A contra crônica da Copa: prelúdio e inauguração

Rebelión

Atmosfera estranha a que se respira no território carioca. A cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes considerada a cidade-bandeira do Brasil, hoje monopoliza a atenção do público internacional, por conta da Copa Mundial de futebol. Este fato por si só modifica substancialmente a temperatura social. Com mais de 11 milhões de habitantes (incluída a zona metropolitana), esta urbe de grandes contrastes ocupa o primeiro lugar em destino turístico no país e é, por si só, de acordo com as desonestas avaliações dos indicadores macroeconômicos, uma das economias em mais rápido Ascenso. A microeconomia, essa que diz respeito aos que entendem pouco ou nada da ciência econômica, é igualmente ingrata como em qualquer outro país latino-americano. Ser pobre é um calvário. O milagre brasileiro compartilha uma característica com outros desses prodígios econômicos que, de tanto em tanto tempo, irrompe em benefício dos economistas Nobel e companheiros: finge demência para com os prejudicados pela bem-aventurada bonança.

Aqui no Rio de Janeiro, a Copa é um acontecimento que desperta pouco entusiasmo. A atenção está voltada para o que, muitas vezes, se conhece como a “anti-Copa”. Quando o carioca aborda um “gringo” (para o fluminense todos os estrangeiros são merecedores deste adjetivo ofensivo), sem mais fingimentos introdutórios, pergunta: “Você veio ao Brasil para a Copa ou para a anti-Copa?”. O curioso é que as pessoas no Rio suspeitam que o interesse de não poucos estrangeiros gravita ao redor das mobilizações e não das “fan fest” ou festivais para despreocupados aficionados em futebol. Naturalmente, a resposta dos questionados varia significativamente. Alguns, condenados a uma espécie de estado esquizofrênico, divididos entre uma simpatia irredutível com as causas anti-Copa e uma paixão, não menos incorrigível, pelo esporte que mais devotos congrega, se veem obrigados a responder sem rodeios ainda que não sem uma cota de vergonha: “viemos para a Copa e para a não Copa”. O certo é que uma porcentagem majoritária de brasileiros está inconformada com a celebração do mundial em seu solo. E note que se trata do país do futebol. No Brasil, a Copa do Mundo é uma espécie de intruso malquerido, um agregado que há algum tempo começou a incomodar. A Copa envolveu uma sorte de ocupação territorial e, consequentemente, um momento de confisco de um patrimônio nacional: o futebol. O movimento anti-Copa, vitoriosamente, evidenciou que esta expropriação conduz para o aumento de um inventário de violações ainda mais graves ou socialmente nocivas: remoções de assentamentos, despojo de habitações, policiamento das ruas, reorientações orçamentais claramente lesivas para as faixas populacionais mais desprotegidas, usufruto privado dos erários públicos, etc. Não surpreende que o clima que cerca o mundial seja de desconfiança e indignação. A pergunta que mais inquieta não está relacionada a quem será campeão da disputa, mas qual será o alcance dos protestos. Inédito e insólito: não se recorda uma Copa tão assinaladamente marcada por um assunto distante dos campos e num país onde o futebol é mais que uma religião.

O que começa mal, acaba mal. Tão somente dois anos depois da nomeação do Brasil como anfitrião da Copa do Mundo, o próprio presidente Lula se encarregou de assinalar os atrasos nas obras de urbanização e infraestrutura previstas para o mundial. O que não acrescentou – por razões políticas facciosas – é que essas demoras eram resultado das recompensas dos operadores políticos da FIFA, saldadas com base no mau uso dos fluxos públicos. Com o mundial já em marcha, as obras permanecem inconclusas. E é praticamente um fato que continuarão inacabadas. Um carioca resume o sentimento dos brasileiros em torno desta piada: “o pior que pode acontecer é que não acabaram as obras antes do inicio do mundial; porque se não estiveram prontas para a Copa, não estarão prontas nunca”. Sem a investigação internacional, as obras estão condenadas à suspensão indefinida ou definitiva.

A semana que precedeu o começo da Copa foi uma mistura oscilante de nervosismo das autoridades públicas, desinteresse da população, descontentamento social e pouco ou nenhum fluxo de turistas. As pessoas no Brasil sem escrúpulos admitem que a expectativa é mais alta quando o mundial de futebol se celebra em outro país. No Rio, as bandeirinhas apenas tribulam nas favelas e em um ou outro estabelecimento comercial. O grafite anti-Copa tem predomínio na decoração popular da cidade. E muitos dos panfletos que circulam nas ruas anunciam convocatórias para os protestos, congressos e manifestações públicas contrárias à Copa do Mundo. Os microeventos políticos ofuscam o megaevento esportivo.

O mal estar social não é simplesmente uma reivindicação contra o desperdício monetário gerado pela organização do mundial de futebol. É mais complexo, profundo e indeterminado o fundo da agitação. Envolve a omissão de demandas sociais largamente ignoradas; o abuso metódico em grande escala; a violência efetuada contra os grupos favelados ou mais vulneráveis; a obscena manipulação da informação; o aumento astronômico do custo de vida, etc. O Brasil é um compêndio de contrastes indesculpáveis: os setores médio-altos vivem mais ou menos comodamente (ainda que envoltos em extraordinária insegurança); os pobres não vivem apenas de forma penosa, mas também apertados. E, ainda que as manifestações não sejam conduzidas pelos sujeitos favelados (curiosamente é mais destacada a presença indígena), o fato é que a reivindicação geral tem um alto conteúdo popular. O protesto é um gesto de cansaço socialmente transversal. E um sinal de uma consciência política que avança em sintonia com a crescente complexidade dos povos latino-americanos, inscritos no marco de uma globalidade desfavorável para a região. Num país que já conhece o que é mudar a política através da mobilização (vê-se a origem do PT), é natural que as pessoas com mais consciência política lutem pela proteção de seus direitos básicos. A mobilização é fruto de uma razão crítica apreciavelmente estendida no Brasil. É uma superação pela esquerda dessa esquerda partidária, que em algum momento traçou e inaugurou nas ruas a tomada do poder pelo povo, e que agora alçada ao poder, pretende frear este processo, em conluio com as transnacionais intrusas. No contexto da inoportuna Copa do Mundo, as palavras de ordem políticas no Brasil estão em sintonia com esta vergonhosa realidade: “Ocupa Copa” ou “FIFA go home”.

A nota em destaque na inauguração foi o confronto. O argentino, Jorge Valdano, homem de letras e inteligente, ainda que exageradamente apelidado de “filósofo de futebol”, declarou em alguma ocasião que este esporte se converteu em algo suficientemente importante como para demandar um pouco de responsabilidade social. Muito no Brasil parecem concordar com o ex-futebolista argentino. Outros diferem e separam o futebol de seu momento sociopolítico. Estas duas posições se enfrentaram física e verbalmente em Copacabana, o “primeiro dia” do campeonato mundial. Os brasileiros pró-Copa e anti-Copa se enfrentaram nas imediações da emblemática praia carioca. O encontro não nada suave. Golpes, empurrões e xingamentos. Os menos ferozes buscaram os microfones e câmeras para expressar, conforme o caso, sua simpatia ou inconformidade com a Copa. A Polícia Militar reprimiu sigilosa e seletivamente. Não obstante, nesse mesmo dia pela manhã, no folclórico bairro da Lapa, os chamados “Robocops” dissolveram a primeira manifestação da jornada de inauguração com golpes e explosivos lacrimogêneos. Mais de um manifestante foi detido sem que os meios de comunicação pudessem saber seu nome ou paradeiro. Ao final, tudo caminhou sem contratempos e com singular festividade… de acordo com as informações da imprensa oficial.

Com frequência se escuta dizer, numa clara evocação daquele emotivo discurso de Diego Armando Maradona, que a bola não se mancha. Ao menos essa é a experiência dos esquizofrênicos incuráveis que, por um lado, denunciam a coleção de agravos que traz consigo a organização da Copa e, por outro, professam, de forma incorrigível, um culto aos dias redondos: o futebol.

Bola dividida, público dividido. Esta contradição é a figura dominante do Brasil 2014.

Comentário marginal: um grupo de colegas chilenos-brasileiros documentou a primeira jornada de atividades do Congresso Intercultural de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais Maraká aná, celebrado em Seropédica, Rio de Janeiro, de 4 a 8 de junho. As origens desta moção se remetem à remoção, em 2013, de famílias indígenas que habitavam a Aldeia Maracanã, um antigo edifício adjacente ao mítico estádio de futebol. A expulsão dos indígenas e a posterior ocupação policial das instalações deixaram claros os violentos processos de aristocratização socioespacial que escoltam a preparação dos megaeventos esportivos. Este é o testemunho audiovisual dos companheiros da Memoria Latina:

Blog do autor: http://lavoznet.blogspot.com.br/2014/06/la-contracronica-de-la-copa-preludio-e.html

Fonte: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=186132&titular=la-contracr%F3nica-de-la-copa:-preludio-e-inauguraci%F3n-

Foto: Pablo Vergara_ https://www.facebook.com/PVCfotografia

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)