Crise, destruição e “classe média”

Apesar de todas as dificuldades subjectivas, vivemos um tempo de fim de ciclo, respira-se um ambiente de imperiosa necessidade de superação de uma formação económico-social velha, caduca, por uma outra nova. A realidade não está inerte, movimenta-se no sentido da superação dos antagonismos estruturais do capitalismo, como o demonstra o aprofundamento da sua crise estrutural, agora chegando a todos os rincões da Terra, o que não acontecia na crise de 1929.

A recente agudização da crise política em Portugal, despoletada pelas demissões de Vítor Gaspar (1 de Julho) e de Paulo Portas no dia seguinte, demonstrou a incapacidade do PSD, PS e CDS apresentarem soluções para enfrentar a crise sistémica do capitalismo; que o Presidente da República se deixou capturar pelo PSD e aceita, passivamente, o papel de “verbo-de-encher” do governo de Passos Coelho; o primarismo dos comentários e comentadores políticos nos órgãos de comunicação social portugueses ditos de referência que, como habitualmente, fugiram das questões essenciais para se aterem à dissecação do jogo de intriga política e pessoal.

A insaciabilidade da banca, a destruição da economia, o desemprego, a extrema degradação das condições de vida da classe trabalhadora, particularmente dos reformados, os 4 mil mortos a mais no 1º semestre deste ano em relação a período idêntico de 2012 agora noticiado, a degradação do Serviço Nacional de Saúde, a perda generalizada de direitos sociais e laborais são tratados nos meios de comunicação social como sectores estanques, como se não fossem parte da longa e feroz ofensiva global do grande capital contra a classe trabalhadora.

A questão das políticas de classe, os interesses comuns que os três partidos da política de direita defendem, PSD, CDS e PS, a sua luta implacável, capaz de todas as traições, pela conquista das boas graças do grande capital são silenciados nos órgãos de comunicação social e tratados como a natural luta política em democracia.

E como é cada vez mais alargado o reconhecimento da rendição incondicional do PS à política de direita, há uma crescente dificuldade destes três partidos mostrarem às massas diferenças entre si que justifiquem a alternância no poder político que PS e PSD, sós ou em coligação com o CDS, vêm protagonizando desde 1976. É também por esta razão que, apesar da perda de legitimidade do governo e do “seu” Presidente da República, o PS não descola nas sondagens, nem concita qualquer entusiasmo a simpatizantes e militantes.

Tudo se passa e comenta como se não houvesse classes nem luta de classes.

As dificuldades destes três partidos crescem também por a crise sistémica do capitalismo ter rebentado quando a crise estrutural do capitalismo conhece um novo desenvolvimento, chegando já a todos os rincões do mundo por mais recônditos que sejam.

Em Portugal, a crise específica que foi desencadeada há pouco mais de um mês pelas demissões de Vítor Gaspar e Paulo Portas, alimentou-se com o patrioteiro apelo de Cavaco Silva ao «compromisso de salvação nacional» entre os três partidos da política de direita, desenvolveu-se durante uma semana de conversa fiada como farsa com final previamente conhecido, para terminar no ponto de partida, com Maria Luís Albuquerque a fazer de Gaspar, por sua vez substituído por Portas na função de tutor governamental de Passos Coelho.

É com este pano de fundo que a situação em Portugal e na Europa tem caminhado aceleradamente para uma profunda regressão civilizacional, de consequências ainda não totalmente imagináveis, que desacreditará profundamente não só os partidos ao serviço do grande capital financeiro, os do auto-apelidado arco do poder acima referidos, mas também a democracia representativa, que mais não é do que uma ditadura do grande capital de fachada democrática, como se torna cada vez mais evidente.

«Compromisso de salvação nacional»

Depois de Salazar, o político com mais anos de poder nos últimos cem anos, Cavaco Silva, gosta de se apresentar como economista. Doutorado com uma dissertação de Economia Política, A Contribution to the Theory of the Macroeconomic of Public Debt, pela Universidade de York em 1971, Cavaco Silva fez toda a sua formação escolar e licenciou-se para ser o que, em Espanha, se chama contador (finanças), não economista, termo reservado para a licenciatura em economia política.

Avesso à leitura até de jornais, como ele próprio disse “não leio jornais nunca tenho dúvidas e raramente me engano” (cito de memória), o que é elucidativo sobre a sua formação cultural, formas de expressão …, sabe-se por uma sua confissão que andou a ler A Utopia de Thomas Mann (sic), quando a obra é de Thomas More.

Dez dias depois do início da última crise política local, o Presidente da República, dirigiu-se ao país numa comunicação com solenidade encenada.

O objectivo da comunicação é claro: enredar os três partidos que disputam as graças e favores do grande capital numa frente política que continuasse a ofensiva do capital monopolista contra a classe trabalhadora, disfarçada com pompa de «compromisso de salvação nacional».

A expressão tresanda a fascismo.

Fiel aos princípios em que cresceu, manda quem pode obedece quem deve, a sua comunicação, por razões – que ele diz serem – de ordem económica e financeira, é um hino à submissão total aos ditames da troika, pois a isso obrigam os princípios do que ele chama a economia.

Mas se em 10 de Julho a comunicação é uma tentativa de encontrar um lugar de protagonista na frente política que dirige a ofensiva do capital monopolista contra a classe trabalhadora, e aí enumera e numera as regras e objectivos a atingir pelas conversações entre os três partidos da política de direita, acabada que foi a conversa fiada tripartida, desfizeram-se as ilusões, suas e da sua equipa de assessores.

A opção de classe com tudo o que politicamente isso implica mantém-se, mas o Cavaco de hoje não é o de 1995. Está lá a pose hirta, mas aconteceu uma impossibilidade – rebentou uma crise sistémica do capitalismo – que, de acordo com os vade-mécuns tão trabalhosamente decorados, não poderia ter acontecido, o que lhe escondeu a arrogância, baralhou as contas e o que mais se vê e ouve e não se fala…

Sejamos claros: hoje, se não tiver o papel escrito nas mãos Cavaco Silva, o Presidente da República de Portugal, enreda-se a explicar o que não é explicável, como aconteceu nos casos mais conhecidos, tristes e preocupantes da pensão de reforma não lhe chegar para os gastos de Natal, das cagarras das Desertas ou a comparação dos sacrifícios impostos pelo governo aos portugueses à subida de uma montanha na Volta a Portugal…

E na comunicação de 21 de Julho, ao contrário do que anunciara em 10 de Julho, não houve qualquer responsabilização dos «agentes políticos que (n)os governam ou que aspiram a ser governo», nem se «encontrar(am) naturalmente outras soluções no quadro do nosso sistema jurídico-constitucional». Cavaco Silva aceitou tudo o que o governo lhe impôs – até Paulo Portas, com o duplo cargo de ministro Estado e de tutor governamental de Passos Coelho.

Disputa dos favores do grande capital

Os partidos da política de direita ou do arco governamental, como gostam de ser classificados para mais facilmente esconderem a sua verdadeira essência, particularmente o PS e o PSD, que o CDS sempre se apresentou como defensor do grande capital, estão apenas, cada um à sua maneira, ao serviço do capital monopolista. Perderam toda a ligação ideológica às respectivas bases sociais de apoio e há muito abandonaram a defesa dos interesses dos que os sustentam com votos. Nada de essencial separa ou divide estes três partidos.

Só pequenos detalhes os diferenciam.

A própria disputa dos favores e distribuição de lugares nos monopólios é resolvida, tal como os convites para a participação anual na reunião dos Bilderberg, com uma distribuição proporcional entre quadros afectos ao PS ou ao PSD, consoante o turno que cada partido ocupa na alternância, ficando para o CDS os lugares reservados por direitos de família adquiridos no século passado, aquando da criação dos monopólios em Portugal, acrescidos de algumas sobras para os novos recrutas partidários.

O carácter, ou a falta dele para ser mais rigoroso, e a fidelidade politicamente camuflada na defesa dos interesses dos monopólios pelos principais dirigentes destes partidos há muito rendem juros. Nalguns casos, tal como os direitos de família, esta realidade começou já em pleno fascismo, como documentam os livros «A verdade e a mentira sobre o 25 de Abril – A contra-revolução confessa-se», de Álvaro Cunhal, Editorial Avante e «Os contos secretos do PS», de Rui Mateus, de que só foi feita uma edição em 1996. (Descarregar:http://aventadores.files.wordpress.com/2010/12/livro_contos_proibidos.pdf).

Vivemos pois no mais desenfreado capitalismo monopolista de Estado, onde os quadros dos monopólios saltam para o aparelho do Estado e vice-versa sem distinguirem objectivos e princípios éticos de cada uma das funções. Estão sempre ao serviço do aumento da exploração do trabalho e do empobrecimento da classe trabalhadora.

Muitos, rapidamente deixam de ser técnicos. Pagos a peso de oiro e em função dos resultados, passam também eles a personalizações do capital, pois investem a esmagadora maioria das suas obscenas retribuições a par dos negócios dos monopolistas que lhes pagam. Tornam-se parceiros menores dos grandes monopolistas a quem servem e seguem.

Por sua vez, é cada vez mais difícil, se não mesmo impossível, detectar a nacionalidade do capital determinante de um grande consórcio, tantas são as participações cruzadas, apenas se podendo constatar que esse consórcio tem como referência um determinado país.

A austeridade está a acabar com a classe média

Muito ouvida ultimamente, esta expressão pretende abranger uma camada de trabalhadores que, por terem usufruído um nível salarial mais elevado ou recebido pequenas heranças normalmente de bens rústicos, viviam em imitação do modo de vida burguês e se mantinham afastados da luta pela emancipação dos trabalhadores.

A imitação do modo de vida burguês é uma causa objectiva de divisão dos trabalhadores e a ela se juntaram um aumento do consumismo, fomentado por estruturadas e massacrantes campanhas de publicidade, uma pressão irresponsável dos bancos para a utilização de cartões de crédito e a concessão irresponsável de crédito para a compra de carro, férias no estrangeiro e compra de casas para habitação e segunda casa.

Todo este cocktail de medidas para a divisão dos trabalhadores foi complementado por uma significativa diferença salarial entre diversas categorias ou especialidades de trabalho.

Particularmente a especulação com a habitação levou a banca em Portugal a financiar sucessivamente, a 100%! a compra de terrenos, o seu loteamento, a construção do imóvel e por último a compra dos andares, por vezes acompanhado de um segundo empréstimo para obras ou mobilar a casa, forma encontrada para contornar o impedimento de emprestar 100%, e por vezes mais, da avaliação da casa! E assim se construíram irresponsavelmente cerca de 700 mil habitações mais do que o necessário para satisfazer as necessidades do país…

Titularam-se empréstimos, criaram-se fundos especulativos, tudo fomentado e em nome da urgente necessidade de a banca e as restantes grandes empresas monopolistas «criarem músculo» (sic), visto que a enorme dimensão no país não as agigantava na UE e no mundo. O Banco de Portugal, dirigido pelo socialista Vítor Constâncio já convertido ao neoliberalismo, não viu o que toda a gente sabia que se passava no BPN e chegou-se a levar João Rendeiro do BPP às escolas ensinar empreendedorismo às crianças…

No entanto, a crise tornou mais claro que o que sempre identificou os trabalhadores foi, «e continua a ser, a sua subordinação estrutural do trabalho ao capital e não o padrão de vida relativamente mais elevado dos trabalhadores nos países capitalistas privilegiados».

A crise, no entanto, veio evidenciar a realidade: a posição de classe de qualquer pessoa ou grupo de pessoas é definida pela sua posição na estrutura de comando do capital e não pelo seu estilo de vida, por isso a chamada classe média “regressa” à classe donde nunca saiu: a classe trabalhadora.

Um trabalhador da PT pode até ser accionista da empresa com acções com o sem direito a voto, compradas ou dadas pelo monopolista como prémio pelo seu bom comportamento (leia-se abandono das posições de classe), mas ele nada decide e até o fundo de pensões da empresa, antes de ser integrado no Estado, não estava suficientemente provisionado (e discute-se se posteriormente o foi nos montantes devidos…), o que, sem outras considerações de ordem legal, no limite, punha em risco a sua pensão, apesar de ele pensar ser membro da chamada classe média e accionista da empresa…

O que determina a posição de classe continua a ser a posição do trabalhador na estrutura de comando do capital, e o trabalhador da PT não ocupa qualquer posição na estrutura de comando do capital. Esta realidade não pode confundir-se com as personalizações do capital acima referidas, de que os exemplos mais falados em Portugal são Jardim Gonçalves (BCP) e António Mexia (EDP).

Assim, a destruição da chamada classe média mais não é do que o resultado da feroz ofensiva global do grande capital contra a classe trabalhadora, que a todos atinge, independentemente do seu nível salarial, estilo de vida e consciência de classe.

No meio da crise…

O rebentar desta crise sistémica do capitalismo, no entanto, veio apanhar a classe trabalhadora mais indefesa do que estava até ao último quarto do século XX.

A União Soviética e os países que se reclamavam do socialismo foram derrotados no final do século passado e há já alguns anos que davam evidentes sinais de grande erosão social, económica, ideológica e política.

Na Europa capitalista já se tinha espalhado uma nova onda de revisionismo – o eurocomunismo –, ungido pelos ideólogos e dirigentes políticos burgueses, atingindo em cheio os três principais partidos comunistas da Europa capitalista – Partido Comunista Italiano, Partido Comunista Francês e Partido Comunista Espanhol – que involuíram de grandes organizações de classe com efectiva influência entre os trabalhadores para pequenos partidos sem expressão nem influência nas massas, sendo que, no caso italiano, não se limitou a abandonar o marxismo-leninismo, repudiou também o nome de comunista.

O movimento sindical, inevitavelmente, acompanhou a deterioração do movimento comunista internacional e conheceu novas divisões ideológicas e organizacionais, descendo a patamares mais elevados de burocratização sindical.

Mas a situação na Europa e as maiores dificuldades internacionais não justificam o defensismo de muitos que dizem ser apenas possível a luta vitoriosa internacional. As dificuldades da luta nacional, que são reais, não isentam da luta nem impedem que a luta seja vitoriosa neste ou naqueloutro país.

No caso português a situação é agravada pelo facto de o Presidente da República, como referimos acima, apresentar evidentes sinais de uma situação que os médicos definirão com total propriedade.

Mas as derrotas, que o foram e profundas, não são definitivas, como o dia-a-dia, a vida, em Portugal e no Mundo, o estão a demonstrar.

E é essa realidade que preocupa os monopolistas e os seus representantes políticos e adoça o discurso de trauliteiros saudosos do fascismo. É esse medo que explica a vinda de monopolistas a terreiro, desdobrando-se em entrevistas e declarações com uma frequência desusada, particularmente Ricardo Espírito Santo Salgado e Fernando Ulrich, em defesa da estabilidade política, eles que são dos principais fautores da profunda e generalizada instabilidade social reinante.

Mas, defensores e participantes desta ofensiva do grande capital contra o trabalho, sabem também que esta feroz ofensiva contra os trabalhadores não é eterna e irá provocar num tempo não determinável, mas necessariamente não muito longo, a assunção do povo como sujeito da História. E vêm-lhes à memória, como recurso, as soluções que durante 48 anos garantiram o fascismo em Portugal.

O mais acabado exemplo disso é o artigo do Gen. Loureiro dos Santos, em 10 de Janeiro de 2012, onde, depois cuidadas palavras de defesa da legalidade do regime de ditadura do grande capital de fachada democrática em que vivemos, e prevendo levantamentos populares contra a presente ofensiva do grande capital, defende, tal como fez o fascismo em Portugal durante 48 anos, o recurso às Forças Armadas para reprimir a luta dos trabalhadores. E mostrando o seu desprezo pela dignidade inerente às Forças Armadas conclui no seu texto que se deve começar desde já o trabalho: «Tal como para as forças de segurança interna coloca-se também para as Forças Armadas a necessidade de tomar medidas preventivas no respeitante à determinação psicológica e motivação moral de que precisam para agirem no quadro do cumprimento da Lei sem hesitação como último garante da autoridade do Estado e da segurança dos cidadãos».

O Estado social, a que o grande capital recorreu através de governos socialistas e sociais-democratas devido à existência da União Soviética, é hoje destruído pelo grande capital numa ofensiva de classe sem precedentes em governos neoliberais, independentemente dos partidos que os formam.

A teoria ensina-nos e a prática já o comprovou sobejamente que a participação em governos da burguesia, não só não contribui para a construção do socialismo como corrói, até à sua destruição como organizações de classe, os partidos que a essa experiência se sujeitaram.

O sistema capitalista não evolui nem modifica ou limita os seus objectivos, destrói-se.

No entanto, apesar de todas as dificuldades subjectivas, vivemos um tempo de fim de ciclo, respira-se um ambiente de imperiosa necessidade de superação de uma formação económico-social velha, caduca, por uma outra nova. A realidade não está inerte, movimenta-se no sentido da superação dos antagonismos estruturais do capitalismo, como o demonstra o aprofundamento da sua crise estrutural, agora chegando a todos os rincões da Terra, o que não acontecia na crise de 1929.

Mas essa movimentação, só por si, não levará à superação do capitalismo, que terá de ter a decisiva contribuição do elemento subjectivo para a sua superação revolucionária. Esta só terá êxito quando, através de um profundo, paciente e revolucionário trabalho organizativo, o projecto emancipador do trabalho for apreendido e assumido pelas massas.

Esse é o caminho.

Praia da Vieira, 12 de Agosto de 2013

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