Reforma Política: tática oportunista para as eleições de 2014 e diversionista para as lutas de massa
Em 2002, quando surgiu a possibilidade de vitória eleitoral do que ainda parecia ser uma frente de esquerda e, portanto, de iniciarmos um processo de mudanças progressivas no Brasil, às vésperas do primeiro turno Lula assinou a “Carta aos Brasileiros”, em verdade dirigida aos banqueiros, comprometendo-se a manter intacta a política econômica neoliberal dos tempos de FHC, incluindo a “autonomia” do Banco Central e o superávit primário, desvio de recursos públicos para pagamento dos rentistas. Nesse caso, não se pode acusar Lula de não cumprir promessas.
Com a vitória dele no segundo turno, a então coordenação da frente que o apoiava criou uma comissão dos cinco partidos (PCB, PT, PDT, PSB e PcdoB) para elaborar um PROGRAMA DOS 100 DIAS, de forma que, logo no início do mandato, o novo Presidente mostrasse que veio para cumprir as promessas de mudanças feitas na campanha e que encheram de esperança a grande maioria do povo brasileiro e a esquerda mundial.
A principal proposta da comissão, apresentada pelo PCB, era a convocação, logo após a posse, de um plebiscito para consultar o povo sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, que não se confundisse com a composição do Congresso Nacional e que revisasse toda a Constituição Brasileira, que já sofrera forte retrocesso político em função de emendas aprovadas no famigerado governo FHC.
Partia-se do pressuposto de que, para mudar o Brasil, era indispensável primeiro mudar leis que perpetuam a hegemonia burguesa. Exatamente como fizeram Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, antes de deflagrarem os processos de mudanças em seus países.
Mas no Brasil, o medo venceu a esperança!
Antes mesmo da posse, já eleito no segundo turno, a primeira viagem internacional de Lula, de surpresa (pelo menos para o PCB), foi aos Estados Unidos para encontrar-se com Bush na Casa Branca, ao lado de Henrique Meireles, então presidente do Banco de Boston, para apresentá-lo como o novo presidente do Banco Central do Brasil, assegurando-lhe autonomia para gerir a política monetária. Nesse momento, começou a se dissolver a coordenação política da campanha, que deveria se transformar, após a posse, numa coordenação política do governo.
Ao tomar posse, Lula jogou no lixo, ao mesmo tempo, o programa da campanha, a coordenação política e o Programa dos 100 Dias, fazendo a opção pela governabilidade institucional da ordem, ao invés da governabilidade popular pelas mudanças. Formou uma base de apoio parlamentar com o centro e a centro-direita, com mais de 300 dos que chamara de picaretas, transformando-se em refém e cúmplice dos caciques da política burguesa, sob o comando do PMDB e do companheiro Sarney, rendendo-se ao grande capital. O Vice-Presidente, José de Alencar, havia sido criteriosamente escolhido para sinalizar uma aliança com setores da burguesia, com vistas a um projeto neodesenvolvimentista, que Lula anunciava, já na posse, como o “espetáculo do crescimento”, que iria “destravar” o capitalismo no Brasil. Essa promessa Lula também cumpriu à risca.
Constatando a traição ao programa que elegeu Lula, o PCB, em março de 2005 (antes, portanto do episódio conhecido como “mensalão”), rompe com o governo, por absoluta incompatibilidade política com o transformismo do novo presidente e dos demais partidos que haviam composto a frente, que continuaram se degenerando e se fartando de cargos e verbas, sem qualquer crítica ao abandono do programa eleitoral e entregando as organizações sociais sob sua influência na bandeja da cooptação, transformando uma legião de ex-militantes de esquerda em burocratas de carreira, cabos eleitorais de “mandatos” de seus partidos.
A CUT e a UNE, que já vinham também num acelerado processo de degeneração, logo se transformaram em correia de transmissão do governo e nos principais instrumentos de apassivamento dos trabalhadores e da juventude.
Depois de dez anos alavancando o capitalismo, “como nunca antes na história desse país” – iludindo os trabalhadores com o discurso da inclusão, da nova classe média, de um desenvolvimento capitalista em que ganhariam igualmente todas as classes e que garantiria a paz social -, bastou o estopim do aumento das tarifas dos ônibus urbanos para que se desmontassem as ilusões, os 10 anos de conciliação de classe, de manipulações, de amaciamento da classe trabalhadora e da juventude.
Tudo isso aliado aos ventos da crise do capitalismo, que tem levado o governo Dilma a mitigá-la com mais capitalismo: desoneração do capital, Código Florestal, privatizações de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, estádios de futebol, a vergonhosa continuidade dos leilões de petróleo, inclusive do pré-sal, além de projetos para reduzir direitos trabalhistas e previdenciários.
A explosão das insatisfações reprimidas tem suas razões principais na privatização e no sucateamento dos serviços públicos, sobretudo na saúde e educação, na desmoralização e falta de representatividade das instituições da ordem (e das entidades de massas cooptadas), em função de alianças e práticas oportunistas e da cumplicidade com a corrupção.
Com a quebra do salto alto petista, foram-se a arrogância e a certeza de mais alguns confortáveis anos de mais do mesmo. Atônitos, os reformistas começam a bater cabeça e a chamar por Lula, alguns abandonando Dilma na estrada, por conta de sua queda de popularidade. Ao mesmo tempo, acharam no lixo da sua própria história o Programa dos 100 Dias, abandonado quando a correlação de forças era altamente favorável. Com seus quase 60 milhões de votos e a inaudita esperança popular, Lula tinha todo o respaldo para mudar o Brasil, mobilizando as massas, mesmo que com medidas apenas progressistas.
A cerca de um ano do fim do mandato de Dilma, cada vez mais reféns do centro e da centro-direita, até para se manter no governo, petistas e outros reformistas, alguns insistindo em se dizer comunistas (o que, por praticarem a conciliação de classe, é funcional para sua aceitação pelo sistema) levantam a bandeira da reforma política, esbravejando contra o parlamento, a justiça, a mídia, instituições que não só deixaram intactas, mas fortalecidas.
Fingindo desconhecer que este governo não sobrevive sem o PMDB, que tem a chave da agenda legislativa brasileira – com a inédita acumulação da presidência da Câmara e do Senado e a Vice-Presidência, ocupadas pelas mais experimentadas raposas políticas – os reformistas levantam agora, como a salvação da pátria, a bandeira da convocação de um plebiscito para uma constituinte, que abandonaram no momento propício, há dez anos!
Clamar por constituinte nessa correlação de forças desfavorável – e no momento em que “caem as fichas” dos trabalhadores e da juventude, a ponto de esses partidos não poderem levar para as ruas as suas bandeiras – é um gesto de desespero. Ou se trata de uma inocente ilusão de classe ou de uma esperta cortina de fumaça para passar ao povo a impressão de que querem mudar, mas que a oposição não deixa. Como não há inocência em políticos profissionais, a segunda hipótese é mais provável. Tanto não querem mudar que, em recente nota oficial, a direção nacional do PT assegurou que sua aliança preferencial para 2014 é com o PMDB, garantindo ao indefectível Michel Temer a candidatura a vice-presidente.
A correlação de forças não é desfavorável apenas no parlamento, mas sobretudo em relação à evidente hegemonia burguesa na sociedade brasileira, moldada pelo fundamentalismo religioso e pela mídia hegemônica, que cultua a aversão aos partidos e reduz a política aos momentos eleitorais.
Vão buscar no lixo a constituinte de 2003, que seria ampla e irrestrita, mas agora a limitam a uma específica sobre reforma política que nem merece esse nome, pois é fundamentalmente eleitoral. Mostram assim que só acreditam na chamada democracia burguesa, uma ditadura de classe disfarçada.
No esperto (e ao mesmo tempo desesperado) discurso da reforma política, fazem críticas a deformações do parlamento, para as quais contribuíram tanto quanto os demais partidos da ordem. O PT e seus aliados fiéis e acríticos se fartaram de financiamento privado, a ponto de seus candidatos, em alguns casos, terem recebido mais doações “generosas” de empresas – em geral empreiteiras, concessionárias de serviços públicos e bancos – que seus adversários conservadores, até porque os setores mais lúcidos das classes dominantes preferem terceirizar o governo a um partido com o nome de trabalhadores, para fazer com eficiência a política do capital e com a vantagem de iludir aqueles que emprestam o nome ao partido.
Defendem agora o voto em lista fechada, ou seja, em partidos e programas e não em pessoas, quando o PT foi o partido que mais contribuiu para o voto personalizado, usando o prestígio de Lula e a marquetização das eleições. Propõem agora o fim das coligações nas eleições proporcionais, quando o PT e seus aliados fiéis têm feito coligações as mais espúrias e inimagináveis.
Uma evidência de que a proposta de reforma política não passa de um expediente tático é que o PT sabe do risco real de perder em plebiscito as propostas que hoje defende, como o financiamento público exclusivo e o voto em lista, numa conjuntura em que o povo repudia os partidos políticos, aliás por responsabilidade do próprio PT e de seus cúmplices de fisiologismo. Essa derrota seria também da esquerda socialista, pois são propostas positivas, que em dez anos os reformistas não levaram à frente, mesmo exercendo a presidência da república.
Essa manobra irresponsável e eleitoreira pode ter consequências nefastas, na medida em que abre espaço para o Congresso Nacional promover, sem qualquer consulta popular, uma minirreforma regressiva, para parecer mudança. Com medo de que as urnas revoguem seus mandatos, numa renovação que se anuncia sem precedentes, parlamentares já falam em diminuir a duração da campanha eleitoral a pretexto de reduzir os custos financeiros, mas na verdade para favorecer os que já têm mandato.
Talvez por falta de tempo, ainda não consigam o fim das coligações proporcionais e a criação de alguma forma de cláusula de barreira, com o objetivo de diminuir o número de partidos e prejudicar apenas aqueles ideológicos, da oposição de esquerda. As pequenas e médias legendas de aluguel se adaptarão às restrições, fundindo-se aos chamados grandes partidos, em tenebrosas transações.
Com ou sem consulta popular, qualquer iniciativa de reforma eleitoral nesta conjuntura pode resultar numa contrarreforma, antipolítica e antipartidária.
E não adianta setores petistas reclamarem da minirreforma eleitoral, porque o presidente da comissão responsável por ela é o deputado petista Cândido Vacarezza, historicamente ligado a Lula e nomeado para o cargo pelo presidente da Câmara, contra a opinião da maioria da direção nacional do PT, fato que ficou por isso mesmo!
Apesar de sermos a favor do financiamento público, não temos ilusão de que seu advento acabaria com a corrupção e tornaria democrática a disputa, num país capitalista em que a corrupção é sistêmica e a mídia hegemônica manipula, influi e por vezes decide as eleições. Essa medida pode até dificultar, mas não erradicar a corrupção.
Tampouco somos contra a luta – numa correlação de forças favorável e desvinculada de cálculos eleitorais – por uma reforma política progressiva, em que o fortalecimento do protagonismo popular possa contribuir para a auto-organização dos trabalhadores. Mas sem ilusões com a possibilidade de superar o capitalismo através de eleições e de reformas.
O mais grave, entretanto, é que a prioridade na bandeira da reforma política sequestra a pauta unitária levantada nas manifestações de 11 de julho. Trata-se de um diversionismo e uma esperteza de não expor a presidente Dilma e o possível candidato Lula ao desgaste de terem que negar cada uma daquelas bandeiras, exatamente por serem reféns e parceiros do capital.
Devemos continuar levantando as bandeiras da redução da jornada sem redução salarial, da reforma agrária, do fim do fator previdenciário e da terceirização, do fim do superávit primário e dos leilões do petróleo para gerar investimentos públicos em saúde e educação, da desmilitarização da polícia, entre outras. Por isso, não podemos cair na balela da reforma política, que os reformistas querem colocar agora em primeiro plano, em detrimento das bandeiras citadas.
É preciso desmascarar a atual campanha de coleta de um milhão e meio de assinaturas digitais pelo plebiscito da constituinte específica. Não por incentivar a iniciativa popular, mas pelos objetivos da campanha e pela forma de coletar as assinaturas, apenas através da internet, estimulando assim a asséptica militância eletrônica, sem sair de casa ou do gabinete, fria e sem interação com as massas, talvez por receio desse contato.
Ao invés disso, devemos e podemos organizar uma oportuna e necessária coleta de assinaturas para uma iniciativa legislativa por um plebiscito, mas para que o povo responda se quer uma Petrobrás 100% estatal, sob controle popular, o fim dos leilões e que os lucros da exploração do petróleo sejam investidos na saúde e na educação, públicas e de qualidade. Essa pode ser uma importante campanha de massa, servindo também para mobilizar o povo às vésperas de mais um ultrajante leilão do nosso petróleo. Uma campanha nas praças, nas portas de fábricas e de escolas, em contato direto com os trabalhadores e os jovens.
Por tudo isso, as forças políticas e sociais do campo anticapitalista, de oposição aos governos social-liberais e neoliberais, precisam reunir-se urgentemente numa Plenária Nacional, para debater a forma e o conteúdo de nossa participação no dia 30 de agosto, anunciado pelas centrais pelegas sem qualquer representatividade como um “dia nacional de paralisações”. Mesmo que elas recuem, como já aconteceu outras vezes.
As forças anticapitalistas não podem mais participar de manifestações sem unidade e identidade própria, sob pena de se confundirem com os reformistas e não criarem as condições para a necessária formação de uma frente de caráter anticapitalista e anti-imperialista, voltada para a unidade de ação na luta e para além das eleições e dos partidos registrados oficialmente.
Por fim, no lugar da reforma eleitoral, nossa bandeira política central deve ser PELO PODER POPULAR, que expressa a recusa às instituições burguesas e “a tudo que está aí”,sinalizando uma organização popular com vocação de poder.
*Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB
(texto revisado e aprovado pelo Comitê Central do PCB)