Resposta ao documento da FIFA “Acabar com mal entendidos”
“Acabar com o mal entendidos” (“Setting the Record Straight”) com perguntas e respostas que pretendem esclarecer concepções incorrectas acerca do papel da FIFA e do impacto sócio-económico da sua Copa do Mundo. A divulgação do panfleto é significativa pois é a primeira vez que a FIFA é forçada por protestos em massa, e graças aos brasileiros, a vir a público e defender-se a si própria e à sua imagem empanada. Os acontecimentos no Brasil foram muito além da onda de greves maciças na África do Sul a exigir que a FIFA aceitasse uma agenda de “trabalho decente” . Esta é, afinal de contas, a primeira vez na história da Copa do Mundo que se verificou uma revolta contra a FIFA e isso num país que ama o futebol! Não só o tom do panfleto é defensivo como também deixa perceber como a FIFA está a decair da sua posição de voz hegemónica do futebol mundial.
Num esforço para defender a sua reputação social no Brasil e no mundo como um todo, o panfleto começa com uma posição cómica mas franca. Admite que, dos US$15 mil milhões em infraestrutura, “os contribuintes pagaram a conta, a FIFA não gastou nada” e é responsável apenas pela cobertura dos custos operacionais do evento – não em proporcionar a infraestrutura. Mas o que a FIFA não reconhece é que o contribuinte está a pagar um mega-subsídio público precisamente porque a FIFA não gasta nada! Apesar de esta ser uma das muitas dádivas, o fedelho mimado da FIFA exige uma enormidade de concessões dos países que abrigam a Copa Mundial da FIFA em mecanismos legais de garantias do estado e nas notórias Leis da FIFA.
As Leis da FIFA constituem a chave para assegurar a operação a complexa acumulação da FIFA no desporto pela qual ela e seus parceiros comerciais, os bancos, firmas de construção e engenharia locais e internacionais, asseguram para si próprias e seus accionistas uma taxa garantida de mega-lucros. O mecanismo deste regime de acumulação de capital é precisamente utilizar a avenida dos fundos públicos e dos subsídios e isenções do estado para acumular milhares de milhões em poupanças sem ter de gastar directamente um centavo do dinheiro do contribuinte. O representante do grande capital, o estado, faz isto por conta da FIFA. Na África do Sul isto foi bem documentado no livro South Africa’s World Cup: A Legacy for Whom?
A FIFA está correcta em que não há uma isenção fiscal geral mas há uma extensa “série de isenções de impostos federais concedidos exclusivamente: (i) à própria FIFA e entidades relacionadas residentes no exterior; (ii) à subsidiária brasileira da FIFA e à Brazilian Broadcasting Source; (iii) a fornecedores de serviços à FIFA estabelecidos no Brasil; e (iv) a indivíduos não residentes contratados ou empenhados em trabalhos nos eventos” . As isenções incluem todas as receitas, lucros, rendimentos, despesas, custos, investimentos, folhas de pagamento e toda e qualquer espécie de pagamentos, em cash ou de quaisquer outras formas.
Há isenções fiscais limitadas no tempo sobre importações executadas pela própria FIFA, por subsidiárias brasileiras da FIFA, confederações da FIFA, membros de associações estrangeiras da FIFA, parceiros de negócios estrangeiros e fornecedores de serviços da FIFA e emissões primárias de rádio e TV da FIFA
Há também pagamentos únicos de prémios de US$44 mil (livres de impostos) bem como um estipêndio mensal a jogadores que fizeram parte das equipes vencedoras do Brasil nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970. Estes pagamentos serão feitos através do Ministério do Desporto e do Ministério do Bem Estar Social e provirão de fundos públicos.
As Leis da FIFA declaram que todos “os vistos em passaportes e permissões de trabalho” relacionados com o evento serão livres de encargos para centenas de milhares de delegações da FIFA, associados da imprensa e parceiros comerciais incluindo todos os torcedores que tiverem bilhetes para os jogos. Portanto, milhões em receitas públicas foram perdidas mesmo antes de os jogos começarem.
Há maciça despesa pública do estado para impor direitos de propriedade intelectual da FIFA em que “a FIFA será libertada do pagamento de quaisquer taxas ao INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) até 31 de Dezembro de 2014” . Esta imposição também inclui uma “bolha isenta de impostos” de 2 km de raio em torno de locais oficiais de desporto o que basicamente proíbe a livre competição e impede qualquer um de extrair um rendimento sem obter uma licença da FIFA. As leis são tão extremas que um bar ou restaurante local não pode sequer utilizar as palavras “Copa Mundial”, “Brasil 2014”, “2014 Brasil”, muito menos “FIFA”, para atrair clientes. Isto efectivamente exclui a maioria dos comerciantes informais e negócios locais desejosos de vender seus produtos durante a Copa do Mundo. A FIFA portanto está a enganar o público quando diz que não “remove comerciantes de rua” pois as novas condições (criadas após protestos maciços pela entrada dos comerciantes de rua na África do Sul) ainda são limitadas ao “ambiente imediato do estádio”.
A FIFA mais uma vez chora que não ordenou ao Brasil “construir 12 estádios dispendiosos”. Apesar de nunca podermos saber quantos estádios a FIFA realmente ordenou a questão que permanece é que a FIA exige os “estado-da-arte, estádios modernos e belos”. O documento de 228 páginas da FIFA, ” Football Stadiums: Technical Recommendations and Requirements” , o qual é considerado como o modelo para os estádios de futebol do século XXI, deixa uma impressão de que os estádios não podem ser senão horrendamente dispendiosos. Veja-se a exigência de que o salão VIP da FIFA deve ser suficientemente grande para acomodar 500 hóspedes por partida durante campeonatos e 2000 nas partidas de abertura e encerramento dos campeonatos. Isto vai além do que a hospitalidade exige, o que só pode ser encarado como uma despesa com um luxo monstruosamente perdulário. Na África do Sul foi bem documentado que a FIFA exigiu que um moderno estádio todo novo fosse construído em Cape Town simplesmente devido ao seu preconceito de classe em relação a Athione, uma comunidade de trabalhadores onde já havia um estádio factível.
Agora a FIFA diz que não é culpada por remoções forçadas, o que é só uma meia verdade. A questão é que remoções forçadas frequentemente verificam-se antes de Copas Mundiais da FIFA, como parte da síndrome elitista “World Class City” que tem infectado países de todo o mundo.
Finalmente, a FIFA está a esforçar-se por explicar que não deixa o país hospedeiro com “problemas sociais, económicos e ecológicos” e de facto gastou US$182 milhões com legados desportivos na África e que os jogos foram ambientalmente compatíveis. Não só a FIFA na África do Sul ganhou o máximo de dinheiro na história da copa do mundo – uns US$2,3 mil milhões – como houve ultrapassagens de custos de 1.708% no total. Apesar de manter todas as regulamentações ambientais, a Copa do Mundo de 2010 também foi considerada como o torneio mais intensivo em carbono até então.
Para todos os efeitos, a Copa do Mundo Brasil 2013 ultrapassará o legado da África do Sul e afundará na história como o torneio mais e mais intensivo em carbono da história da FIFA.
A luta dos trabalhadores triunfa sobre o espectáculo
[*] Editor do livro South Africa’s World Cup: A Legacy for Whom? e investigador no Labour Research Service em Cape Town.
O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2014/cottle180614.html
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .