Espanha no turbilhão: a história voltará a andar?

O Estado espanhol está em turbilhão. Numa só semana se produziram mais mudanças do que em todos os anos desde o fim da ditadura de Francisco Franco. Mais importante que isso são as possibilidades que se abrem e deixam o destino desse gigante europeu mais do que incerto, totalmente em aberto.

Nas eleições europeias deste ano o bipartidarismo ruiu com o naufrágio eleitoral dos partidos centrais PSOE (centro-esquerda) e PP (direita) que perderam juntos mais de 5 milhões de votos que em 2009, e pela primeira vez desde a redemocratização somam menos de 50% (49,06%), quando em 2009 somavam 81%! O PSOE perdeu 42% dos votos que teve em 2009 e o PP 40%[1]! O pior resultado até então era de 1989 quando somaram 61%. O PP obteve 16 assentos no parlamento Europeu e o PSOE somente 14, totalizando apenas 30 assentos num total de 54, contra os 47 em 2009 (em 50)[2]. Se a abstenção foi enorme (54,1%) como em toda a Europa (57%), o mais notável foi o crescimento dos extremos, em particular da esquerda, com a pulverização da eleição: a Izquierda Plural (coalizão com o Partido Comunista Espanhol à cabeça) foi o terceiro partido mais votado, com seis parlamentares[3]; o novo agrupamento PODEMOS, emerso do movimento dos indignados, surgido há apenas quatro meses e com um orçamento de apenas 100 mil euros, ficou em quarto com cinco parlamentares (tendo ficado eleitoralmente em terceiro nalgumas regiões, como em Madrid) [3][4]; o partido fascista União, Progresso e Democracia (UPyD ) ficou com quatro [3] e outros partidos completaram as vagas.

Esse resultado é um repúdio não só a política de austeridade realizada pelo governante PP, do primeiro-ministro Mariano Rajoy, como ao PSOE em sua similitude com o partido de direita, tornando impossível distinguir entre os dois quando no governo. A população do Estado Espanhol expressou sua insatisfação com esse rodízio de partidos e rostos que não altera em nada as políticas neoliberais, geradoras da crise e que mantêm as altas taxas de desemprego (em março de 25,3% em geral e de 53,9% entre os jovens!)[5]; a opressão contra as nacionalidades, expressa em particular na negação ao direito à autodeterminação nacional, como na Catalunya, no País Basco e Galiza; bem como a austeridade para o povo e a generosidade para com os ricos. Nem mesmo a pressão pelo voto útil conseguiu canalizar os votos de protesto ao governo atual no seu gêmeo na oposição, o PSOE.

A primeira consequência produzida pela derrota histórica do PSOE foi a queda de Alfredo Pérez Rubacalba de sua direção. Ele já havia protagonizado o pior resultado eleitoral anterior, quando em 2011 nas eleições gerais teve apenas 28,76%[6]. O PSOE perdeu votos mesmo em seus bastiões. Só como exemplos: perdeu 328.314 em seu maior reduto eleitoral, na Andaluzia, onde governa; na Catalunya, onde foi a primeira força em 2009 com mais de 700.000 votos, obteve menos de 360.000, se situando apenas na terceira posição [7].

Este pode ser um momento histórico: o rei Juan Carlos I, após quase quatro décadas de reinado abdicou. É verdade que o faz para tentar reabilitar a combalida imagem da monarquia espanhola. As despesas absurdas da Casa Real, como a viagem de caça de Juan Carlos ao Botswana – onde se soma sua abjeta atitude como então presidente de honra da ONG ambientalista WWF de matar elefantes – isto enquanto uma grande parte da população espanhola se vê naufragada no desemprego e lutando contra os programas de austeridade[8]; as denúncias na Justiça envolvendo membros da família real em crimes, como o duque de Palma, Iñaki Urdangarin, e sua esposa, a infanta Cristina no caso Nóos levou ao desgaste da monarquia espanhola. Entre janeiro de 2013 e janeiro de 2014 a parcela da população que queria que o rei abdicasse passou de 44,7% para 62% e entre 2012 e 2014 a porcentagem que tinha uma opinião boa ou muito boa do rei caiu de 76% para 41,3%, e 69,4% criam que o rei não poderia recuperar o prestígio da monarquia [9]. Mais importante ainda: pela primeira vez os que apoiavam a monarquia eram menos da metade, com 49,9%, contra os 53,8% do ano anterior [9]. E, a nota de avaliação da monarquia pela população, pelas pesquisas do CIS, caiu desde outubro de 2011 abaixo da nota 5 de aprovação, com 4,89 e em abril de 2014 chegou a apenas 3,72, sendo que em seu auge nos últimos vinte anos, em dezembro de 1995, recebia 7,48 [10]. A renúncia de Juan Carlos tenta reverter essa situação, mudando o rosto à frente da monarquia para manter a instituição: na pesquisa do El Mundo-SIGMA DOS, 56,6% acreditava que a ascensão do Príncipe Felipe poderia recuperar o prestígio. Contudo, as manifestações convocadas para hoje mesmo, por várias organizações republicanas, exigindo um referendo para decidir pela III República Espanhola deixam claro que isto parece muito longe [11].

Outro fato que aponta para o ruir do regime espanhol é o crescimento consistente do independentismo junto das nacionalidades oprimidas, como se expressou nas manifestações recentes na Catalunya, mas particularmente nas últimas eleições europeias. Ao contrário do restante do Estado Espanhol, a afluência na Catalunya e no País Basco (incluindo Navarra) elevou a taxa de participação. Só na primeira 10% a mais da população que em 2009 votou [12]. A coalizão nacionalista de esquerda Euskal Herria Bildu foi a formação mais votada somando o País Basco e Navarra, sendo a segundo em cada uma, e os partidos abertzales, nacionalistas bascos (EHBildu e PNV) tiveram mais de 55% de votos no País Basco [13]. Na Catalunya os partidos independentistas conquistaram a maioria dos votos e a Esquerda Republicana da Catalunya (ERC) foi a grande vitoriosa, à frente dos nacionalistas de direita do CiU (que pagam pela sua política de austeridade e sua adesão à independência oportunística só recentemente). A ERC e o EHBildu são os defensores da independência unilateral[13]. Lembre-se que no dia 9 de novembro haverá o plebiscito na Catalunya sobre a independência, e que apesar da negação de Madrid, os preparativos seguem.

Será que estamos frente ao fim do regime da transição, surgido no Pacto de Moncloa, que manteve o edifício do franquismo em pé e apenas deu umas pinceladas democráticas? Será que o bipartidarismo que mantêm os grandes setores econômicos intactos enquanto a população afunda no desemprego chegou ao fim? Será que a monarquia restabelecida por Franco está com os dias contados e veremos o início da III República? Será que as nacionalidades oprimidas se libertarão da prisão espanhola? Resumindo: será que a história voltará a andar depois de ter o relógio parado com a vitória do golpe franquista no dia 1° de abril de 1939?

*Carlos Serrano Ferreira é pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia da UFRJ (LEHC-UFRJ) e militante do PCB-RJ.

Referências bibliográficas:

  1. Péreza, Roberto. “La crisis del bipartidismo: PP y PSOE ceden a lós partidos minoritários 17 escaños respecto a 2009”. ABC, 26 maio 2014. Disponível em: http://www.abc.es/elecciones-europeas/20140525/abci-psoe-peor-resultado-historia-201405252310.html.
  2. Idem.
  3. Resultados das eleições europeias retirado do site oficial: http://www.resultados-eleicoes2014.eu/pt/country-results-es-2014.html.
  4. Woods, Alan. El significado de las elecciones europeas. Disponível em: http://www.marxist.com/el-sifnificado-de-las-ellecciones-europeas.htm.
  5. EUROSTAT. Euro area unemployment rate at 11.8%. 2 maio 2014. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_PUBLIC/3-02052014-AP/EN/3-02052014-AP-EN.PDF.
  6. Muñoz, Fernando. “Elena Valenciano deja al PSOE hundido y a três puntos de distancia del PP”. ABC, 26 maio 2014. Disponível em: http://www.abc.es/elecciones-europeas/20140525/abci-resultados-psoe-europeas-valenciano-201405252032.html.
  7. Cervera, César. “En busca de los votos perdidos del PSOE”. ABC, 27 maio 2014. Disponível em: http://www.abc.es/espana/20140527/abci-busca-votos-perdidos-psoe-201405262136.html.
  8. Jornal de Notícias. “Caça ao elefante origina críticas ao rei de Espanha”. Jornal de Notícias, 16 abril 2014. Disponível em: http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=2422179&page=-1.
  9. EL MUNDO-SIGMA DOS. “Una institución em crisis (I)”. El Mundo.es, janeiro 2014. Disponível em: http://www.elmundo.es/album/espana/2014/01/01/52c409c4268e3eab218b456d.html.
  10. Europa Press. “Los españoles, muy desencantados con la Monarquía”. Público.es, 02 junho 2014. Disponível em: http://www.publico.es/politica/524646/los-espanoles-muy-desencantados-con-la-monarquia.
  11. Dorado, Maria Ruiz-Ayúcar. “La ciudadanía se echa a la calle para pedir un referéndum por la III República”. Público.es, 02 junho 2014. Disponível em: http://www.publico.es/524711/la-ciudadania-se-echa-a-la-calle-para-pedir-un-referendum-por-la-iii-republica.
  12. Montañés, Érika. “El PP amarra la victoria pese al severo castigo de España al bipartidismo”. ABC, 27 maio 2014. Disponível em: http://www.abc.es/elecciones-europeas/20140525/abci-europa-vota-espana-201405251934.html.
  13. Tsavkko, Raphael. “Eleições Europeias: O fim do bipartidarismo espanhol?”. Brasil de Fato, 28 maio 2014. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/28686.
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