveriam ser bastante óbvias.