“Os EUA são o pior inimigo da democracia nas Relações Internacionais”
entrevistado por João Novaes e Rodolfo Machado
O filósofo, historiador e cientista político italiano Domenico Losurdo está agora no Brasil para uma série de atividades e palestras.
Nesta entrevista, concedida em S. Paulo à agência Opera Mundi, o professor da Universidade de Urbino desmonta falácias propaladas pela ideologia do liberalismo. A potência imperial e os sociais-democratas europeus que a apregoam são aqui escalpelizados.
Opera Mundi: Como podemos classificar o atual momento do liberalismo no século XXI? Ao mesmo tempo em que o mundo se encontra em uma crise econômica que já dura cinco anos, os liberais têm obtido sucesso no processo de desmantelamento do estado de bem-estar social.
Domenico Losurdo: O liberalismo está em crise. Você tem razão quando fala do desmantelamento do estado de bem-estar social na Europa. Mas isso ocorre porque estamos em um momento de fraqueza. No fim da II Guerra Mundial, foram o movimento operário e os movimentos populares que conquistaram o estado de bem-estar social, em um momento onde o comunismo contava com muita estima e exercia grande influência.
No decorrer da crise atual, esse ataque ao estado social está fazendo com que muitos comecem a colocar em questão o sistema capitalista liberal. Foram criadas uma série de ilusões após o fim da Guerra Fria, quando se falou até mesmo em “Fim da História” [pelo cientista político Francis Fukuyama] já que o liberalismo teria triunfado em nível planetário. Hoje isso é ridicularizado.
No contexto internacional vemos outros aspectos dessa crise: a decadência econômica do capitalismo ocidental corresponde à ascensão de países como a China. E a China não segue os ditames do “consenso de Washington”, onde o mercado domina tudo e o estado não tem papel na economia. O que presenciamos agora é o “consenso de Pequim”, que defende a intervenção do estado na economia.
OM: Sob o ponto de vista eleitoral, na Europa, Angela Merkel venceu mais uma vez. Já a social-democracia, a centro-esquerda, não soube aproveitar as vitórias nos últimos anos para realizar transformações em seus mandatos, enquanto os partidos de esquerda, salvo o grego Syriza, não apresentaram programas que chamaram atenção de parte considerável do eleitorado.
DL: De acordo. Na Europa ainda vemos uma desorganização de forças que podem ser alternativas ao sistema dominante. No momento, esse sistema político europeu é constituído pelo que chamo de monopartidarismo competitivo, uma categoria que elaborei em meu livro Democracia ou Bonapartismo . Ou seja, os partidos que certamente têm alguma competitividade são expressões da mesma classe social, da grande burguesia, exprimem mais ou menos a mesma ideologia e perseguem projetos políticos quase semelhantes.
Já os partidos populares são muito fracos, não podemos ignorar. Por outro lado, na opinião pública, o prestígio do capitalismo liberal se encontra muito enfraquecido. O problema é como transformar esse descontentamento que se desenvolve em projeto político concreto. E devo reconhecer que, infelizmente, a esquerda e os comunistas estão em grande atraso.
OM: Em suas palestras o sr. cita frequentemente John Locke, ao mesmo tempo pai do liberalismo e associado à African Company, que explorava a escravidão a seu tempo. Isso lembra, aqui no Brasil, o discurso da corrente liberal dominante que defende a tese do estado mínimo alegando que o poder público é obeso, incapaz de gerir uma sociedade cada dia mais complexa e dinâmica. Em resposta, são lembrados os pedidos de ajuda dos bancos aos governos e que grandes sucessos privados como Google e Apple hoje são o que são graças à ajuda governamental e à intervenção estatal. O senhor está de acordo que exista essa dicotomia constante no discurso liberal?
DL: A tese do estado mínimo é ideológica e uma auto apologia. Pegando o exemplo de um país como os Estados Unidos, o estado é mínimo na relação de direitos econômicos e sociais, na garantia dos direitos da saúde, por exemplo. Mas não se considerarmos o aparato policial e militar. Os dois aspectos devem ser considerados.
O presidente dos EUA, Barack Obama, tem o poder de decidir sozinho qual suspeito de terrorismo pode ser eliminado. Isso não tem a ver com garantias liberais. O presidente dos EUA tem até mesmo o poder de iniciar uma guerra, não precisa nem mesmo da aprovação do Congresso – ele o fez agora no caso da Síria, mas não tinha necessidade jurídica para isso.
Cito Immanuel Kant que apresentou a seguinte questão: “Como podemos saber se um líder é déspota ou não?” Quando um líder político diz que a guerra deve ser feita e esta acontece. É aquele que pode decidir sozinho ou quase sozinho o início de uma guerra. Se considerarmos essa afirmação correta, então devemos considerar Obama um déspota, segundo Kant. Portanto, o Estado não é tão mínimo quanto a propaganda apresenta.
Sobre os direitos econômicos e sociais no estado mínimo, Marx já escreveu como este funcionava: a extrema polarização social e a presença de uma pequena minoria de luxo de um lado, com extrema pobreza de outro, devem ser tratadas como temas privados. Mas quando há crise econômica de grande envergadura, mesmo o estado liberal mínimo deixa de sê-lo porque procura socializar os prejuízos enquanto o lucro é privatizado. É assim que funciona o estado liberal.
OM: O liberalismo também se arroga como um legítimo defensor da liberdade, em contraposição ao socialismo. Em sua opinião, como esse conceito e o da democracia devem ser desenvolvidos a partir de uma ótica de esquerda?
DL: Acredito que a esquerda, incluindo a comunista, deve evitar um erro que cometeu no passado: o Estado de Direito e demais garantias jurídicas para os direitos individuais não são apenas instituições formais, mas liberdades muito importantes, parte integrante da democracia.
Porém, vejamos todos os demais aspectos: Marx descreve, no Manifesto Comunista, que dentro da fábrica, no local de trabalho ou produção, existe sempre uma forma de despotismo. Não somente pelos baixos salários dos trabalhadores, mas esse é só um dos pontos.
A crítica é tanto no plano econômico quanto no político. Outro exemplo com os Estados Unidos: os empresários fazem o que querem com os trabalhadores, mandam-nos para o olho da rua sem garantias trabalhistas, em condições precárias. E também é muito difícil e perigoso para os trabalhadores formarem um sindicato, porque sempre ocorre chantagem de todos os lados.
Terceiro aspecto: se pegamos, por exemplo, um estado como Israel, as garantias que são acordadas aos cidadãos israelenses correspondem à total falta de garantias aos palestinos. É ridículo para um regime que se diz democrata julgar sem a abstração daqueles que são excluídos de garantias. Em Israel está muito claro: garantias para os privilegiados; e prisões arbitrárias, expropriação de terras, tortura e mesmos os assassinatos dos desprovidos.
Outro aspecto no contexto internacional em que ainda vemos a persistência de relações de despotismo: se os países ocidentais pedem à ONU que esta autorize uma guerra e ela os legitima, respeitam a decisão. Mas se ela se recusa a legitimá-la, o ocidente faz a guerra do mesmo jeito. Isso é a negação total da democracia. O ocidente reivindica para ele mesmo, e só para ele, o direito de dar início a uma guerra mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança. Ou seja, não há qualquer democracia nas Relações Internacionais.
E se ainda acrescentarmos a questão da espionagem universal, denunciada pela presidente brasileira Dilma Rousseff, podemos concluir que são os Estados Unidos o pior inimigo da democracia nas Relações Internacionais.
Cito o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt [também conhecido pelas iniciais FDR] quando, durante a II Guerra Mundial, pronunciou o célebre discurso das “Quatro Liberdades” (o 4 Freedoms), em 1941. Nesse contexto, FDR diz não somente sobre as liberdades liberais clássicas, de expressão e crença, mas de viver sem penúria e medo.
Considerando isso, qual país que pretende apagar liberdades, mesmo em nível internacional, através do consenso de Washington e pelas organizações controladas ou hegemonizadas pelos EUA, como o Banco Mundial e o FMI? Esfacelando o [estado] de bem-estar social, ou seja, a liberdade de viver sem penúria?
Sobre a liberdade de viver sem medo, FDR se dirigia à Alemanha nazista – e com toda razão, porque ela representava a todo o mundo e principalmente aos vizinhos uma ameaça constante de agressão, dificultando a vida com liberdades democráticas dentro de um contexto de militarização.
E qual estado hoje faz baixar a ameaça de agressão? Quem tem bases militares em todo o mundo? Quem reivindica o direito de intervir nos outros? Mesmo com as liberdades teorizadas pelo presidente dos EUA, podemos dizer que hoje o pior inimigo delas são exatamente os Estados Unidos da América.
OM: A América Latina conseguiu desenvolver, com os governos de esquerda dos últimos anos, uma resposta satisfatória e sustentável à corrente neoliberal nascida através do consenso de Washington? E os governos de esquerda que optaram pelo caminho da reforma sem ruptura, eles podem ser comparados à social-democracia europeia?
DL: É um erro, sob o plano político e filosófico, comparar os movimentos de esquerda na América Latina com a social-democracia europeia. Na política externa, por exemplo, eles se colocaram em posição contrária às políticas de guerra dos EUA, como na Líbia e na Síria.
Todos podem ver que o “socialista” François Hollande [presidente da França] é um dos maiores campeões da guerra. Seria falso comparar essas duas realidades. Na Europa, os autoproclamados partidos socialistas fazem parte de uma esquerda que defino pessoalmente como “esquerda imperial”, uma esquerda bem entre aspas. Não temos esse fenômeno da esquerda imperial na América Latina. Enquanto países como a França são governados por esses dirigentes que se dizem “socialistas”, estes desenvolvem um programa explicitamente colonial.
De outro lado, vemos a América Latina sob a direção de novos partidos, alguns mais, outros menos à esquerda, que continuam a luta contra a Doutrina Monroe. A Revolução Cubana foi a primeira a questioná-la. Hoje vemos que muitos a contestam, ela não tem mais o prestígio de outrora.
Muito dessa luta contra a Doutrina Monroe, contra o imperialismo e o perigo de intervenção colonial fez com que os latino-americanos compreendessem a necessidade de transformar a economia. Na luta para salvaguardar a independência econômica, muitos passaram a contestar o consenso de Washington.
À luz da política estrangeira e econômica, a tendência principal da região é de esquerda e progressista. Há países mais avançados do que outros, enquanto um terceiro grupo começa a traçar esse caminho. Penso que, num futuro próximo, a América Latina vai exercer um papel importante e progressista sobre o plano nacional e internacional.
A PRODUÇÃO DE EMOÇÕES, NOVO INSTRUMENTO DE CONTROLE DA CLASSE DOMINANTE
OM: No final de Democracia ou Bonapartismo, o senhor afirma que vivemos uma fase de “desemancipação. A tal ponto em que a chamada ‘Revolta de Los Angeles’, de 1992, foi um caso de racismo institucional que mostra que os negros só podem protestar recorrendo a uma espécie de ‘jacquerie’ urbana, de revolta enraivecida e destrutiva, que, no entanto, em nada modifica o status quo existente”. Num contexto de crise econômica e política na Europa, de ocaso da chamada Primavera Árabe, de guerra civil na Síria: qual o sentido que deveriam tomar as mobilizações populares para, de fato, modificar o estado de coisas existente no capitalismo do século XXI?
DL: Em Democracia ou Bonapartismo, quando falo de desemancipação faço referência ao Ocidente. Vejamos como exemplo o já falado desmantelamento do Estado de bem-estar social. Nessa situação, e no seio do contexto do “monopartidarismo competitivo”, as classes populares não tem mais representação política no Parlamento, estão excluídas. Não sou eu que digo isso: há pesquisadores dos EUA que se referem ao seu país como uma plutocracia, ou seja, o poder emanado da riqueza. Nesse contexto, as classes populares não têm possibilidade de serem representadas no Parlamento.
Portanto, o que ocorreu em Londres em 2011 e em outras cidades recentemente, esses grandes protestos populares, já foi cantado o que aconteceria depois. Na época da Revolução Francesa, houve primeiro a explosão de cólera, com queimas de propriedades de aristocratas, mas em seguida a situação sempre se voltava para o restabelecimento do poder da aristocracia. E hoje vemos exatamente a mesma coisa. Como foram os casos de Los Angeles em 1992 e mais recentemente em Londres e até Paris. Estou totalmente de acordo.
Podemos acrescentar um exemplo parecido: quando os EUA começaram a segunda Guerra do Golfo contra o Iraque, em 2003, houve grande base de oposição e protestos contra a guerra. Já em 2011, na guerra contra a Líbia, não houve nada digno de nota. Aí reside a fraqueza dos movimentos espontâneos, que se mostra cada vez mais forte porque a grande plutocracia controla a mídia, os jornais, a TV.
Já o Oriente Médio é diferente. De um lado há grandes movimentos populares; de outro temos tentativas de recolonização da região. E porque isso? De um lado, para favorecer Israel, que precisa da destruição de todos os outros países. Do outro há o programa-chave dos EUA, e de Obama em particular, de concentrar o aparato militar contra a China na Ásia. E com colaboração dos poderes coloniais europeus tradicionais, França e Reino Unido, que foram encorajados a restabelecer algum tipo de dominação neocolonial por lá.
OM: Em suas pesquisas, o senhor destaca o racismo e a indústria do anticomunismo, como componentes articulados da história norte-americana. “A segregação e o linchamento dos negros era um método peculiar de combater os comunistas”. O “bonapartismo soft” dos EUA reforça a recorrência de um estado racial e de uma democracia para o povo dos senhores [termo de Losurdo para se referir ao povo opressor]? O senhor poderia desenvolver esse ponto?
DL: Devemos fazer uma distinção entre o plano histórico e o atual. Está claro que, para o povo dos senhores, o norte-americano, os EUA eram uma democracia. É ridículo quando [os ex-presidentes dos EUA] Bill Clinton e mesmo Barack Obama disseram que os EUA são a mais antiga democracia do mundo. É uma teoria insustentável mesmo sob o ponto de vista histórico, o equivalente a considerar os negros escravos e os índios exterminados durante a história como descartáveis. É a continuação do racismo sob o plano ideológico.
Não devemos pensar a história como o “eterno retorno” de Nietzschze, simplesmente dizendo que nada muda. Pois seria o mesmo que dizer que os grandes movimentos de protestos populares, mesmo as grande revoluções, não serviram para nada. O que é falso, eles mudaram muita coisa.
No século XX, após a Revolução de Outubro, tivemos um número gigantesco de revoluções anticolonialistas em nível planetário. A emancipação parcial dos afro-americanos nos EUA é um desses aspectos. Podemos especificar esse movimento de luta por emancipações, por exemplo, após a Revolução de Outubro. Pois é nela que se começa a desenvolver mais fortemente as organizações de movimentos negros. Cito em meus livros a famosa frase de um de seus militantes: “me acusam de ser bolchevique? Bem se ser bolchevique significa ser contra o linchamento e a supremacia branca, então sou bolchevique”.
Podemos citar ainda nesse contexto o que se passa no primeiro ano da Guerra Fria. Em 1951, a Suprema Corte dos EUA estava debatendo se a segregação racial era ou não constitucional. O Departamento de Estado enviou um relatório aos juízes defendendo a inconstitucionalidade, caso contrário, a decisão poderia “favorecer o crescimento de movimentos comunistas e revolucionários” dentro do próprio país. Mesmo essa emancipação modesta não foi decidida de forma espontânea pelas classes dominantes, mas por medo do movimento comunista, em resposta a uma grande revolução que se desenvolvia no mundo.
Mesmo Martin Luther King, em sua fase mais radical, falava positivamente das revoluções anticoloniais.
Qual a situação atual dos afro-americanos? Na população presidiária, a porcentagem é terrível, a população negra tem porcentagem muito superior em relação à total. O mesmo pode se notar para os condenados à morte.
Nos últimos anos, o livro de uma escritora negra dos EUA, Michelle Alexander, fala do encarceramento dos negros nos EUA, no livro O novo Jim Crow [ The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness (2010)]. Segundo ela, ainda existe uma discriminação muito negativa contra os negros que não é determinada pela lei, mas pelas relações sociais e econômicas vigentes.
Mas se queremos compreender a persistência da democracia sobre os povos dos senhores, devemos nos focar em outro aspecto: nas relações que os EUA desenvolvem com seus “estrangeiros”. Obama lê uma lista toda terça-feira preparada pela CIA para escolher o destino dos alvos dos drones. E os mais temíveis terroristas são eliminados sem sentença ou devido processo legal. Se, por um lado, ele atinge até cidadãos dos EUA, por outro também acerta estrangeiros no Iêmen e no Paquistão.
Logo após o golpe de Estado contra Hugo Chávez em 2002 os EUA rapidamente reconheceram o novo presidente. A democracia não se aplicava à Venezuela. Mas dessa forma podemos compreender a democracia deles. Como quando atacaram Cuba dois anos depois da Revolução na Baía dos Porcos.
Hoje a democracia para o povo dos EUA é a do povo “eleito pela providência”, porque essa ideologia dura ainda, George W Bush falava muito dela, dos EUA “como a nação eleita por Deus para dirigir o mundo”. Mesmo Clinton dizia que os EUA tinham a tarefa “eterna” de governar o mundo.
Podemos notar que essa ideologia não desapareceu e deverá persistir.
OM: Quais são as principais modalidades de lutas de classes que encontramos nos dias de hoje?
DL: Sobre a luta de classes, no ” Manifesto Comunista” e em outros textos de Marx e Engels, ela é sempre escrita no plural, pois pode se dar de várias formas. Por exemplo, Engels lembra da opressão de classes contra a mulher como a primeira forma de opressão de classes. Para os negros que foram escravos nos EUA, a luta contra a escravidão é certamente uma delas. Portanto, devemos considerar a opressão de classes toda vez que um povo é submetido e reduzido a alguma forma de escravidão.
Já o nazismo foi uma tentativa de retomada e radicalização da tradição colonial, pois queria estabelecer na Europa Oriental um verdadeiro sistema de escravidão, não há dúvidas sobre isso. E a luta da URSS contra essa tentativa de escravidão de um povo inteiro foi uma verdadeira luta de classes.
Seria ridículo considerar luta de classes apenas como uma reivindicação pelo aumento de uma fração do salário de operários e não uma luta de classes para erradicar a escravidão de um povo inteiro.
Há três tipos de luta de classes atualmente. Quais são elas?
Primeira: a luta popular contra a burguesia. Segunda: a das mulheres pela emancipação – e não devemos pensar somente no Ocidente, onde as primeiras a serem afetadas e demitidas em uma situação econômica difícil são as mulheres. E terceiro: a de todos os povos oprimidos.
Coloco a questão: a gigantesca revolução anticolonial que se desenvolveu no século XX, que significou o desmoronamento do colonialismo clássico e da supremacia branca dos EUA. Podemos dizer que essa versão do colonialismo acabou ou continua? Minha resposta é: continua no caso clássico, como por exemplo quando os palestinos são expropriados de suas terras sistematicamente, marginalizados etc. A luta nacional do povo palestino é uma grande luta de classes. Nesse caso o colonialismo se manifesta de forma clássica.
Mas, para a maior parte do mundo a revolução anticolonial se manifesta de forma diferente. Lênin fez uma distinção entre “anexação política”, essa clássica do colonialismo, que se refere a um país que engloba a terra conquistada ao seu território; e a “anexação econômica”, reforçada às vezes por intervenções militares ou simples ameaças de intervenção.
O que dizia Mao Tsé-tung na véspera da conquista da tomada definitiva do poder na China pelo PCCh e na fundação da República popular da China?: Sim, conseguimos a independência política, mas dependemos dos EUA no plano econômico. Se essa situação não acabar logo, seremos sempre dependentes. Nesse contexto, cito um importante autor anticolonialista dos anos 1960, Frantz Fanon, em sua obra, Les Damnés de la Terre, sobre a luta da independência argelina. Ele diz que já que as grandes potências coloniais são obrigadas a reconhecer a independência de alguns países no século XX, passam a se comportar de outra maneira: “vocês queriam a independência? Vocês as têm. Agora morram de fome”.
Ou seja, Lênin, Mao e Fanon compreenderam que há centenas de etapas numa revolução anticolonialista, sobretudo uma revolução integrada ao plano econômico. O desenvolvimento econômico é uma condição necessária para tornar definitiva a independência conquistada no plano político.
A luta da China pelo desenvolvimento econômico é uma luta de classes, e mesmo a dos países emergentes para evitar a anexação econômica, também. Infelizmente, não foram todos os países que conseguiram.
Podemos pensar no Haiti, local de uma das maiores lutas anticoloniais da história: torna-se o primeiro país do continente americano a abolir a escravidão. Ainda ajudou Simón Bolivar a combater a Espanha sob a condição de que este abolisse escravidão e ele o fez, por um certo período. O Haiti jogava um importante papel internacional na luta contra a escravidão. Mas o que aconteceu depois? Sim, houve erros na administração interna, mas também a França o ameaçou de intervenção militar. Para se salvar dessa ameaça, o governo de Haiti aceita um acordo com o qual concorda em pagar pesada indenização à França pela perda da propriedade pós-independência. A situação foi uma dívida gigantesca para o Haiti que, de uma semi-colônia da França no passado, hoje é semi-colônia dos EUA.
Isso vale para o mundo árabe também, e o exemplo é o Egito. O país tinha um passado anticolonial notável. Qual a situação atual? Infelizmente depende, de um lado do dinheiro norte-americano e de outro do dinheiro de países do Golfo como Catar e Arábia Saudita. O Egito poderia conduzir uma política muito mais audaciosa e radical, mas não tem os meios econômicos para isso.
OM: Marx dizia que as ideias da classe dominante são em cada época as próprias ideias dominantes, já que “a classe que dispõe dos meios de produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual”. Preocupa esse absoluto controle da mídia de massa pelo poder burguês, ainda mais forte hoje do que na época de Marx? Como lidar com tal monopólio no avanço das lutas populares?
DL: Tem razão em acrescentar que hoje a situação se tornou ainda mais difícil, podemos exprimi-la da seguinte maneira: Marx fala da classe dominante burguesa que, com o controle dos modos de produção intelectual tem o monopólio da produção e da difusão das ideias.
Mas hoje as coisas mudaram porque com a televisão e as novas mídias, a classe dominante não tem somente esse monopólio de produção de ideias, mas também, o que é muito importante, o monopólio da produção das emoções. Transmitem-se imagens horríveis que podem ter sido escolhidas em uma série de outras imagens propositalmente ou que pode até ser falsa. [Através desse artifício] se consegue provocar uma indignação geral [na opinião pública] e esse monopólio de produção de emoções que é muito importante para o início das guerras.
Quer dizer, no Iraque, por ocasião da segunda Guerra do Golfo, dizia-se que Saddam [Hussein, ex-presidente do Iraque] tinha armas de destruição em massa, que ele poderia empregá-las a qualquer minuto. Ou pior, na ocasião da primeira guerra do Golfo, todos foram convencidos de que as forças de Saddam mataram um sem número de bebês, uma história totalmente inventada. Mas, com o monopólio de produção das emoções essa história enganou e provocou uma indignação generalizada de parte da opinião pública.
Devemos tomar consciência dessa nova situação: das ideias e emoções, com uma tecnologia e psicologia muito refinadas e sofisticadas. Nesse sentido, o aparelho militar do imperialismo ficou mais forte não só no domínio militar clássico, mas no plano multimidiático. Armas midiáticas induzem a opinião pública a ser favorável ao início de uma guerra.
O original encontra-se em 1ª parte e 2ª parte (NR: efectuadas ligeiras alterações ao texto).
Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/