O PT E AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS: 10 ANOS DE SOLIDÃO

O objetivo deste artigo é fazer um registro do que ocorreu no período de uma década com relação às rádios comunitárias no Brasil, quando o Governo esteve sob o comando do Partido dos Trabalhadores. Analisam-se as ações do Executivo (o Governo estritamente falando), e suas relações com o Legislativo e as representações da sociedade civil.

Marco zero: o início do fim

O presidente Lula assumiu em janeiro de 2003, quando já estava em vigor a Lei 9.612/98 que regulamenta as rádios comunitárias (RC). A legislação incorpora ainda o Decreto 2.615/98 e a Norma Técnica 01/11.

Nesses dez anos de poder, o Governo PT, que podia alterar toda legislação, somente mudou a Norma Técnica – e para pior. Ao mesmo tempo deu mais poderes à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), antes criticada veementemente pelo PT. Logo ao assumir, o Governo PT ampliou a repressão às emissoras não autorizadas, algo que o partido também criticava antes. A título de exemplo, em 2005 (dois anos de PT) foram fechadas 1086 emissoras de rádio que funcionavam sem autorização. Isso equivale à média de 90/mês ou 3/dia. No ano seguinte a Anatel foi mais eficiente ainda, atingindo a média de 95/mês. Uma média que tem crescido ano a ano.

É preciso deixar bem claro que, ao lidar com as rádios comunitárias, o Partido dos Trabalhadores tem adotado uma posição ideológica de direita. O pior é que faz isso camuflado como aliado das RCs, como se estivesse atuando com elas. O Governo rebate as críticas acusando os críticos de estarem numa “disputa política”. Diz ainda que essa crítica está a serviço da “direita”, como se este Governo agisse pela “esquerda”. Ocorre que esta postura de avestruz oculta um mundo real demarcado claramente por uma linha ideológica de direita; uma linha que segrega e exclui quem faz rádios comunitárias.

A bem da verdade, não se pode generalizar: nem todos os petistas instalados no Governo agiram contra as RCs. Tanto no Executivo quanto no Legislativo petistas mantiveram sua coerência defendendo as rádios comunitárias. A questão é que estes não têm poder para definir e implantar uma política para o setor. Fez isto o núcleo majoritário do PT no Governo: camuflando-se para se passar por aliado, reproduzindo um falso discurso democrático para justificar os abusos.

Mas como o Governo PT sustentou essa farsa por dez anos? Por que só uns poucos revelaram que havia uma farsa, uma engabelação? Uma das respostas está na utopia: acreditou-se que o PT, sendo guardião da utopia da esquerda, faria as mudanças pretendidas para o setor. Esta é uma visão romântica (e messiânica) que o Partido explora, manipulando “a esperança do povo”.

Todavia, isso ainda não é o bastante para explicar como “tantos foram enganados por tanto tempo” aceitando promessas de que algo jamais seria feito pelas rádios comunitárias. Ocorre que o Governo PT fez uso de expedientes que pareciam apontar para o debate democrático no setor. Um deles é o discurso em defesa da “democracia na comunicação”; outro, o uso de práticas que sugerem uma “construção coletiva”, ou um “processo coletivo e democrático” – termos caros aos utópicos defensores do setor.

Por exemplo, se o processo democrático, como se sabe, inclui a abertura de “diálogo com a sociedade”, os dirigentes, autoridades, técnicos agora participam de eventos, debates e reuniões. Ocorre que não resultam em nada… O Governo também abre “consultas públicas” – para rejeitar tudo que representa mudança positiva; cria Grupos de Trabalho – para descartar as propostas que não lhe agradam; abafa as reivindicações com promessas que não se cumprem. Quando este Governo é questionado por que não modifica a legislação ele responde com três clichês: 1) “esta é a legislação possível”; 2) “esta é a mudança possível”; 3) somente o Legislativo pode fazer isso. As três opções se constituem em meias verdades.

É claro que o PT poderia ter feito muito mais. Em dez anos de poder, salvo as exceções de praxe (servidores e técnicos que continuam atuando em defesa das RCs) , o Governo do Partido dos Trabalhadores enganou, ludibriou, enrolou os que fazem rádios comunitárias. E é dessa engabelação política – uma mentira na história – que se fala aqui.

Primeiro: a ignorância é saudável

No município de Santa Luz, sertão da Bahia, funciona uma boa rádio comunitária, a Santa Luz FM: sua gestão é democrática, não pertence a padre ou pastor, não tem jabá, a comunidade participa ativamente. É assim desde 1998, quando a RC surgiu. Como não tinha autorização de funcionamento, a Santa Luz FM foi tratada como “pirata” e fechada pelo menos quatro vezes pela Polícia Federal e Anatel. Em 2007, quando a rádio ainda era tratada como “pirata” pelo Governo do PT porque operava emissora sem autorização, seu diretor, Edisvânio Nascimento, ganhou o prêmio de “Jornalista amigo da criança”, concedido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Na época Edisvânio nem tinha formação em jornalismo (agora está concluindo). Hoje a rádio tem autorização – a Santa Luz levou dez anos para conseguir o documento.

Ocorre que o Palácio do Planalto e o Ministério das Comunicações não fazem a mínima ideia de onde fica Santa Luz, tampouco sabem que lá existe uma boa rádio comunitária e que uma equipe desta rádio foi premiada pela competência jornalística. O Governo não quer saber disso. Na verdade não sabe nem o que é uma rádio comunitária. A única leitura permitida é a política, mas uma política pobre, maquiavélica, apartando o Bem (quem tem poder) e o Mau (quem não tem). Esta ignorância é saudável para um Governo que somente negocia com quem tem poder.

Segundo: inúteis Grupos de Trabalho

O Ministério das Comunicações (MC) cuida para que a ignorância seja regra. Os interlocutores do MC com a sociedade civil (muda, em média, um a cada seis meses) são tecnocratas, que, equivocadamente, entendem sua função pública como uma função política. Dotados de micro-poderes, esses tecnocratas fazem um esforço tremendo para que as relações de poder sejam mantidas. Na prática, significa que eles não precisam conhecer rádios comunitárias, mas as relações de poder dentro do processo. Atuam no processo administrativo fazendo política. Neste ponto, configura-se um grave erro: eles não cumprem a função de servidores públicos. Como se estivessem no setor privado servem à linha determinada pelo dirigente e não ao interesse da sociedade. Por isso não precisam conhecer de RC. Precisam conhecer as normas, as regras, saber como “vigiar e punir” (Foucault). São os capatazes da Casa Grande; cabe-lhes elaborar normas para controlar e punir as RCs.

Diz o senso comum que quando não se quer resolver um problema se monta uma comissão ou um Grupo de Trabalho. O PT seguiu essa regra. Nos dez anos de PT dois Grupos de Trabalho (GTs) foram instituídos para tratar de rádios comunitárias. Seguindo a tradição, os dois foram inúteis.

O primeiro GT foi constituído no início do Governo do PT. Formado por representantes do Ministério das Comunicações e da sociedade civil, foi criado em março de 2003 (Portaria nº 83, do Ministério das Comunicações, 24/03/03), iniciando seus trabalhos no dia 2 de abril. O ministro das comunicações na época era Miro Teixeira (deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro). O objetivo do GT era burocrático: propor métodos para agilizar a burocracia no órgão (eram 4.300 processos de RCs parados no MC). Depois de 90 dias o GT apresentou suas conclusões, entre elas um Projeto de Lei modificando a lei 9.612/98. O PL proposto foi para o lixo e mudanças pequenas foram introduzidas na burocracia.

O segundo GT veio em 2004. O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi criado por Decreto Presidencial (assinado por Luiz Inácio Lula da Silva) em 26 de novembro, com a finalidade de…

analisar a situação da radiodifusão comunitária no País e propor medidas para disseminação das rádios comunitárias, visando ampliar o acesso da população a esta modalidade de comunicação, agilizar os procedimentos de outorga e aperfeiçoar a fiscalização do sistema.

Coordenado pelo Ministério das Comunicações, as atividades do GTI tiveram início no dia 3 de fevereiro de 2005 e foram concluídas no dia 10 de agosto de 2005.

O relatório final do GTI revelou o que todo mundo sabia: 1) algumas rádios sem autorização são comunitárias; 2) muitas rádios que receberam autorização não são comunitárias. O documento observa que, se no Ministério das Comunicações um processo demora em média 26 meses, no Palácio do Planalto o tempo médio entre a entrada e saída de um processo é de 14 meses. Este tempo é a prova de como um trâmite burocrático foi transformado em balcão de “negócios políticos”. Este nova etapa de avaliação – e desta vez exclusivamente política -, não existia no Governo Fernando Henrique Cardoso (responsável pela Lei 9.612/98). Em tese, cabe ao Planalto apenas “carimbar” o processo e encaminhá-lo para o Congresso Nacional. Mas isso não acontece. O processo para no Palácio do Planalto. Essa parada demora o tempo de negociação com os poderes envolvidos. E, claro, se uma rádio não conta com padrinhos políticos, se não aparece ninguém para negociar por ela, por melhor que seja seu projeto a RC está condenada a uma espera que pode chegar à dezena de anos. Por isso emissoras como a Santa Luz – de qualidade, mas sem padrinho político ou religioso – esperam 10 anos para conseguir outorga. Consta que o balcão funciona até hoje dentro do Palácio do Planalto – é preciso um político, padre ou pastor para que o processo seja encaminhado ao Congresso Nacional.

O relatório do GTI omitiu a existência desse “balcão de negócios”. No entanto, estudo desenvolvido por Cristiano Lopes e Venício Lima (“Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha política”), mostra que ele existe ou existiu, pelo menos no período. O estudo mostra como a Igreja Católica tem abocanhado concessões de RCs:

No total, em 120 (5,4%) rádios comunitárias pesquisadas foi encontrado algum tipo de vínculo religioso. O domínio de vínculos pela religião católica é notável. Dessas 120 rádios, 83 (69,2%) eram ligadas à igreja católica, 33 (27,5%) a igrejas protestantes, 2 (1,66%) a ambas, 1 à doutrina espírita (0,8%) e 1 (0,8%) ao umbandismo. (LIMA, V.; LOPES, 2007).

Esse mesmo Estado que é tão rigoroso no fechamento de emissoras não autorizadas, fecha os olhos à lei e distribui autorizações para os seus aliados políticos e religiosos. A Lei 9.612/98 – artigo 4º e artigo 11 – veda às religiões o comando de rádios comunitárias, mas o Governo, contraindo essa lei, distribuiu autorizações para os religiosos. Eis dois exemplos, com dados oficiais:

Processo nº 53770.000456/99. Licença Definitiva para a “Associação Comunitária Nossa Senhora de Copacabana”, localizada na rua Hilário Gomes, 36, Copacabana, Rio de Janeiro. No local funciona a Igreja Nossa Senhora de Copacabana. (fonte: Ministério das Comunicações).

Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja Católica.

Processo nº 53000.000210/00. Autorização concedida à “Associação de Assistência Social Casa da Benção”, localizada, de acordo com o MC, à Área Especial 5 – Setor F Sul Taguatinga Sul, Distrito Federal. A Catedral da Casa Bênção funciona no mesmo endereço, com o nome de fantasia de “Rádio ondas da bênção” (http://www.catedraldabencao.org.br). (fonte: Ministério das Comunicações).

Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja evangélica Casa da Bênção.

Para os autores do estudo, essa forma de distribuição de outorgas de rádios comunitárias é “um comportamento que remonta ao velho Estado patrimonialista, no qual não havia limite entre o público e o privado e os patrimônios do Estado e do governante terminavam por se misturar”. Foi visto que:

Dos 1.106 casos detectados em que havia vínculo político, exatos 1.095 (99%) eram relativos a um ou mais políticos que atuam em nível municipal. Além disso, todos os outros 11 casos restantes são referentes a vínculos com algum político que atua em nível estadual ou candidatos derrotados a cargos de nível federal. Não houve nenhum caso detectado de vínculo direto entre emissoras comunitárias e ocupantes de cargos eletivos em nível federal. (LIMA, V.; LOPES, 2007).

As conclusões do estudo:

1. Durante a gestão de pelo menos dois ministros após a edição da Lei 9.612/98, há indícios de preferência na distribuição de outorgas de interesse político do próprio ministro.

2. O Palácio do Planalto acelerou processos ou reteve outros conforme interesses políticos.

3. Há uma “intensa utilização política das outorgas de radiodifusão comunitária”. Ela se dá em dois níveis: no municipal, em que as outorgas têm um valor político localizado; e no estadual/federal, aí as rádios comunitárias são controladas por forças políticas locais que devem o “favor” de sua legalização a um padrinho político.

Quanto ao relatório do GTI…

Ele faz um diagnóstico da situação, mas apresenta propostas “medrosas”, pouco alterando a atual situação.

Como o GT anterior, as conclusões deste GTI também foram para o lixo. Mas, desta vez com um elemento insólito: embora o relatório tenha sido amplamente divulgado, é como se ele não tivesse existido – nunca foi oficialmente reconhecido pelo Governo.

Terceiro: omissão é posição

A legislação em vigor foi feita para impedir a existência das RCs. Sancionada pelo governo anterior (Fernando Henrique Cardoso) o Governo petista optou pelo mais cômodo, fazer-se de cego, omitiu-se. E ao fazer isso, na prática, posicionou-se pela lei em vigor. Por isso, criada há 14 anos, a legislação permanece com seus absurdos.

O absurdo mais flagrante é o limite de alcance para 1 Km de raio. Isso não está na lei, foi uma invenção do Executivo. O artigo 1º da Lei 9.612/98 estabelece que a potência da RC deve ser limitada a 25 w. O Decreto 2.615/98, porém, vai além e diz que o alcance da rádio não deve ultrapassar 1 km. Na prática, o Executivo mudou o conteúdo da lei fazendo uso de um Decreto – o que é ilegal! Com isto o Estado (que é quem aplica a legislação) ampliou mais ainda o caráter restritivo da Lei. Ele impôs uma comunidade com fronteiras eletromagnéticas; substituiu as antigas e verdadeiras fronteiras da comunidade – definidas por relações humanas, culturais e geográficas – por “cercados eletromagnéticos”, com limites restritos a um círculo de raio de 1 km.

Antes, pela Lei, a RC deveria atender a “comunidade do bairro e/ou vila”. Com a redação dada no Decreto, a RC deve atender somente a quem está dentro desse círculo de raio de 1 km. O Estado criou um espaço que não existia, uma espécie de gueto ou “campo de concentração”, cercado por redes eletromagnéticas – dentro dele deve operar a rádio e devem morar seus dirigentes.

Por que o Governo do PT não mudou isso? Porque fez uma opção política em função de uma linha ideológica. É a mesma que está inserida na Lei 9.612/98 (art. 5º), quando se determina que as RCs devam transmitir em um só canal (uma faixa limitada de frequências), indicando-se um canal alternativo quando não for possível usar o primeiro indicado. Que canais são estes? Em tese devem estar dentro do dial de Frequência Modulada (FM), a faixa que vai de 88 a 108 MHz. Afinal todo receptor de rádio FM é construído para receber sinais dentro dessa faixa – faz parte de um acordo internacional entre os países.

Mas o Estado brasileiro inovou…

Em 1998, através da Resolução 60, a Anatel decidiu que as rádios comunitárias deveriam operar no canal 200 (faixa de 87,9 MHz, a 88,1 MHz). Isso era no Governo FHC. Em 2004, já no Governo do PT (Lula), a Anatel, através da Resolução 356, diz que as RCs devem ocupar, também, os canais 198 e 199 (faixa de 87,5 MHz a 87,7 MHz). Portanto, para as RCs de todo Brasil foi destinada a faixa de freqüências que vai de 87,5 MHz a 88,1 MHz. Ocorre que salvo a freqüência de 88,1, tais canais estão fora do dial! Se, como foi visto, a faixa de FM vai de 88 a 108 MHz, para quem a RC vai transmitir se os receptores de FM não recebem abaixo de 88 MHz?

Isso não importa para o Governo petista que se associa a Anatel para defender que os aparelhos de rádio recebem nessa faixa. A Anatel chegou a apresentar estudos técnicos para provar que isto é possível. Não consegue provar, porém, que este ato não é uma discriminação – para nenhuma emissora comercial ou educativa foi designado canal nestas condições, fora do dial.

A legislação que o Governo do PT não quis modificar é repleta de atos de segregação. Ela exige que os dirigentes da emissora residam dentro do círculo determinado pelo raio de alcance de 1 km; veda a formação de redes; veda a publicidade, permitindo apenas o “apoio cultural”; estabelece que se a RC interferir sobre outro serviço de telecomunicações ela será punida, porém se ocorre o contrário, se uma emissora comercial interfere no sinal da RC, conforme a Lei, o Estado nada vai fazer.

Quarto: vigiar e punir

Em outubro de 2011 o Ministério das Comunicações resolveu mudar a legislação. E começou mudando a Norma Técnica 01/04. Essa mudança adquire um caráter simbólico porque foi a única alteração da legislação de RC em 10 anos de Governo do PT. Imaginava-se que o PT tivesse ouvido as rádios comunitárias e apresentasse propostas que reduzissem os efeitos negativos dessa legislação. Era o que se esperava de um Partido que tinha, no seu discurso, um apelo social e, por base, as camadas populares. Não foi o que aconteceu.

Entenda-se, a legislação do Serviço de Radiodifusão Comunitária se constitui basicamente (e hierarquicamente) da Lei 9.612/98, seu Decreto regulamentador, 2.615/98, e, hoje, da Norma Técnica, 01/11. O mais sensato seria, primeiro, mudar a lei, depois o Decreto e, por fim a Norma.

O Executivo não mudou o Decreto, que é de sua alçada, optando por fazer uma nova Norma Técnica, a 01/11 (está em vigor hoje). Deste modo o PT entra na história das rádios comunitárias por ter assinado uma mudança da legislação que a torna pior do que já era.

Deve-se entender a Norma como um discurso institucional, uma fala do Poder. E, por ser uma Norma técnica, é um discurso do poder que se apresenta semioticamente com “virtudes”: ela teria autonomia (teria sido construída em ambiente alheio aos conflitos do setor), seria necessária (ao processo burocrático), seria apolítica (teria sido construída em ambiente alheio à política). Portanto, impositivo por natureza, a Norma técnica é um discurso do Governo do PT – ela “diz o que o Governo pensa sobre o assunto”.

O discurso expresso nesta Norma objetiva manipular. O manipulador, o Governo, quer submeter (manipular) os que querem fazer rádio comunitária.

A manipulação envolve não apenas o poder, mas especificamente abuso de poder, ou seja, dominação. Mais especificamente, a manipulação implica o exercício de uma forma de influência deslegitimada por meio do discurso: os manipuladores fazem os outros acreditarem ou fazerem coisas que são do interesse do manipulador, e contra os interesses dos manipulados (VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo, Contexto, 2008).

Esse mascaramento do discurso, essa tentativa de manipulação das pessoas, é um ato ilegítimo.

Definimos como ilegítimas todas as formas de interação, comunicação ou outras práticas sociais que servem apenas aos interesses de uma parte e são contra os interesses dos receptores. (idem, p. 238).

A pretensão do discurso/norma é controlar as pessoas, “vigiar e punir”, mais exatamente, que é título de célebre estudo do francês Michel Foucault sobre os métodos adotados historicamente para conter e punir os criminosos (Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009). No caso, “criminosos” são os que fazem ou pretendem fazer rádios comunitárias de forma independente. Para tanto, segundo Foucault, o Poder faz uso do que se entende por “ordem disciplinar” – um conjunto de práticas de controle, sistematizadas a partir do Século XIX e usadas até hoje nas mais diversas instituições. O objetivo dessa ordem disciplinar é humilhar e controlar, vigiar e punir aqueles que poderiam desobedecer ao poder.

A punição e a vigilância são poderes destinados a educar (adestrar) as pessoas para que essas cumpram normas, leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder. A vigilância é uma maneira de se observar a pessoa, se esta está realmente cumprindo com todos seus deveres – é um poder que atinge os corpos dos indivíduos, seus gestos, seus discursos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. A vigilância tem como função evitar que algo contrário ao poder aconteça e busca regulamentar a vida das pessoas para que estas exerçam suas atividades. Já a punição é o meio encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as regras ditadas pelo poder e ela também é o meio de impedir que essas pessoas cometam condutas puníveis (através da punição as pessoas terão receio de cometer algo contrário às normas do poder). A vigilância e a punição podem ser encontradas em várias entidades estatais, como hospitais, prisões e escolas (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009).

A Norma 01/11 é o discurso da “direita”, tanto criticada pelo PT. Por exemplo, ela restringiu a forma de patrocínio da RC. Se a Lei diz que o patrocínio somente pode ser feito por estabelecimentos instalados na área em que funciona a rádio comunitária, a Norma diz que o “apoio cultural” não pode divulgar ofertas, produtos, valores. Pergunta-se: qual a loja ou serviço vai patrocinar uma RC sabendo que não pode colocar os valores da oferta?

A bem da verdade, antes de existir uma definição de apoio cultural a Anatel já usava esta que agora se impõe. Ou seja, ela aplicou multas em diversas rádios por descumprirem uma regra que não existia! Este abuso da Anatel (punir sem ter norma legal para tanto) contou com a colaboração do Ministério das Comunicações, que tornou público em seu site uma regra inexistente como se fosse norma legal. Bem antes da Norma ser publicada, esse texto estava lá no site do MC (pelo menos até 13/05/11) como resposta às “perguntas mais frequentes”. Os redatores da Norma copiaram o texto e colaram na nova Norma.

Quanto à nova Norma 01/11. Ela amplia a burocracia e o controle sobre as pessoas. Para tanto pede (item 8.1.d) a lista…

De todos os associados pessoas físicas, com o número do CPF, número do documento de identidade e órgão expedidor mais o endereço de residência ou domicílio, bem como de todos os associados pessoas jurídicas, com o número do CNPJ e endereço da sede.

Qual o interesse do Estado em saber quem faz parte da associação?

Quais as suas pretensões? Imagine-se o calhamaço que vai render uma associação como a Rádio de Heliópolis, São Paulo, instalada numa comunidade com 125 mil pessoas. O que o Ministério das Comunicações pretende fazer com uma lista contendo os dados de centenas ou milhares de pessoas, com a especificação de nome, endereço, CPF? Vai verificar a autenticidade de cada uma? Ao que parece temos aqui uma prática comum a regimes ditatoriais objetivando controlar as pessoas.

Ainda nesta Norma, o Governo pede ao interessado “declarações” aparentemente absurdas para conceder a autorização. Um exemplo: é solicitado aos dirigentes das emissoras declarações de que seguirão a norma legal. Ora, qual a lógica em solicitar de concessionário de serviço público papel assinado dizendo que ele vai seguir a lei?

Não se trata, porém, de uma insensatez. Os que redigiram essa Norma não são nada insensatos. Pelo contrário. A Norma é parte de uma estratégia de manutenção do Poder, baseada numa determinada postura ideológica.

(*) assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, Dioclécio Luz é uma importante liderança no movimento de rádios comunitárias, autor de vários livros sobre o assunto.

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