Origem e declínio do capitalismo
Retorno à origem
Em certos rituais funerários de tempos remotos os mortos eram colocados em posição fetal. Encontraram-se por exemplo restos de homens do neandertal sepultados dessa maneira com a cabeça a apontar para o Oeste e os pés para o Leste. Algumas hipóteses antropológicas sustentam que essa disposição do cadáver se relacionava com a crença no renascimento do morto. A civilização burguesa à medida que avança a sua senilidade parece reiterar esses ritos. Preparando-se para o desenlace final aponta a cabeça para a sua origem ocidental e vai acomodando o corpo degradado procurando recuperar as formas pré-natais, tentando talvez assim conseguir uma vitalidade irremediavelmente perdida.
O fim e a origem aparentam convergir, mas o ancião não consegue voltar ao passado e sim, antes, reproduzi-lo de maneira grotesca e decadente. Rumo ao final do seu percurso histórico o capitalismo volta-se prioritariamente para as finanças, o comércio e o militarismo no seu nível mais aventureiro “copiando” seu início quando o Ocidente conseguiu saquear recursos naturais,sobre-explorar populações e realizar genocídios acumulando desse modo riquezas desmesuradas em relação ao seu tamanho. Isso lhe permitiu expandir seus mercados internos, investir em novas formas produtivas, desenvolver instituições, capacidade científica e técnica. Em suma, construir a “civilização” que levou Voltaire a dizer: “a civilização não suprime a barbárie, aperfeiçoa-a”.
A decadência do mundo burguês de certo modo imita a sua origem, mas não o faz a partir de um protagonista jovem e sim decrépito e num contexto completamente diferente: o da gestação era um planeta rico em recursos humanos e naturais disponíveis, virgem do ponto de vista dos apetites capitalistas. O actual é um contexto saturado de capitalismo, com fortes espaços resistentes ou pouco manejáveis na periferia, com numerosos recursos naturais decisivos em rápido esgotamento e um meio ambiente global desarranjado.
Fim de ciclo. Decadência: do capitalismo industrial ao parasitismo.
Toda a história do capitalismo é atravessada por numerosas crises de curta, média e longa duração, de gestação, de nascimento, de crescimento, de maturidade, de decadência, sectorial, pluri-sectorial, geral, etc. A actual conjuntura global costuma ser descrita empregando o termo crise (do neoliberalismo, financeira, sistémica, do capitalismo, de civilização…). Trata-se realmente de uma crise ou de algo mais? Encontramo-nos perante uma turbulência devastadora ou não tão truculenta mas anunciadora de uma nova ordem mundial capitalista, ou seja, de uma regeneração sistémica ou antes do canto do cisne de uma civilização caduca? No primeiro caso cabia falar de crise de reconversão, de destruição criadora no sentido shumpeteriano, no segundo poderia em princípio ser definida com uma só palavra: decadência.
Os conceitos de crise e decadência são ambíguos, o seu uso não resolve completamente as interrogações que coloca a descrição da realidade actual. Em geral falamos de crise quando enfrentamos uma turbulência ou perturbação importante do sistema social. O conceito de decadênciacostuma ser associado à ideia de irreversibilidade, de trajectória iniludível, de caminho mais ou menos lento, acidentado ou calmo, rumo à extinção, rumo ao final. Contudo, a história mostra tanto longos processos de declínio que culminam com o fim de uma sociedade ou civilização como fenómenos vistos como decadências mas que em algum momento se convertem em renascimento, no início de uma segunda juventude. Sobretudo durante certos períodos de transição cultural onde se combina o velho dominante mas ainda hegemónico com o novo ascendente ainda que suportando derrotas, fracassos próprios das experiências demasiado jovens, demasiado dependentes do “senso comum” estabelecido pelas antigas verdades capazes de sobreviver durante muito tempo ao seu crescente divórcio com a realidade.
Muitas vezes uma crise prolongada atravessada por turbulências que se vão sucedendo umas após as outras formando uma continuidade de calamidades surge como um mundo que se arruína quando pode chegar a ser a oficina de forja de uma nova era. A chamada “longa crise do século XVII” que afectou a Europa e que se foi convertendo gradualmente na base de lançamento planetário da modernidade ocidental foi vista por boa parte dos seus contemporâneos mais lúcidos como uma época de desastres e decadência universal.
Essa visão prolongou-se até estar bem avançado o século XVIII, quando a emergência do iluminismo, da ideologia do progresso, do culto àRazão, combinaram-se nas elites do Ocidente com o fantasma da decadência, simbolizado pelo declínio do império romano. Em 1734 Montesquieu publicava suas “Considerações acerca das causas da grandeza e decadência dos romanos” e curiosamente, em 1776 na Inglaterra, onde começava a Revolução Industrial enquanto Adam Smith publicava a primeira edição de “A riqueza das nações” estabelecendo as bases teóricas do capitalismo liberal nascente, marcando o avanço optimista do racionalismo burguês, Edward Gibbon publicava a primeira edição da sua“História da decadência e queda do Império romano” dilatando o espaço das visões pessimistas das elites tradicionais da Europa angustiadas pelo declínio do universo cultural e institucional das aristocracias.
Não é excessivo recordar aquilo que poderíamos qualificar como obsessão e nostalgia plurisecular recorrente da cultura ocidental quanto à grandeza da Roma imperial, da sua duradoura “pax romana” ou dominação “universal” (do “universo” colonial possível nessa época com centro no Mar Mediterrâneo). Desde a tentativa de restauração do império vários séculos depois do seu derrube com a proclamação em Roma de Carlos Magno no ano 800 (e em consequência do extinto Império Romano do Ocidente ), seguindo com o Sacro Império Romano Germânico (o “Primeiro Reich”) no século posterior, chegando aos delírios imperiais-romanos do imperador Napoleão, continuando com o Kaiserreich (“Kaiser” derivado do César romano) ou “Segundo Reich” da Alemanha a partir de 1871 radicalizado a seguir por Hitler como “Terceiro Reich”, a Itália fascista proclamada por Mussolini como Terceira Roma (a “Terza Roma” herdeira da Roma Imperial e da Roma papal ) e naturalmente falangistas, nazi e fascistas a saudarem com o braço ao alto, a saudação romano imperial, para chegar finalmente (por agora) às elucubrações durante a década passada acerca da Pax Americana imaginada pelos falcões de George W. Bush como uma espécie de reedição em escala planetária do Império Romano tal como propuseram na altura textos influentes no primeiro círculo do poder dos Estados Unidos autores como Robert Kaplan [1] .
Mas a nostalgia imperialista não pode prescindir do temor oculto que esconde por baixo da euforia, porque o esplendor escravocrata anunciava a sua decadência, seus luxos parasitários que resultavam da incessante expansão do sistema converteram-se no veneno mortal, a droga alentou a sua ruína. Como assinalava Juvenal: “O luxo, mais insidioso que o inimigo estrangeiro, apoia-nos sua mão pesada, vingando o mundo que conquistámos” [2] . A extravagante literatura que proliferou nos princípios do século XXI alentada pelo triunfalismo dos falcões do Império desenvolvendo paralelos entre Roma (dos césares) e Washington (de Bush) fê-lo em paralelo com a aparição de numerosos textos relativos à decadência romana – muitos deles a estabelecerem semelhanças com as potências ocidentais, principalmente os Estados Unidos.
A longo crise do século XVII foi uma enorme trituradora histórica de velhas estruturas e mentalidades, gerando o declive das monarquias absolutistas do Ocidente e mais adiante favorecendo a ascensão do capitalismo industrial a partir de uma crise de nascimento, do parto turbulento, dramático, do mundo moderno, entre fins do século XVIII e princípios do XIX, marcado pela revolução industrial na Inglaterra, pela Revolução Francesa, pelas guerras napoleónicas, pela Restauração, etc.
Muito tempo depois a Europa viveu uma crise relativamente longa entre 1914 e 1945. Foi pensada pelos bolcheviques como o declínio universal do capitalismo que abrir as portas à sua superação revolucionária, socialista-comunista. Na realidade, tratou-se de um processo complexo que combinava elementos incipientes de decadência, significativos mas insuficientes para forma constituir uma avalancha global imparável, com outros de recomposição, de rejuvenescimento como a intervenção estatal na economia, a massa de invenções, de ideias técnicas que se foram transformando em inovações abrindo um novo horizonte social e sobretudo a presença dos aparelhos militares em expansão conjugando potência e acção destrutiva com multiplicadores do consumo, o investimento e a renovação tecnológica da produção civil (keynesianismo militar).
Os comunistas dos anos 1920 subestimavam a capacidade de recomposição do mundo burguês mas a extrema-direita, os fascistas dessa época, super-estimavam-na pois atribuíam-lhe uma esperança de vida demasiado prolongada. É assim que Mussolini proclamava triunfalista num artigo de Janeiro de 1921: “o capitalismo está agora apenas no início da sua história”, capítulo no qual o novo autoritarismo fascista projectava cumprir um papel decisivo, refundador, recuperando as raízes mais brutais do sistema. O Duce assim o sintetizava perante a Câmara de Deputado italiana alguns meses depois: “a verdadeira história do capitalismo começa agora… há que abolir o Estado colectivista, tal como a guerra nos transmitiu pela necessidade das circunstâncias e voltar ao estado manchesteriano” [3] . Disciplinamento ditatorial da força de trabalho e liberdade total para os capitalistas.
Contudo, o sistema não podia regressar ao século XIX. Seus bloqueios estruturais obrigavam-no a utilizar a intervenção estatal na economia para desenvolver novos espaços de rentabilização como a indústria de guerra e as grandes obras públicas. O que se começava a instalar não era o velho capitalismo liberal do século XIX e sim a sua tábua de salvação militarista, intervencionista, que na sua primeira etapa europeia durante os anos 1920-1930 assumiu a forma de mutação ideológica do liberalismo para o totalitarismo fascista sob o guarda-chuva legitimador da “comunidade nacional” esmagando os “interesses sectoriais” dos de baixo. Como assinalava Horkheimer, “a ideia de comunidade nacional (a “Volksgemeinschaft” dos nazis), erguida como objecto de idolatria não podia em última análise ser sustentada senão por meio do terror. Isto explica a tendência do liberalismo a derivar rumo ao fascismo” [4] .
A recomposição estatista (keynesiana) do capitalismo central, emergida da Segunda Guerra Mundial, teve uma era dourada de apenas um quarto de século (aproximadamente 1945-1970). A seguir iniciou-se uma sucessão de turbulências que duram até o presente.
Mais adiante, a partir dos anos 1980, surgiu o que os meios de comunicação anunciavam como recomposição neoliberal do sistema. Contudo, os dados frios demonstram que para além do barulho mediático optimista se verificava uma deterioração sistémica que se aprofundava com o decorrer dos anos. As taxas de crescimento produtivo global, principalmente nos países centrais, foram-se reduzindo em termos de tendência a longo prazo, a economia mundial foi-se financiarizando até que em finais da primeira década do século XXI a massa financeira global equivalia a vinte vezes do Produto Bruto Mundial. Os estados, as empresas e os consumidores dos países ricos endividavam-se vertiginosamente até ficarem esmagados pelas dívidas.
Esta longa degradação tem todas as características de uma decadência – lenta se a medirmos segundo os ritmos do século XX. Trata-se de uma trajectória de aproximadamente quatro décadas cujo arranque pode ser situado no período 1968-1973/74. A partir daí a expansão do capitalismo global combina-se com a deterioração das suas componentes fundamentais que vão sendo encobertas pelo parasitismo financeiro e consumista, por uma militarização desestruturante e onde a dinâmica tecnológica está no centro de uma depredação sem precedentes dos recursos naturais. O percurso não atinge um ponto de regeneração e sim, muito pelo contrário, por volta dos anos 2007-2008-2009 produz-se um verdadeiro salto qualitativo e a decadência radicaliza-se convertendo-se num fenómeno de auto-destruição.
Decadência geral do sistema e não crise longa nem de crescimento como ocorreu na Europa no século XVII e entre fins do século XVIII e princípios do XIX. Tão pouco aparecem, como no período 1914-1945, manifestações de declínio mescladas com outras de recomposição marcadas pelo declínio da Europa centro-ocidental e a ascensão dos Estados Unidos.
Em relação a este último é necessário assinalar que do ponto de vista da dinâmica do capitalismo mundial a China dos princípios do século XXI não é o equivalente dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. A economia chinesa é periférica em relação às potências centrais, seu desenvolvimento depende da sua estrutura industrial-exportadora atada aos seus principais clientes: os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, compradores do grosso das suas exportações que constituem aproximadamente a metade da sua produção industrial e em consequência cerca de 25% do seu Produto Interno Bruto.
Ela o faz a partir da sua mão-de-obra barata, o que permite a essas potências sobre-explorar de maneira directa e indirecta uns 230 milhões de operários industriais e um leque ainda mais vasto de trabalhadores chineses. Acumula mais de 3,5 milhões de milhões de dólares de reservas, montanhas de papeis de valor futuro incerto, o endividamento estatal e empresarial cresce vertiginosamente e sua economia está plenamente integrada no emaranhado financeiro global que provoca impacto no seu interior, gerando bolhas especulativas, distorções inflacionárias, corrupção institucional [5] .
O seu desinchar actual, em acordo com o estancamento dos centros imperiais, é inevitável e as tentativas das autoridades para suavizá-lo, contê-lo dentro de limites manejáveis, chocam-se cada vez mais com uma configuração social elitista que bloqueia a expansão do mercado interno. A isto acrescenta-se a rigidez de estruturas transnacionais transnacionalizadas, incorporadas a redes comerciais e financeiras globais, tecnologicamente modeladas pela procura dos países ricos cuja reconversão à procura local constitui uma espécie de quadratura do círculo.
Enquanto isso a China saiu da existência marginal e miserável a que a havia condenado a decadência do velho império e a colonização ocidental e hoje dispõe de um potencial industrial, científico-tecnológico, militar, etc (produto dos processos de desenvolvimento iniciados há pouco mais de seis décadas) que a converte num protagonista decisivo das futuras turbulências internacionais.
A visão de uma China ” mais desenvolvida” pode ser estendida ao conjunto da periferia, em especial seus grandes países como a Índia, Brasil ou Rússia e a outros de menor porte como a África do Sul, Argentina ou Venezuela, o que conduz inevitavelmente em direcção ao campo das ilusões em torno da renovação do capitalismo global a partir da periferia, do seu arranque positivo em relação à decadência ocidental (e japonesa). Mas os dados sobre a China, Índia, Brasil, Rússia, etc, mostram a integração dessas economias à rede financeira global centrada nos espaços especulativos do Ocidente. E apesar de ser certo que as economias periféricas emergentes continuam a crescer, não é menos certo que o seu crescimento se vai desinchando. Isso acontece com uma defasagem temporal que se vem sustentando durante o último lustro, mas que poderia ser corrigida proximamente de maneira abrupta.
Ainda que este esclarecimento deva ser associado ao facto de que se verificou uma mudança significativa na geografia económica mundial, sobretudo ao longo da última década. Portanto, agora uma parte significativa da periferia apresenta níveis relativos de desenvolvimento industrial, militar, urbano, etc que a tornam menos submissa à hierarquia global tradicional do capitalismo, mais independente do ponto de vista político. Medida em “paridade de poder de compra”, a soma dos PIB de três países periféricos – Brasil, Índia e China – hoje é equivalente à das grandes economias ocidentais (Inglaterra, França, Canadá, Itália, Alemanha e Estados Unidos) e o comércio entre os países do Sul é quase igual ao que existe entre os países do Norte.
O futuro agravamento da deterioração do capitalismo global abre portanto importantes espaços de autonomia na periferia, que agora conta com bases produtivas e culturais que lhe poderiam permitir atravessar com maior facilidade as barreiras burguesas e defender-se de eventuais agressões externas. Pensemos por exemplo na onda de movimentos sociais e nos crescimentos produtivos da América Latina na última década, na China passando de 50 milhões para 230 milhões de operários industriais num quarto de século, numa periferia onde as comunicações expandiram-se exponencialmente: a massificação da Internet em princípios da década passada era uma marca característica dos países centrais, mas actualmente na periferia os utilizadores de Internet superam as 1500 milhões de pessoas contra pouco mais de 600 milhões nos países centrais.
Isto nos leva ao primeiro indicador da decadência global: o declínio sem substituição à vista do centro dominante (ocidental) do sistema. A integração (política, militar, financeira, etc) das grandes potências capitalistas em torno dos Estados Unidos moldou uma espécie de imperialismo colectivo que só um grau muito avançado da decadência poderia chegar a desfazer. Por outro lado, nenhuma das economias importantes da periferia está em condições de ser converter em super-potência imperialista planetária. Fica colocada a possibilidade teórica de um capitalismo mundial sem centro imperialista, ou seja, sem um amo capaz de impor regras de jogo ao conjunto do sistema diante do qual estas regras seriam o resultado de uma espécie de idílica harmonia universal. Desse modo, uma formação social essencialmente autoritária conseguiria funcionar de modo democrático no plano internacional estabelecendo regras de jogo minimamente estáveis: um verdadeiro milagre histórico. A outra alternativa seria a do funcionamento do sistema sem regras de jogo estáveis a reproduzir-se positivamente em meio ao caos: um milagre histórico ainda maior.
A este indicador decisivo é possível acrescentar outros como a tendência (desde os anos 1970 até o presente) à desaceleração do crescimento global, a hipertrofia (hegemónica) as redes financeiras cuja expansão entrou no nível da metástase invadindo-degradando a totalidade do sistema global, a evidência de rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica que submetida à dinâmica do capitalismo parasitário vai-se convertendo num factor de destruição líquida de forças produtivas, o estancamento ou declínio na extracção de recursos naturais não renováveis decisivos (como por exemplo o petróleo), a decadência do estado burguês, sua transformação nos países centrais num aparelho manipulado por bandos mafiosos, a desintegração social no centro, principalmente nos Estados Unidos.
As diferentes “crises” das últimas quatro décadas ficam portanto inscritas num processo de decadência sistémica de longa duração. A última crise iniciada em 2007-2008 inaugurou uma etapa em que a decadência experimenta um gigantesco salto qualitativo. A tendência iniciada nos anos 1970 para a redução das taxas de crescimento económico global começa a bater no piso: o fatídico crescimento zero. Ele já chegou para a União Europeia, para o Japão que depois de atravessá-lo agora navega na recessão e para os Estados Unidos, esgotam suas últimas artimanhas financeiras. As reactivações são cada vez mais custos e menos eficazes.
Os países centrais já se encontram a percorrer uma nova etapa em que o desemprego em grande escala, a concentração acelerada de rendimentos e o desmantelamento de tecidos produtivos passam a ser aspectos “normais” da sua vida económica e onde os discursos acerca de uma futura recomposição perderam toda a credibilidade. O que parecia ser uma fanfarronada de especialistas quando em Agosto de 2012 o banco francês Natixis anunciava que “a crise na zona euro pode durar até vinte anos” surge hoje como um prognóstico relativamente realista [6] . O que não parece realista é supor que a “zona euro” poderia sobreviver como espaço monetário comum durante duas décadas de contracção económica permanente, salvo se a referência futurista à “zona euro” limitar-se ao espaço geográfico.
É necessário ir mais além da economia integrando-a à totalidade social, o que nos permite descrever estratégias, interacções perversas entre estruturas militares, financeiras, mediáticas, religiosas, parlamentares, etc das potências centrais, ou seja, mecanismos de reprodução do sistema cujos manipuladores submergem-se no pântano do desespero, da psicologia do náufrago sem esperança. O capitalismo global bloqueado do ponto de vista económico elabora e põe em execução estratégias político-militares de rapina periférica destinadas a apropriar-se e explorar intensamente até ao esgotamento o conjunto de recursos naturais do planeta e espremer até a sua extinção os mercados periféricos compensando assim a redução dos benefícios produtivos e dos mercados internos centrais. A apontar contra a maior parte do território global e uma população de vários milhares de milhões de pessoas que o habitam, a referida estratégia ameaça provocar o maior desastre humano e ambiental da história.
Seria a liquidação a periferia, devorada numa poucas décadas. Mas a história do capitalismo, desde a sua origem, é a da articulação imperialista entre centro e periferia. Sendo esta última a base central na reprodução ampliada da civilização burguesa, a sua destruição integral equivaleria à anulação de um pilar decisivo do sistema. Mais ainda: se visualizarmos o “centro” e a “periferia” como formas específicas da totalidade capitalista mundial (não há desenvolvimento no centro sem subdesenvolvimento na periferia) a anulação do subúrbio global, sua transformação num caos não é o esmagamento de uma realidade externa e sim de um espaço inferior interno estreitamente inter-relacionado com os níveis superiores do sistema global através de um conjunto de redes visíveis e invisíveis, de infinitas inter-penetrações. A destruição [portanto] é a auto-destruição do mundo burguês, da sua história, de subsistemas decisivos para a sua reprodução.
A destruição do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria, do México e das próximas vítimas pode chegar a ser pensada pelos membros mais duros das elites imperiais como uma auto-destruição parcial, sacrifício necessário para a sobrevivência do sistema. Nesse caso, encontramo-nos perante um pensamento delirante, uma profunda crise de percepção da realidade cindida artificialmente entre dois planetas: o próprio, humano, desenvolvido, e o outro, simiesco, inferior, subdesenvolvido, condenado a perecer. Mas as estratégias imperiais não se limitam a circular pelo mundo imaginário, golpeiam o mundo real e ao fazê-lo desestruturam o sistema na sua totalidade: a destruição da periferia converte-se em auto-destruição do capitalismo como totalidade universal.
As origens: do parasitismo ao capitalismo industrial
O Ocidente iniciou sua corrida imperial com uma primeira arremetida que terminou em fracasso. Ao despertar o segundo milénio produziram-se paralelamente fenómenos cuja interacção criou as bases para uma grande transformação social. As cruzadas foram a primeira tentativa séria, em grande escala, de ocupação e saqueio colonial de um espaço rico e o seu longo desenvolvimento engendrou mudanças e ampliações significativas das actividades militares. Por outro lado, redes de mercadores e banqueiros começaram a instalar-se implantando embriões de capitalismo.
Na mesma época, impulsionado por um sector “modernizador” da igreja, os monges cisterciences, desenvolveu-se um conjunto de inovações técnicas que alguns historiadores qualificam como “primeira revolução industrial”. Elas causaram transformações da produção agrícola em espaços limitados da Europa ocidental (introdução do moinho hidráulico, do arado metálico, difusão de melhoras de sementes, etc). Também foram dados importantes passos estabelecendo elementos embrionários para futuros desenvolvimentos da ciência moderna. Um dos seus capítulos decisivos foi a dessacralização da “natureza”, sua percepção como realidade externa, hostil mas que podia ser racionalizada, controlada, explorada, base das grandes revoluções tecnológicas do capitalismo… e do desastre ambiental que agora experimentamos [7] .
Encontramo-nos assim perante o desdobramento de uma grande transformação cultural apoiada no militarismo colonial e em emergências comerciais e financeiras, engendrando desenvolvimentos técnico-produtivos, ideológicos, etc. A ascensão do parasitismo colonial, militar, comercial e financeiro começava a produzir modernidade burguesa.
Mas as cruzadas foram derrotadas. A expansão colonial em direcção ao rico Médio Oriente foi contrariada pela resistência das vítimas, frustrando o saqueio. Por outro lado, os esforços e êxitos iniciais dos saqueadores havia desordenado a sua retaguarda: a cristandade ocidental (o espaço imperialista). A combinação desses processos gerou no Ocidente um retrocesso produtivo geral, lutas intestinas, a deterioração do sistema alimentar e do estado de saúde da população. Tudo isso culminou em meados do século XIV com a “peste negra”, epidemia que se expandiu facilmente numa sociedade frágil atravessada pela fome e causou uma gigantesca queda demográfica.
Esse mega desastre significou a sepultura do feudalismo que vinha sendo desestabilizado pela sua expansão interna e externa. Isso incluiu o seu sistema militar: o ano 1348 é o do início da peste negra mas em 1346 verificou-se a batalha de Crecy onde a cavalaria francesa com as suas imponentes e pesadas armaduras, força blindada aparentemente invencível, foi derrotada pela infantaria inglesa assinalando o ocaso da velha configuração social [8] [NT] .
Mas a segunda arremetida colonial teve êxito. A sucessão de ondas de pilhagem e controle da periferia iniciada no século XV culminou, quase quinhentos anos depois, com a dominação total do planeta. Os pilares sobre os quais se instalou a modernidade foram em primeiro lugar a depredação periférica que potenciou a expansão comercial e financeira e, apoiado por esta última, o desenvolvimento das estruturas militares, sua renovação técnica, parte essencial do desenvolvimento de estados despóticos. Foi esse complexo colonial, estatal, militar, comercial e financeiro o pai da modernidade burguesa, acumulando riquezas, destruindo estruturas sociais internas e criando mercados prósperos, açambarcando terras, expulsando camponeses para as cidades, formando desde fins do século XVIII massas de pobres urbanos, mão-de-obra barata do capitalismo industrial. Historicamente não foi o capitalismo produtivo (e a cultura burguesa em geral) o berço do estado moderno, do militarismo e das finanças e sim exactamente o inverso.
Com toda razão, Robert Kurz referia-se às “origens destrutivas do capitalismo” colocando o desenvolvimento militar como o disparador da modernidade [9] . O “Arsenal de Veneza”, fábrica militar avançada do século XVI sem cuja existência é impossível explicar o resultado da batalha de Lepanto, ou seja, a vitória estratégica do Ocidente sobre o Império Otomando, foi uma das escolas mais importantes de organização industrial. Suas inovações em matéria de divisão e programação do trabalho assentaram as bases da produção capitalista.
Mas junto ao senhor da guerra, à monarquia despótica, encontrava-se o banqueiro, por sua vez ligado a negócios comerciais. Exemplo: a Casa Fugger, facilitando fundos ao imperador Carlos I e seu descendente Felipe II, titulares de um vasto sistema colonial.
A revolução industrial chegará mais de dois séculos depois, disposta sobre um enorme excedente (surplús) histórico [10] que foi não só acumulação de riquezas coloniais como também disciplinamento social por parte do estado e do seu dispositivo militar.
Desta vez o parasitismo pôde parir capitalismo com tanto êxito que conseguiu ocultar a memória das suas origens e desse modo instalar armadilhas ideológicas destinadas não só a construir legitimidade produtivista como também para confundir tanto os seus partidários como os seus inimigos.
Uróboros.
O mito de uróboros, da serpente que se devora a si mesma atravessa várias civilizações desde a Grécia Clássica até o Antigo Egipto, chegando ao Ocidente medieval. Fundamenta-se na ilusão conservadora de que a serpente começa devorando sua cauda e ao fazê-lo vai regenerando seu próprio corpo num jogo infinito onde o começo é ao mesmo tempo o fim e vice-versa, consumando-se o eterno retorno, a imortalidade do mundo. O mito pareceria encontrar uma referência concreta em casos observáveis desse animal a alimentar-se e suicidar-se ao mesmo tempo. O espectáculo é aterrador.
A confrontação entre o mito e a sua referência real sugere a reflexão em torno do que poderia ser qualificado como “armadilha de uróboros”: a civilização burguesa, tal como outras civilizações anteriores em decadência, considera que devorar uma parte mais longínqua, menos próxima da cabeça imperial, recupera forças e dinamiza seu funcionamento. Não experimenta nenhuma sensação de horror, não se angustia e sim, muito pelo contrário, provisoriamente sente-se melhor, melhora a sua auto-estima fundada no esmagamento e pilhagem dos fracos. Para que se ponha em marcha e avance o processo de suicídio é necessário que o suicida realize uma espécie de ruptura psicológica com a parte do seu corpo que está a ser sacrificada. A cauda deixa de ser cauda ou, talvez, passa a ser a cauda de outro animal. A periferia deixa de ser periferia do sistema e converte-se em outro universo, seus habitantes deixam de ser seres humanos. A realidade afasta-se da cabeça, a crise de percepção converte-se em loucura suicida.
O fenómeno tem antecedentes na história do sistema, nos seus mecanismos de reprodução desde as suas origens mais longínquas, atravessando suas etapas mais prósperas.
Dito de outro modo, debaixo das revoluções culturais e produtivas da modernidade, do progresso no seu sentido mais amplo, podemos encontrar pistas que nos conduzem ao actual processo de auto-destruição sistémica global. A dissociação homem-natureza, fundamento das revoluções técnicas da modernidade, converte-se finalmente em degradação ambiental planetária. A exploração imperialista da periferia, interacção desenvolvimento-subdesenvolvimento como motor histórico da expansão global de forças produtivas tende agora ao extermínio de sociedade e recursos naturais, as finanças impulsionadoras de mercados e investimentos industriais transforma-se em devoradora de tecidos produtivos e capacidades de consumo, etc.
O mito de uróboros exprimiu-se na tradição europeia-nórdica como Jörmungander, uma gigantesca serpente cujo crescimento, numa das versões do tema, leva-a a rodear completamente o planeta até chegar à sua própria cauda iniciando-se a autofagia apresentada como o resultado inevitável do êxito do processo expansivo. Este encontra o limite superior, o máximo nível de expansão, não como fronteira externa ao monstro e sim como auto-bloqueio. A solução para a tragédia não passa por persuadir a serpente, totalmente decidida a seguir o rumo escolhido inscrito na sua dinâmica de desenvolvimento, e sim na metamorfose – a transformação radical da besta num ser diferente. Não há outro capitalismo possível, o que abre a perspectiva do pós-capitalismo e instala dramaticamente a sua necessidade histórica.
(1) Robert Kaplan, ” El retorno de la Antigüedad” , Ediciones B, Barcelona, 2002.
(2) Juvenal, Satiras, Editorial Gredos, Madrid, 1991, Satira VI.
(3) Angelo Tasca, “El nacimiento del fascismo”, pp. 152-153, Crítica, Barcelona, 2000.
4) Max Horkheimer, “Éclipse de la Raison”, pp. 29-30, Payot, París, 1974.
(5) Os dados estatísticos aqui assinalados apoiam-se em números dos anos 2011 e 2012.
(6) Natixis, ” The euro-zone crisis may last 20 years “, Flash Economics-Economic Research, August 16th 2012 – Nº 534
(7) Jean Gimpel, “La révolution industrielle du Moyen Age”, Éditions du Seuil, Paris, 1975.
(8) A batalha de Crecy constituiu um acontecimento decisivo mas não foi a primeira da série. Em 1302 as milícias populares de Courtrai (Bélgica) haviam derrotado a pé, com chuços e lanças, a cavalaria feudal do Conde de Artois. A cavalaria feudal foi-se desmoronando gradualmente, golpeada por uma realidade social em transformação. Em 1415, a batalha de Agincourt, onde novamente a cavalaria francesa foi aniquilada pela infantaria inglesa, encerra definitivamente o ciclo militar do feudalismo. O processo desenvolveu-se ao longo do espaço europeu durante algo mais de um século. Exemplo: a infantaria suíça derrotou a golpes de machado (uma alabarda com mais dois metros de comprimento) a cavalaria austríaca em Morgarten (1315), Laupen (1339), Sempach (1386).
(9) Robert Kurz, “Los orígenes destructivos del capitalismo”, 1997,
www.oocities.org/pimientanegra2000/kurz_origen_destructivo_capitalismo.htm
(10) Anouar Abdel Malek, “Political Islam”, Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978.
[NT] Caso análogo ao da batalha de Aljubarrota, em que a infantaria portuguesa derrotou a cavalaria castelhana. Ver artigo do General Vasco Gonçalves: A Revolução de 1383-85
[*] Professor da Universidade de Buenos Aires. Comunicação apresentada na jornada internacional “CHAVEZ SIEMPRE” Crisis mundial y agresiones imperialistas: Venezuela y las luchas emancipadoras en Nuestra América. Jueves 23 mayo, Auditorio Alcaldía Girardot, Maracay. Tradução de JF.
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