“Genebra 2”: tudo o que os Estados Unidos e a Arábia Saudita queriam
de Roma (Itália)
Representante da ONU e da Liga Árabe responsável por supervisionar a primeira rodada de negociações entre os representantes de uma parte da oposição e emissários do governo sírio reconheceu que os resultados foram mínimos (ONU)
A segunda Conferência sobre o futuro político da Síria acabou em Genebra com resultados políticos mínimos que em nada melhoram a situação dos civis, dos presos e dos refugiados.
Foi um resultado com valor perto do “0,5”, visto que o único sucesso registrado pelo encarregado da ONU e pela Liga Árabe, o argelino Lakhdar Brahimi, foi ter conseguido agendar outra sessão de negociações para o dia 10 de fevereiro.
Muitos acreditam que nesta data os representantes de Bashar Al-Assad poderão aceitar a proposta de definir os termos e a metodologia para formar um governo de transição se o que sobrou dos representantes da Coalizão Nacional Síria (CNS) (apenas 35%), terão autonomia política e decisória para aceitar a contraproposta do chefe da delegação síria, Bashar al Jaafari, segundo o qual o atual presidente Bashar al-Assad tem o direito de concorrer nas eleições organizadas pelo governo de transição, visto que as sondagens lhe dão 67% das intenções de voto.
A popularidade Assad cresceu nesses últimos dois anos, sobretudo em função dos massacres que os grupos armados jihadistas, fundamentalistas sunitas e da Al Qaeda realizaram no centro e no norte do país contra as comunidades cristãs, drusas e alawitas.
Porém, para entender o que vai acontecer no dia 10 de fevereiro é preciso antes de tudo analisar em termos políticos e geoestratégicos o que está por trás da Conferência “Genebra 2”, visto que nenhum dos participantes quer sair perdedor.
Os dólares da Arábia Saudita
No que diz respeito às questões relacionadas com a guerra na Síria, a “grande” mídia trabalha em paralelo com a TV Al Jazeera, que, atualmente, é considerada a televisão mais manipuladora do mundo – tanto que hoje quatro dos seus correspondentes estão presos no Egito e outros oito estão sendo procurados pelo Tribunal Militar do Egito por “ter falseado a verdade transpondo imagens de acontecimentos no lugar de outros e, assim obter, efeitos escandalosos que contrariam a realidade”.
De fato, não é a primeira vez que os correspondentes desta TV e, sobretudo seus editores da redação central em Doha (capital do Qatar) criaram autênticos falsos para sufragar campanhas políticas. Por exemplo, ficaram famosas as falsas reportagens realizadas durante a guerra na Líbia e antes desta, na Bósnia e em Kosovo.
De fato, segundo a Al Jazeera, a oposição síria é um organismo unificado, bem organizado, que respeita a Convenção de Genebra, os direitos humanos e que já libertou 90% do território da Síria.
Em suas notícias, esta emissora chegou a dizer que o governo de Bashar al-Assad sobrevive fechado em alguns bairros da capital Damasco. E foi em função dessa lógica midiática que a Arábia Saudita determinou que as negociações em Genebra deveriam seguir a agenda fixada pelos conselheiros do rei Abdullah. Algo que, na prática, interfere e obstaculiza, também, as posições da Casa Branca, porque a monarquia saudita está usando estas negociações para impor sua liderança em todo o mundo árabe, que depois da contraditória “primavera” ninguém sabe por onde irá nos próximos anos.
Por isso, o Rei Abdullah exigiu que o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, recusasse o convite ao Irã. Um pedido que, na realidade constrangeu o próprio Barack Obama, visto que com o novo presidente iraniano, Rouhani, os EUA estavam definindo novas regras sobre o controle das centrais nucleares no Irã e no intuito de disciplinar seu uso civil para a produção de energia. Considerando que neste momento os EUA vivem um momento difícil, se não crítico no Oriente Médio, todas as decisões da Arábia Saudita, do Qatar, da Turquia e de Israel são silenciosamente aceitas pela Casa Branca.
Mas a aversão e o ódio da Arábia Saudita pelo Irã são somente por causa do conflito religioso existente entre sunitas e xiitas? É claro que não, visto que a questão religiosa encobre uma luta geopolítica que iniciou há muitos anos pelo controle do mundo árabe.
Por exemplo, Osama Bin Laden, príncipe da família saudita, não foi por acaso combater no Afeganistão contra o exército soviético e depois ajudar os talebans na criação de um regime, em que as regras do fundamentalismo religioso sunita eram também as leis para o desenvolvimento da sociedade afegã.
Na questão síria o conflito político entre a Arábia Saudita e o Irã é ainda mais profundo. Por isso o presidente iraniano, Rouhani, advertiu recentemente que “o primeiro passo para resolver a crise política na Síria é conseguir a expulsão dos terroristas do país”. Em poucas palavras todos os grupos islâmicos financiados e armados pela Arábia Saudita e pelo Qatar, nomeadamente a Brigada Farouq e a Frente Jabhat Al-Nusra, deveriam ser desarmados e julgados pelos crimes que cometeram contra as comunidades cristãs, alawitas e drusas.
Mais complexo é entender os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), que querem liquidar fisicamente todos os “infiéis” e criar um novo grande califado que compreenda o norte do Líbano, o norte e o centro da Síria e até a parte oeste do Iraque.
Em segundo lugar, os príncipes da família saudita que assediaram a fase preparatória da Conferência “Genebra 2”, fizeram outra imposição à casa Branca relacionada com a escolha dos membros do Conselho Nacional Sírio (CNS), uma vez que todos os chefes dos grupos armados jihadistas e fundamentalistas ligados a Al Qaeda se recusaram negociar com o governo de Damasco. Assim 65% dos membros do CNS foram vetados pela Arábia Saudita, que comprou a fidelidade dos restantes dando a cada membro um cheque no valor de 2 milhões de dólares.
Entre os líderes do CSN vetados pelos sauditas, o mais famoso é Haytham Manna, líder do Comitê de Coordenação Nacional, um dos mais conhecidos opositores de Bashar al-Assad. A ele os sauditas lhe ofereceram 5 milhões de dólares para ficar no CSN apoiando a linha política traçada pelos representantes do Rei Abdullah. Um cenário que nenhum correspondente ou editor da Al Jazeera ou da Al Arábia tiveram a coragem de revelar. Mas também a CNN, a BBC, a France Presse, a Reuters etc.etc. não disseram que atualmente nas regiões centrais e nortenhas da Síria os grupos jihadistas entraram em guerra com os islâmicos ligados à Al-Qaeda, provocando a morte de 1.878 pessoas, tanto que o próprio líder da Al-Qaeda, Aiman al-Zawahiri, lançou um apelo pedindo aos chefes dos grupos islâmicos e jihadistas “para acabar a guerra fratricida em curso, visto que o único que se beneficia com isso é o ditador Bashar al-Assad…”.
Mas se, em Genebra, os príncipes sauditas conseguiram comprar Murhaf Juejati, Anas Abdeh e o porta-voz da Coalizão Nacional Síria, Louay Safi, na Síria o poder da corrupção não conseguiu mudar a correlação das forças, por isso a dramática realidade do conflito continua dividindo o país em três setores: a) o sul e o centro-sul definitivamente controlados pelo exército de Damasco; b) o centro e o centro-norte transformados em um permanente campo de batalha, potencialmente dominado pelos grupos armados islâmicos ligados à Al-Qaeda e aos jihadistas do EIIL (mesmo assim duas cidades importantes, Homs e Aleppo, há mais de um ano, permanecem assediadas pelo exército de Damasco); c) o norte é totalmente controlado pelos homens do Exército de Libertação Sírio, sustentado e monitorado pelos EUA e Turquia.
Diante desse quadro é evidente que os membros minoritários do CSN que participaram nas negociações de Genebra fizeram o que a Arábia Saudita queria, negando-se a debater todas as propostas que poderiam favorecer o exército do governo ou a imagem política de Bashar Al-Assad, como, por exemplo, a troca dos presos; permitir à população civil sair das cidades cercadas (Homs e Aleppo) e, consequentemente permitir a rendição, com base na Convenção de Genebra dos sírios membros dos grupos armados, enquanto os estrangeiros seriam processados e extraditados.
A fórmula para congelar os esforços empreendidos pelo negociador da ONU, Lakhdar Brahimi, foi a retórica reivindicação dos sauditas, segundo os quais “primeiro o Presidente Bashar al-Assad deve renunciar e depois negociaremos o resto”.
Kerry abandonou Aleppo
Faisal Mekdad, número dois da delegação síria na Conferencia de Genebra, estava convencido de que a proposta de realizar corredores humanitários em Homs e Aleppo iria vingar, já que os EUA estavam interessados em salvar a vida dos membros do ELS, que há mais de um ano estavam cercados na cidade de Homs. Porém, se os civis destas duas cidades podiam finalmente sair, os rebeldes não podiam mais usá-las como escudo, tal como fizeram até agora e nesse caso para eles a rendição seria a única solução, de que o único beneficiário seria o exército de Bashar Al-Assad.
O drama disso tudo é que a CIA, através do Departamento de Estado, manifestou seu interesse em salvar apenas os combatentes do ELS que estavam sitiados em Homs. Para os islâmicos e os jihadistas que ficaram cercados em Aleppo, John Kerry não disse nenhuma palavra.
Esse fato alterou bastante o andamento das frágeis negociações de Genebra, porque se por um lado eram evidentes os contrastes na CNS entre os homens ligados à Arábia Saudita e os independentes, também era claro que entre o embaixador estadunidense Ford e o russo Bogdanov não havia nenhuma linha em comum, sobretudo logo após John Kerry ter reiterado a retórica reivindicação de negociar somente quando Bashar Al-Assad deixar o poder.
Quanto a este propósito Faisal Mekdad sublinhou as principais contradições do posicionamento saudita e do estadunidense ao lembrar:“…Mas se o presidente Bashar se demite quem garante o vazio político e institucional que se criará na Síria? Quem vai legitimar a implementação de um Estado de direito? Os grupos jihadistas do dito Estado Islâmico do Iraque e do Levante ou a Brigada Farouq e a Frente Jabhat Al-Nusra, aliados da Al-Qaeda? Quem terá a autoridade política para organizar e realizar eleições livres? E quem será aquele que vai garantir a promessa de se criar um regime democrático? Os representantes do ESL ou os dos grupos islâmicos que se recusaram vir a Genebra para negociar o futuro da Síria?….”.
John Kerry e os príncipes sauditas sabem muito bem disso e é pena que na grande mídia nada disso seja veiculado, enquanto as populações da Síria continuam sofrendo os efeitos dramáticos de uma guerra civil que somente a Arábia Saudita, os Estados Unidos e seus aliados da OTAN desejaram, planejaram e monitoraram.
Brasil de Fato