Do fim do começo ao começo do fim
Estas intervenções quando têm “êxito”, como na Líbia ou no Iraque, não concluem com a instauração de regimes coloniais “pacificados”, controlados por estruturas estáveis, como ocorria nas velhas conquistas periféricas do Ocidente, e sim com espaços caóticos dilacerados por guerras internas. Trata-se da emergência induzida de sociedades-em-dissolução, da configuração de desastres sociais como forma concreta de submetimento, o que coloca a dúvida acerca de se nos encontramos diante de uma diabólica planificação racional que pretende “governar o caos”, submergir as populações numa espécie de indefensão absoluta convertendo-as em não-sociedades para assim saquear seus recursos naturais e/ou anular inimigos ou competidores… ou, ao contrário, trata-se de um resultado não necessariamente buscado pelos agressores, expressão do seu fracasso como amos coloniais, da sua alta capacidade destrutiva associada à sua incapacidade para instaurar uma ordem colonial (“incapacidade” decorrente da sua decadência económica, cultural, institucional, militar). Provavelmente encontramo-nos diante da combinação de ambas as situações.
Também é possível supor que o Império, na sua decadência, se encontra prisioneiro de um emaranhado de interesses políticos, financeiros, mafiosos… conformando uma dinâmica auto-destrutiva imparável que o obriga a desenvolver operações irracionais se observamos o fenómeno com um certo distanciamento histórico, mas completamente racionais se reduzimos a observação ao espaço da razão instrumental directa dos conspiradores, ao seu micromundo psicológico (a razão da loucura como razão de estado ou astúcia mafiosa impondo-se à racionalidade no seu sentido mais amplo, superior).
Ainda que esses desastres não representem necessariamente acções de verdugos impiedosos a destruírem paraísos periféricos, o capitalismo é uma totalidade global e o que aparece como a decadência do centro imperial é a manifestação decisiva mas parcial de um fenómeno planetário que inclui a periferia presa na armadilha da sobredeterminação burguesa universal (decadente) das suas sociedades. A operação de destruição da Líbia lançando sobre o seu território ondas de mercenários e bombardeamentos pôde triunfar graças à degradação do regime kadafista; o golpe neonazi de Fevereiro de 2014 na Ucrânia capturou o governo de uma “república” resultante do desastre soviético que a havia submergido num gigantesco apodrecimento seguido pela instauração de um capitalismo mafioso; a desestabilização da Venezuela orquestrada pelos Estados Unidos apoia-se em sectores das classes médias conduzidos pela velha burguesia local que não foi eliminada depois de quinze anos de “revolução” (“bolivariana” autoproclamada “socialista”) eternamente a meio caminho… essas elites não foram varridas do cenário ainda que fossem irritadas, enfurecidas pela ascensão social das classes baixas.
Tudo isto nos conduz à necessidade de estabelecer o momento da história do capitalismo em que nos encontramos. Trata-se do bordel sangrento global prelúdio de uma nova acumulação primitiva berço de um futuro super-capitalismo ou dos golpes finais, desesperados, de uma civilização que entrou no ocaso?
Proponho responder a essa pergunta utilizando aquela velha e tão repetida frase de Churchill em plena Segunda Guerra Mundial quando, ao terminar a batalha de El Alamein, assinalou que esse facto era não “o começo do fim (da guerra) e sim o fim do começo” de um processo muito mais importante, decisivo. Encontramo-nos actualmente na presença dofim do começo , vai-se concluindo a etapa preparatória do declínio ocidental que se prolongou durante várias décadas e começa a emergir o começo do fim , o desmoronamento do capitalismo como civilização que, como outras civilizações em declínio, provavelmente percorrerá uma trajectória temporal complexa de duração indeterminável de antemão.
Ainda que não possa deixar de assinalar diferenças decisivas com as civilizações anteriores, como seu carácter planetário (não limitado a uma região), a massa de população incluída no processo (actualmente umas sete mil milhões de pessoas e não apenas umas poucas dezenas ou centenas de milhões) e o descomunal desenvolvimento das suas forças produtivas, com capacidade industrial e militar para destruir totalmente a vida no planeta. O que coloca de maneira radicalmente distinta o opção que enfrentaram todas as decadências de civilizações: superação ou afundamento num longo desastre do qual emergia mais adiante uma nova civilização no espaço anterior ou imposta por uma força externa. Isto não é a decadência da Babilónia devastada pelos pântanos difusores de malária gerados pelo seu próprio desenvolvimento, nem da Roma imperial esmagada pelo parasitismo e a hipertrofia militar, resultado da sua dinâmica imperialista marchando em direcção ao abismo enquanto boa parte do resto da humanidade ignorava esses factos. [1]
Violência e decadência sistémica
O fenómeno sobredeterminante é a decadência, demonstrada por numerosos indicadores como o declínio a longo prazo (desde os anos 1970) da taxa de crescimento económico global activada pelo arrefecimento tendencial do crescimento dos países centrais e a seguir pelo acompanhamento desta tendência por um processo de hipertrofia financeira que se articula com um aparelho parasitário sem precedentes: consumista, militar e burocrático.
Encontramo-nos diante de sociedades imperiais tão decadentes que já não podem mobilizar militarmente a sua juventude como no século XX, ainda que a sua capacidade financeira e os seus avanços tecnológicos lhe permitam contratar mercenários em substituição das forças operativas tradicionais (a oferta de lumpens proveniente de todos os continentes é directamente proporcional ao progresso da decadência), utilizar armas como os drones e outros artefactos mortíferos super refinados que estabelecem um fosso técnico descomunal entre agressores e agredidos e, finalmente, esmagar com manipulações mediáticas suas vítimas directas e o resto do mundo.
Estas “vantagens” são ao mesmo tempo expressões de poder e de fraqueza, de capacidade destrutiva mas também de descontrole ideológico das suas próprias sociedades, da ilegitimidade interna das suas operações, o que somado à sua deterioração económica impede-os de passar da destruição à reconstrução colonial dos territórios conquistados.
As transformações burguesas das sociedades europeias haviam gerado, desde os fins do século XVIII, a possibilidade de integrar o conjunto da população às suas diferentes aventuras militares. Desse modo, o cidadão-soldado e a guerra de massas substituíram o mercenário e os exércitos das aristocracias. Os assassinos a soldo cederam lugar aos assassinos voluntários ou forçados que entregavam a sua vida não por dinheiro e sim pela defesa da “pátria”, da “liberdade”, etc.
Mas a decadência do capitalismo e a sua transformação, depois do aggiornamento burguês da China e do derrube da URSS, em sistema único (ou seja, em dominação planetária, visivelmente amoral das elites parasitárias) deitou abaixo os mitos, as legitimações que permitiam aos estados fabricar causas nobres para enviar à morte o cidadão comum.
A perda de legitimidade do aparelho militar ocidental surge como um traço decisivo da decadência, mas a reprodução imperialista continua e o exercício da violência contra a periferia retoma a velha tradição dos exércitos mercenários.
Agora a propaganda do poder junto às suas populações não tem como objectivo arrastá-las ao campo de batalha (operação inviável) e sim, antes, obter a sua aprovação passiva ou diluir a sua recusa diante de aventuras fisicamente distantes apresentadas como fenómeno virtual, como um elemento mais do entretenimento brindado pela televisão e outros meios de comunicação.
O desdobramento bélico foi teorizado pela chamada Guerra de Quarta Geração , resultado das reflexões no alto nível militar dos Estados Unidos posteriores à derrota do Vietname, visualizada como “guerra assimétrica” onde a força inimiga com baixo nível tecnológico e reduzida potência de fogo, mas bem integrada à população, pôde derrotar o exército imperial possuidor de um elevado nível tecnológico e um gigantesco poder de fogo.
A nova doutrina militar aponta não para a simples destruição da força militar inimiga e sim, principalmente, para o conjunto da sociedade que a sustenta. A desintegração social (económica, moral, cultural, institucional) passa a ser o objectivo procurado e esse processo pode-se dar ou não com intervenções directas e sim, antes, com combinações variáveis de intervenções externas (militares, mediáticas, económicas, etc) e acções de desestabilização interna.
Estabelece-se assim uma ampla variedade de cenários de agressão. Num extremo podemos localizar as guerras do Afeganistão e Iraque, numa zona intermédia a Líbia, a Síria ou a Jugoslávia e, no outro extremo, as chamadas intervenções suaves ou revoluções coloridas como no Paraguai, Honduras ou Ucrânia. Todas elas implicam o desenvolvimento intenso de acções violentas no começo da operação, em algum momento da mesma ou como resultado da vitória imperialista. Mas estas guerras de configuração variável não resolvem o problema da dominação colonial da periferia, o caos instalado entorpece, encarece ou por vezes torna impossíveis os saqueios sistemáticos.
O atalho da Guerra de Quarta Geração aparece como o que realmente é: o máximo possível de agressão num contexto de debilidade estratégica do agressor cujo resultado é não só a caotização periférica como também a degradação interna. As operações mafiosas em direcção ao exterior acabam por consolidar práticas mafiosas dentro do aparelho dominante do Império, onde se propagam as camarilhas parasitárias, as tendências irracionais, as loucuras elitistas, as rupturas das regras de jogo institucionais.
Começo do fim: o mundo depois de 2008-2013
O sexénio 2008-2013 marca a transição entre o declínio relativamente suave e controlado do sistema, iniciado no princípio dos anos 1970, e a sua degradação geral de que estamos a presenciar os primeiros passos.
A crise desencadeada entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970 não foi superada como as anteriores, através de uma grande onda depressiva destruidora de empregos e empresas que, reduzindo salários e concentrando a produção e a procura solvente, disparava um novo ciclo ascendente da economia. A era das “crises cíclicas”, descritas por Marx, havia concluído. Ainda que Marx explicasse que essas crises recorrentes iriam acumulando desordem no sistema – até que as forças entrópicas adquirissem uma dimensão tal que já nenhuma reconstrução capitalista seria possível. Ficava assim prognosticada a crise geral do capitalismo, o esquema teórico decorrente da lógica da sua dinâmica de acumulação O que de modo algum podia ser prognosticado era o seu desenvolvimento histórico concreto, seus tempos, seus protagonistas de carne e osso, os atalhos e inovações sociais que permitiram adiar ou precipitar o desenlace.
A avaliação prospectiva de Marx era um cenário muito geral que dava cabimento a uma ampla gama de futuros possíveis. Não se tratava de uma profecia apocalíptica na qual se estabelece uma data ou como calculá-la, descrições precisas de actores e coreografia, etc. Mas esse esquema teórico permitia a Marx e Engels explicar, por exemplo, que “dado um certo nível de desenvolvimento das forças produtiva, surgem forças de produção e de meios de produção tais que nas condições existentes provocam catástrofes, já não são mais forças de produção e sim e destruição” [2] , o que abria a reflexão acerca do carácter auto-destrutivo da civilização burguesa na sua etapa decadente mais avançada.
E isso começou a ser inegável em torno de 2008-2013, ainda que muito antes desse período fossem aparecendo sinais de alerta a respeito – quase sempre ignorados pelos grandes meios de comunicação e pelas ciências sociais. Quando se referiam a possíveis desastres ambientais, sanitários ou políticos atribuíam-nos a manejos irracionais corrigíveis no interior do sistema. A isso apegaram-se “a partir da esquerda” alguns adoradores masoquistas do capitalismo, propondo uma espécie de eternização dos seus ciclos, tentando destacar na crise em curso os sinais da próxima recuperação do sistema. Mas esses sinais eram puras fantasias ou então ladainhas conservadoras baseadas em que “sempre” o capitalismo havia conseguido superar suas crises, naturalmente à custa dos trabalhadores – o que normalmente entristecia o auditório (e não muito o orador).
Dentre os variados factores da decadência destacam-se dois que são decisivos: a degradação (e hipertrofia) financeira e a degradação (e hipertrofia) militar.
A partir de 1990 (aproximadamente), enquanto o Produto Mundial Bruto vinha decrescendo suavemente em progressão aritmética (desde os anos 1970), a massa financeira começou a crescer em progressão geométrica. Os produtos financeiros derivados, sua espinha dorsal, que nos fins dos anos 1990 representavam umas duas vezes o PBM, em 2008 passaram a representar umas 12 vezes o PBM – mas a partir daí a expansão estancou e tendeu a decrescer pouco a pouco.
Durante a sua ascensão a especulação financeira foi a muleta parasitária que permitiu aos consumidores, empresas e estados do Primeiro Mundo continuarem a gastar e investir apesar de os rendimentos marginais da avalanche financeira serem decrescentes em termos de crescimento do produto bruto dos países centrais. Cada vez era precisa mais droga financeira para obter cada vez menos expansão económica – até que finalmente, em 2008, o mecanismo quebrou: o peso financeiro tornou-se insustentável e desencadeou-se um rodopio de auxílios estatais ao sistema financeiro a fim de impedir a sua derrocada.
Mas estes auxílios não reactivavam a economia. Apenas travavam a derrocada financeira, fazendo aumentar as dívidas públicas até o ponto de o estado norte-americano ter estado duas vezes à beira do incumprimento (default), enquanto as dívidas públicas mais as privadas do Japão chegaram em 2013 a 520% do PIB, a 510% na Grã-Bretanha, etc. A partir daí, os auxílios esgotaram-se e o Primeiro Mundo entrou no que, no melhor dos casos para ele, poderia ser descrito como um longo período de estancamento, recessões e crescimentos anémicos que não devem ser pensados como um planalto de arrefecimento estável da produção, do consumo e do emprego e sim como um tobogã descendente.
O crescimento zero ou o declínio, ainda que suave, significam o aumento tendencial do desemprego e em consequência a entrada num complexo fenómeno de desintegração social.
Por sua vez, a militarização dos Estados Unidos não terminou com o fim da guerra fria. Após um breve estancamento em fins dos anos 1990 recomeçou a expansão das despesas militares. Foi de tal modo que em 2012 o seu volume real (somando todas as verbas com finalidade militar do estado, não apenas as do Departamento da Defesa) chegou a um número equivalente a cerca de 9% do Produto Interno Bruto [3] . Aquilo que poderíamos considerar como área militar e de segurança deslizou do passado “clássico”, povoado por militares e agentes profissionais de tipo tradicional adstritos directamente à administração pública, para uma nova etapa com participação crescente de mercenários, estruturas privadas contratadas pelo estado e uma multidão de organizações públicas e privadas informais oscilando entre a legalidade e a ilegalidade, misturadas com negócios clandestinos (drogas, prostituição, tráfico de armas, etc). Guerra de Quarta Geração, lumpen-burguesia financeira e lumpen-militarismo converteram-se no núcleo duro ideológico físico de uma elite imperial degradada que alguns autores assinalam como lumpen-imperialista [4] .
Mas assim como a mega bolha financeira primeiro escorou o funcionamento do sistema e a seguir converteu-se num salva-vidas de chumbo, a degeneração militarista-mafiosa e sua doutrina nova surgiram como a tábua de salvação de estruturas militares e de inteligência ineficazes diante de uma periferia aparentemente pronta a ser devorada mas que lhes escapava das mãos. Contudo, essas esperanças eram ilusórias. A única coisa que conseguiram foi destruir países, fracassar na tentativa ou ambas as coisas ao mesmo tempo, acumulando despesas e défices fiscais: a criminalidade converge com a estupidez.
A “transição 2008-2013” significou uma mudança fundamental nas formas da guerra (sua degradação radical) que deixou a descoberto o carácter da mutação em curso do conjunto do capitalismo. Em meados dos anos 1950 e fazendo referência à então recente prática bélica nazi, Johan Huizinga assinalava que historicamente a guerra sempre havia feito parte das civilizações ou culturas “uma vez que uma comunidade (em guerra) reconhecia a outra (contra a qual fazia a guerra) como humana… e separava claramente e de maneira expressa a guerra da paz, por um lado, e da violência criminosa, por outro. A teoria da guerra total – destacava o historiador – renunciou ao último resto lúdico da guerra (ou seja, a toda regra de jogo) e com isso à cultura, ao direito e à humanidade em geral” [5] .
No meu entender, a ruptura hitleriana em relação à prática e à teoria da guerra, ou seja, a “guerra total” e seus genocídios, foi uma antecipação, um primeiro ensaio em plena crise capitalista do que actualmente surge como Guerra de Quarta Geração. No primeiro caso tratou-se de uma monstruosidade precoce, pioneirismo “alemão” mas com antecedentes na cultura mais reaccionária dos Estados Unidos. Autores como Domenico Losurdo estabeleceram de maneira rigorosa as evidentes raízes ideológicas estado-unidenses do nazismo [6] . Esse desastre exprimia a doença de uma civilização que ainda dispunha de reservas sistémicas (morais, produtivas, institucionais, etc) para recompor-se e que ainda não havia sofrido uma metástase geral. O tumor hitleriano foi extirpado parcialmente e o mal pôde sobreviver ocultando-se nas sombras à espera de uma nova oportunidade. Nos julgamentos de Nuremberga, os crimes de guerra (a violação das regras do jogo da guerra moderna) foram condenados selectivamente da maneira difusamente contida.
Em fins dos anos 1930 Hermann Rauschning escreveu uma obra essencial para entender o funcionamento do fenómeno: “La revolución del nihilismo”. O autor acertou ao assinalar que“a essência da dominação nazi é o niilismo”, a negação simultaneamente criminosa e suicida da realidade humana, mas equivocou-se completamente quando prognosticou que “esse fanatismo produzido e difundido pela maquinaria do poder é tão vazio, tão artificial e inautêntico que todo esse gigantesco aparelho poderia ruir de um dia para o outro por causa de um só acontecimento sem deixar qualquer rastro de vida autónoma” [7] . Rauschning não soube (ou não quis) aprofundar o bisturi até o fundo, se o fizesse teria sido obrigado a colocar no banco dos réus o conservadorismo burguês no seu conjunto e, a partir daí, os aspectos destrutivos (e auto-destrutivos) da civilização ocidental à qual se orgulhava de pertencer.
Agora, quando vemos o cancro fascista propagar-se tranquilamente por toda a Europa ao ritmo da crise, desde o avanço irresistível da Frente Nacional em França até a vitória neonazi na Ucrânia, passando pela Holanda, Bélgica, Croácia, Hungria, os países bálticos, Grécia, etc, não podemos deixar de constatar o enraizamento profundo do mesmo não só na tragédia dos anos 1920-1930-1950 como também em histórias muito mais antigas, em fanatismos religiosos, em genocídios coloniais e outras práticas sociais de grande crueldade (o nazismo clássico não era superficial nem inautêntico, fundia suas raízes na longa trajectória criminal do Ocidente).
Mas o mais significativo e terrível foi a reinstalação sem maiores escândalos da doutrina hitleriana da guerra total, rebaptizada Guerra de Quarta Geração e por vezes adocicada como “golpes gentis” ou “suaves” ou sob a delirante apresentação de guerras ou bombardeamentos “humanitários”. Agora já não se trata de uma experiência pioneira e em certo sentido menos surpreendente, “anormal”, e sim de um vale-tudo aceite pelo conjunto das elites imperialistas. O facto de que a forma capitalista de fazer a guerra haja sofrido tal transformação está estreitamente vinculado à (faz parte da) transformação do capitalismo num sistema destruidor de forças produtivas estendendo-se ao contexto ambiental com suas terras, mares, montanhas, animais, etc a apontarem para a aniquilação de todo o património histórico da humanidade, de toda a acumulação de civilizações.
Retorno à origem?
Poderíamos estabelecer paralelos entre a conjuntura actual e as origens da modernidade. Robert Kurz pôs em evidência as origens militares do capitalismo. Por volta do século XVI, segundo Kurz, “não foi a força produtiva e sim, pelo contrário, uma contundente força destrutiva que abriu o caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo. A produção e mobilização dos novos sistemas de armas não eram possíveis no plano de estruturas locais e descentralizadas que até então haviam marcado a reprodução social, requeriam sim, em diversos planos, uma organização completamente nova da sociedade. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, já não podiam ser produzidas em pequenas oficinas, como as pré-modernas armas de ponta e gume. Por isso desenvolveu-se uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes fábricas” [8] .
Um bom exemplo disso é a presença em pleno século XVI do célebre Arsenal de Veneza , fábrica militar muito admirada na sua época, provavelmente a primeira indústria moderna, que inspirou muitos empreendimentos militares e civis posteriores e cuja organização produtiva baseada numa divisão eficaz de tarefas esboçava o modelo que vários séculos depois, no início da revolução industrial, foi descrito por Adam Smith.
Foi efectivamente em torno dos desenvolvimentos militares que se foram gerando redes comerciais e financeiras que permitiam aos príncipes e demais senhores da guerra lançarem suas aventuras.
As mesmas estavam destinadas às lutas intestinas das aristocracias e à repressão das massas camponesas. Contudo, o seu objectivo principal era a pilhagem da periferia, o que disparou decisivamente e alimentou durante séculos a emergência e consolidação do capitalismo, seus mercados centrais, sua ciência, sua arte e sua expansão industrial e tecnológica (existe, por exemplo, uma abundante literatura quanto à incidência da inundação de ouro e prata proveniente das colónias americanas na transformação burguesa da Europa) [9] .
Foi a aliança militar-parasitária, entremeada de mercenários, aristocracia militarizada, comerciantes-bandidos, usurários de alto nível, etc que constituiu a plataforma de lançamento da conquista da periferia, permitindo que uma relativamente pequena economia guerreira realizasse uma pilhagem desmesurada em relação à sua dimensão inicial. No século XVI o produto bruto do Ocidente apenas superava os 10% do que poderíamos considerar como produto bruto mundial, contra 23%-24% para a China ou 27%-28% para a Índia [10] .
Houve uma primeira tentativa: as Cruzadas, quando aproximadamente nos séculos XII e XIII os ocidentais lançaram uma sucessão de invasões ao rico Oriente Próximo, ocupando parte do seu território [11] .
Mas essa colonização fracassou apesar da enorme crueldade aplicada. Os povos invadidos dispunham de uma capacidade militar que lhes permitiu expulsar o invasor por meio do que poderíamos chamar guerra de longa duração. A disparidade militar entre invasores e invadidos não foi suficientemente grande para garantir a derrota definitiva das vítimas.
A situação foi-se alterando a partir do século XV e experimentou uma grande viragem no século XVI, quando o Ocidente adquiriu uma superioridade técnico-militar decisiva sobre o resto do mundo.
A batalha de Lepanto (1571) provou a superioridade técnica ocidental sobre o Império Otomano. A eficácia do Arsenal de Veneza esteve por trás dessa vitória[12] . Meio século antes os espanhóis haviam utilizado sua esmagadora superioridade técnica para arrasar o Império Asteca, que não conhecia a pólvora nem as armas metálicas.
Essa superioridade militar do Ocidente não foi produto do acaso, apoiou-se no vertiginoso desenvolvimento da sua ciência militar. Durante os séculos XV e XVI, a engenharia militar esteve no centro no Renascimento europeu, herdava a engenharia militar medieval que por sua vez mantinha vínculos com a ciência militar da antiguidade greco-romana. Bertrand Gille relata que “quando em 1328 Felipe V de Valois concebeu o projecto de partir para as cruzadas, Guy de Vigevano converteu-se no seu conselheiro militar e escreveu para o rei um tratado sobre máquinas de guerra … que pode ser considerado como um dos principais antecedentes da ciência militar posterior”. Gille destaca que “certas ilustrações do tratado apresentam analogias surpreendentes com algumas imagens de antigos manuscritos gregos e romanos” que, junto com outros desenvolvimentos medievais, demonstram segundo o autor uma clara continuidade científico-técnica no tema militar desde a Grécia e Roma até chegar aos séculos XV e XVI [13] .
A continuidade histórica da “procura” (o militarismo) para essa ciência remonta primeiro à Idade Média europeia. Uma das suas características principais foi o sobredimensionamento dos seus dispositivos bélicos, a excessiva proliferação de organizações militares conduzidas por príncipes aspirantes a imperadores e titulares de “impérios” como Carlos Magno, passando por senhores da guerra de toda dimensão, bandos de mercenários, etc. Militarismo feudal entrelaçado historicamente com a Antiguidade europeia guerreira e imperialista, constatemos só que, como observa James O’Donnell em relação ao império romano já em decadência: “depois de chegar ao trono no ano 284 o imperador Diocleciano e seus sucessores puderam restaurar as fronteiras romanas e a ordem romana multiplicando por cinco ou dez o número de soldados e funcionários. Diocleciano aumentou o número de soldados para 400 mil e mais tarde chegou a alcançar os 650 mil” [14] .
No seu livro “Matança e cultura” [15] Victor Hanson desenvolve a longa trajectória belicista do Ocidente e, ao referir-se às suas vitórias militares do século XVI, assinala que “o dinamismo militar europeu era um contínuo da Antiguidade clássica, não uma consequência casual da idade da pólvora e do descobrimento do Novo Mundo… desde a Grécia até o presente… as afinidades demonstradas pelas sociedades ocidentais na sua forma de fazer a guerra tornam-se assombrosamente duradouras” e acrescenta a seguir: “as falanges macedónias, tal como o exército de Cortes, a frota cristã que combateu em Lepanto e a companhia de fuzileiros britânicos que defendeu Rorque’s Drift (1879, África, as tropas coloniais foram derrotadas pelos zulus) dispunham de um armamento muito superior ao dos seus adversários”.
Não se trata só de superioridade técnica e sim da extrema crueldade na sua “forma de fazer a guerra”, o que leva o autor (apesar da sua admiração para com o Ocidente) a assinalar que: “alguns estudiosos equiparam Alexandre Magno a César… ou a Napoleão, com os quais compartilhava sua vontade de ferro, seu génio militar inato e a busca de um império mais poderoso do que os recursos naturais da sua terra nativa permitia. Alexandre, com efeito, mantém afinidades com eles, mas com ninguém se parece mais que com Adolf Hitler”. O paralelo inevitável entre as falanges gregas, as legiões romanas, os cruzados, as tropas coloniais espanholas, inglesas, francesas e os exércitos hitlerianos estabelece o fio condutor “ocidental” de uma longa sucessão de guerras, conquistas e matanças.
A acumulação primitiva do capitalismo baseou-se, com êxito, no saqueio desmesurado da periferia e com recursos naturais gigantescos, relativamente “infinitos” dado o nível técnico e a capacidade de rapina dos imperialistas europeus daquele tempo. Mas essa desmesura é impossível actualmente, o planeta é demasiado pequeno para as necessidades do que seria um novo processo de acumulação capaz de potenciar o parasitismo ocidental até gerar uma espécie de super-capitalismo global.
As potências centrais são suficientemente grandes para destruir o planeta (o que significaria sua auto-destruição) e é por isso, por causa do seu gigantismo, que não se podem salvar, iniciar um novo ciclo ascendente devorando recursos humanos e naturais, ainda que para sobreviver como império precisem alimentar-se das suas vítimas. Isto assinala uma diferença qualitativa essencial com o que ocorreu há cinco séculos. Agora a violência imperialista não é a de um monstro vigoroso, na sua infância ou juventude, e sim a de um monstro velho e obeso.
Ocidente
É preciso associar conceitos artificialmente dissociados como “civilização ocidental”, “civilização burguesa”, “Império” (ocidental) e “capitalismo”. O capitalismo surge como um fenómeno histórico com raízes geográficas ocidentais bem delimitadas que carregavam uma pesada herança cultural específica. O Ocidente emergiu como um empreendimento imperialista colectivo, agrupando vários estados, expandindo-os globalmente e ao mesmo tempo envolvidos em ferozes disputas intestinas. A unificação chegou, após um longo percurso de muitos séculos, no final da Segunda Guerra Mundial sob o comando de uma super-potência não europeia: os Estados Unidos.
O irromper da guerra de 1914, mas especialmente a ruptura russa de 1917, assinalou o início do declínio ocidental – ainda que a tendência tenha parecido reverter-se nos anos 1990 com o derrube da URSS e em certo sentido, antes, a partir da reconversão capitalista da China. Mas não foi assim, da desintegração soviética após uma década de desastres surgiu a Rússia como potência militar-energética cada vez mais autónoma ainda que mantendo laços comerciais e financeiros estreitos com o Ocidente e do aburguesamente chinês não nasceu um país subdesenvolvido dócil aos interesses norte-americanos como a Índia ou o México e sim uma potência periférica também com importantes margens de autonomia.
A deterioração geral da dominação ocidental, da sua hierarquia imperialista, ou seja, do capitalismo como sistema mundial, engendrou o fenómeno da despolarização, do descontrole periférico. A China e a Rússia mas também o Irão, e os jogos mais ou menos independentes de alguns estados “progressistas” da América Latina ilustram o processo. Os bárbaros do século XXI organizam-se sem tutela romana ou a negociarem com a Roma moderna já não como simples vassalos, mas essa Roma não pode reproduzir-se como tal, seu parasitismo não pode sobreviver sem os tributos crescentes dos seus súbditos periféricos, necessita cada vez mais sangue das suas vítimas (petróleo barato, lítio, ouro, cobre, salários miseráveis, maiores vantagens comerciais, mega-transferências financeiras, etc) enquanto as vítimas vão encontrando caminhos para reduzir a pilhagem graças precisamente ao enfraquecimento do parasita (o que não impede em certos casos que bárbaros pilhem-se entre si).
Algumas precisões podem nos ajudar a entender melhor o que está a ocorrer.
Em primeiro lugar, o facto de que a consolidação dos estados burgueses centrais tem estado (e continua a estar) estreitamente associada à expansão e consolidação colonial, à extracção maciça de riquezas da periferia, permitiu e continua a permitir a integração das sociedades centrais e a permanência do seu guardião estatal-militar. O fim ou o enfraquecimento grave da referida exploração assinalaria o eclipse desses estados e das suas bases sociais.
Em segundo lugar, a comprovação de que o capitalismo é um sistema baseado num encadeamento de hierarquias fortemente autoritárias, desde a empresa em ascensão até chegar ao centro do poder mundial através de uma complexa articulação de estados, grupos económicos, instituições internacionais, meios de comunicação, etc. A hierarquia imperialista do capitalismo é inerente ao mesmo, é a sua forma histórica, concreta, de reprodução. Nunca foi uma articulação pacífica e sim um conjunto violento e instável onde a autoridade é ganha e conservada com guerra, pressões, armadilhas, etc. Mas até ao fim da Segunda Guerra Mundial essa hierarquia jamais pôde estruturar-se em torno de um único centro estatal, super-imperialista, de poder. Desde o início da modernização e sua sombra colonial encontramo-nos perante sucessivas rivalidades e guerras inter-imperialistas.
A fantasia da globalização regida por uma só potência mundial, apesar de insinuar concretizar-se nos longínquos anos 1990, foi-se desvanecendo na década seguinte. A submissão da Europa e do Japão à chefia estado-unidense continua a basear-se na degradação de ambos os sócios menores; factos recentes como os da Líbia, Síria e Ucrânia são bons exemplos disso. Mas acontece que o chefe imperial também se degrada, o que introduz a incerteza quanto ao futuro dessa convergência central. Pelo seu lado, a periferia vai-se descontrolando precisamente quando mais necessário é o seu controle (super-exploração) para a reprodução do parasita. Em consequência o império enfurece-se, desespera-se, resgata toda a sua memória racista não só para expulsar ou reduzir à escravidão os intrusos periféricos que se instalam nos territórios imperiais como também para converter seus países de origem em zonas de caça livre.
Esta última etapa ilumina toda a história anterior do sistema, destrói seus mitos decisivos, deixa a descoberto sua falsidade essencial. Sobretudo o mito do capitalismo como progresso, como etapa superior na sucessão de civilizações, ou seja, como a mais potente negação da barbárie.
Boa parte das ideologias anti-capitalistas dos séculos XIX e XX apresentavam a superação do capitalismo como uma espécie de continuidade a um nível superior, de negação inicial, revolucionária, apoiada nos êxitos “positivos” do velho mundo (o projecto de ruptura albergava condicionamentos culturais que asseguravam a reprodução de aspectos decisivos da civilização burguesa).
Mas a degeneração em curso desse sistema retira o véu ideológico e mostra o seu verdadeiro rosto. Os feitos aparentemente positivos da sua tecnologia (em que o capítulo militar é decisivo) surgem inscritos num contexto de conquistas coloniais com centenas de milhões de assassinatos, com liquidações de criações culturais, qualificadas com desprezo como atraso ou subdesenvolvimento, depredando até à extinção uma ampla variedade de recursos naturais.
Podemos incluir um pequeno acrescento entre parênteses à célebre expressão de Voltaire para afirmar que a civilização (burguesa) não suprimiu a barbárie e sim que a aperfeiçoou. O capitalismo não deve ser assumido como uma etapa em última instância positiva na marcha do progresso humano e sim como uma desgraça, como um desastre, uma degeneração cuja não existência teria evitado numerosas tragédias. O balanço histórico da sua evolução é globalmente negativo, muitos dos seus progressos científicos e tecnológicos teriam sido obtidos seguindo provavelmente outros ritmos e caminhos mas em contextos sociais menos terríveis.
Hegel, nas suas lições de filosofia da história, estabelecia que o desenvolvimento da liberdade, componente da marcha da Civilização entendida como encadeamento de civilizações, como a evolução do progresso universal, nascia penosamente no Oriente (ou seja, na periferia) para realizar-se integralmente no Ocidente com a vitória mundial da sua civilização, da modernidade burguesa [16] . A soberba eurocêntrica impedia-o de perceber que a liberdade periférica (embrionária, em desenvolvimento) havia sido arrasada, abortada, liquidada por um Ocidente parasitário e depredador concretizando a maior matança da história humana e sua civilização sanguinária só podia afirmar-se repetidamente por meio da força bruta, dos seus dispositivos militares contra os povos oprimidos da periferia (e quando foi necessário também contra suas próprias populações como o demonstrou o fascismo europeu do século XX, agora em pleno renascimento).
A subestimação, o desprezo ocidental, sua visão desumanizante das culturas periféricas, constitui uma peça chave da sua ideologia imperial estruturada durante muitos séculos de saqueio. A animalização da imagem do homem do “resto do mundo” fez parte da construção psicológica que facilitou ao colonizador do Ocidente a realização dos grandes genocídios legitimados como obra civilizadora. A ignorância ou desprezo das riquezas culturais da periferia, da criatividade das suas bases sociais, do potencial de autonomia das suas comunidades camponesas não só armadilhou o cérebros das elites ocidentais como também uma boa parte dos seus inimigos internos. Foi assim que Gramsci pôde chegar a afirmar que na velha periferia pré capitalista “o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa” ao passo que no Ocidente existia uma robusta sociedade civil [17] o que não permite explicar como fizeram, por exemplo, as populações andinas da América para sobreviver culturalmente ao genocídio inicial da conquista seguido por mais de cinco séculos de opressão e pilhagem ocidental, ou outras proezas culturais dos periféricos da Ásia e da África.
É necessário entender que o declínio em curso do mundo ocidental se converte em degeneração do seu tecido ideológico e económico planetário, ou seja, do capitalismo como totalidade universal. Desde os anos 1970 sucederam-se as ilusões quanto às emergências capitalistas não ocidentais, desde o milagre japonês, passando pelos tigres e dragões da Ásia (Coreia do Sul, Formosa, etc) até chegar à China. Em todos esses casos era evidente que as expansões industriais exportadoras que lideravam os desenvolvimentos “milagrosos”se apoiavam nas necessidades dos mercados ocidentais ou de mercados periféricos fortemente dependentes dessas procuras. Em consequência, a deterioração dos referidos mercado golpeia os capitalismos não ocidentais. Além disso, factos como a hipertrofia globalizada das redes financeiras estabeleciam um só espaço mundial estreitamente intercomunicado. Portanto, a impossível desfinanciarização do capitalismo constitui um bloqueio comum do qual não podem escapar nem o centro nem a periferia. Esta última, além disso, quando embarca na prosperidade burguesa fica submetida ao modelo consumista, às pautas ideológicas ocidentais que têm efeito destrutivo devastador (familiar, comunitário, ambiental).
Em meados de 2008, em plena explosão financeira, Richard Haass , presidente do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, publicou um artigo onde lançava o sinal de alarme: a unipolaridade estava condenada à morte e não tendia a ser substituída pela multipolaridade, estava começando a emergir um mundo não polarizado que o autor carregava de imagens caóticas [18] . Haass percebia que o fim da hierarquia imperialista, unipolar desde 1991 e multipolar em toda a história anterior do sistema (incluído o período de auge do império britânico) podia chegar a ser uma espécie de “fim do mundo”, de ruir da “civilização”, ou seja, de desarticulação do capitalismo como cultura universal e naturalmente adiantava algumas medidas correctivas que permitiriam atenuar o suposto desastre.
Haass tinha razão quando advertia que a não polaridade albergava o fantasma do fim da “civilização” (burguesa). George W. Bush e depois Barack Obama tentaram impedir esse futuro introduzindo correctivos militares que acabaram por agravar a enfermidade do império propagando o caos onde lhes foi possível.
Por sua vez, potências periféricas como a Rússia e a China não estão em condições de reordenar, no sentido burguês do termo, a desordem causada pela decadência ocidental através do desenvolvimento de novos espaços capitalistas hierarquizado em substituição dos velhos espaços agonizantes. Não são forças negentrópicas do sistema e sim zonas capitalistas resistentes submersas, também elas, na decadência global. Tentam travar as bofetadas do império contra os seus interesses, mas ao resistir, revidar ou avançar sobre os flancos débeis do adversário contribuem para a “desordem” geral, bloqueiam as tentativas de recomposição do domínio ocidental do mundo e desse modo agravam a degeneração global do capitalismo.
A insurgência global como necessidade histórica
As elites dominantes da China e da Rússia, também as do Brasil, Índia ou Irão, acreditam na possibilidade de desenvolverem seus capitalismos nacionais, fazem o que podem para não afundarem no desastre ao qual o Ocidente as quer condenar. Mas o carácter global, profundamente inter-relacionado do sistema de que fazem parte, condiciona suas astúcias.
Todos esses tropeções e empurrões entre o centro e a periferia contribuem para criar um panorama global rarefeito que a qualquer momento pode redundar em guerras e situações pré bélicas a nível regional, ameaçando por vezes transformar-se em confrontações mundiais como ocorreu em 2013 devido à situação síria e em 2014 com a ucraniana.
Karl Polanyi descrevia a longa “pax europea” (salpicada de conflictos menores) que vigorou desde o fim das guerras napoleónicas até 1914, resultado segundo ele do papel harmonizador, apaziguador de conflitos, cumprido por alguns factores ocultos dentre os quais destacava a “haute finance”, os círculos financeiros europeus mais elevados que, pondo-se acima dos interesses políticos e nacionais, amarravam compromissos, negócios atravessando países e consequentemente acalmando as disputas inter-imperialistas [19] .
Mas Polanyi só olhava a superfície do fenómeno. Na realidade os negócios da “haute finance” fundavam-se na vertiginosa acumulação de capitais proveniente principalmente da rapina imperialista do mundo, um de cujos pilares essenciais era a acção dos estados ocidentais, o desenvolvimento dos seus aparelhos militares (fonte decisiva de negócios) e da consequentes megalomanias “patrióticas” das respectivas burguesias nacionais rivais. Polanyi assinala que “os Rothschild não estavam sujeitos a um governo; como uma família, incorporavam o princípio abstracto do internacionalismo; sua lealdade era entregue a uma firma, cujo crédito se havia convertido na única conexão supranacional entre o governo político e o esforço industrial numa economia mundial que crescia com rapidez” [20] . Na realidade o papel “pacificador” dos Rothschild fazia parte de um jogo duplo perigoso mas muito rentável. Por um lado excitavam as bestas alentando suas ambições (e de imediato entregavam-lhes a conta) e por outro acalmavam-nos quando ameaçavam fazer um desastre. Mas essa sucessão de excitantes e calmantes aplicadas a bestas que absorviam drogas cada vez mais fortes terminou como tinha que terminar: com uma gigantesca explosão (Agosto de 1914).
Transferindo-nos para o mundo actual é necessário afirmar que a globalização dos negócios não estabelece um manto transnacional pacificador e sim exactamente o contrário, sobretudo nos centros globais de poder político-militar incentivando megalomanias criminosas.
É no interior do sistema global decadente que se desenvolvem as ilusões, esperanças e rebeldias da periferia. A ilusão de assegurar capitalismos autónomos sob as bandeiras da restauração da “identidade russa” ou do “socialismo de mercado” chinês ou de um socialismo a meias como na Venezuela ou de uma sociedade baseada no islão como no Irão ou de capitalismos “progressistas” como no Brasil, Argentina ou Equador. Mas também a resistência ao invasor no Afeganistão ou na Líbia até chegar à guerra prolongada pelo socialismo das FARC na Colômbia, aos protestos sociais na Europa, etc. Esse grande quebra-cabeças não constitui uma insurgência global nem muito menos um movimento em vias de articulação e sim um processo sumamente heterogéneo onde se apresentam erupções efémeras, ciclos de longa duração, tentativas de desenvolvimento capitalista relativamente autónomo, rebeliões anti-capitalistas, etc que podem ser vistos de diferentes maneiras. Uma delas é a de uma grande turbulência periférica que se vai expandindo em meio a contradições de todo tipo a anunciarem ao mesmo tempo cenários futuros de insurgência popular contra o sistema e o seu contrário: o afundamento em degradações prolongadas.
É nesse espaço complexo no qual as potências ocidentais tentam arrasar, isolar, demonizar, triturar, que se reproduz um gigantesco proletariado universal, vários milhares de milhões de camponeses, operários, marginais, comerciantes miseráveis, etc condenados à morte ou à sobrevivência infra-humana pela dinâmica decadente do sistema. Constituem uma realidade plural que se opõe naturalmente à homogeneização escravizante do Ocidente tentando preservar e/ou construir identidades, espaços de liberdade, sobreviver, viver dignamente.
Os próximos anos dirão se a partir dessa massa proletária irrompe a insurgência global que desdobrando-se na sua pluralidade irá convergindo na segunda ofensiva contra o império. A primeira ocorreu no século XX a partir da Revolução Russa, convertendo-se numa rebelião global que se prolongou durante cerca de seis décadas abarcando desde a China até Cuba, passando pela Argélia, Vietname, Nicarágua.
Há meio século estavam na moda na Europa ocidental autores que denunciavam a perda de hegemonia da região, superada por superpotências extra-regionais como a URSS, os Estados Unidos ou o Japão. Um desses textos, de grande êxito editorial, foi “El rapto de Europa” [21] de Luis Diez del Corral. Sua tese era que nações extra europeias estavam a roubar à Europa, ou já haviam roubado, sua maior criação cultural: a modernidade.
Deslumbrado pelo mito grego, o autor não reflectiu o suficiente acerca do seu significado histórico: Zeus rapta Europa, princesa do Oriente Próximo enganada pelo deus que mimetizado como touro a induz a montá-lo, do que se aproveita para sequestrá-la e levá-la à sua ilha. A origem do Ocidente histórico é o engano e o roubo. Seu próprio nome, Europa, é o de troféu, produto do roubo. Em última instância, se o mundo não ocidental se apropriasse da modernidade ocidental não estaria a fazer outra coisa senão recuperar o capital mais os juros das riquezas que o ladrão lhe havia sacado durante séculos: ouro, prata, petróleo, cereais, centenas de milhões de vidas humanas. Na realidade, o planeta hoje está completamente modernizado. Para uns (o centro do mundo) isso significa desenvolvimento capitalista, poder, privilégios, ao passo que para o resto do mundo quer dizer subdesenvolvimento capitalista, miséria, frustrações.
De qualquer forma, a “apropriação periférica da modernidade” é um anzol envenenado, é a ilusão de reproduzir os supostos êxitos culturais da civilização burguesa de modo independente ou a enfrentar o Ocidente. Quando o escravo imita o amo ou pretende regenerar sua comunidade adoptado-adaptando seus fundamentos ideológicos, o que consegue é bloquear a criatividade revolucionária da sua base social. Como o demonstra a experiência histórica do século XX [22] , quando acredita ter encontrado o fio de Ariadne que lhe permitirá sair do labirinto, aferra-se ao mesmo e marcha triunfalmente rumo à saída… Na realidade agarrou a cauda do diabo o qual, astutamente, o conduz rumo a paragens ainda mais sinistras.
Mas a modernidade entrou no estado de decrepitude e a libertação das suas vítimas centrais e periféricas só pode ser alcançada por meio da negação absoluta do capitalismo, sua completa destruição, para a partir das suas cinzas construir um mundo novo. Nada autoriza a supor que essa proeza – a maior da história humana – seja inevitável. A regeneração pós capitalista é historicamente necessária ainda que não constitua um fenómeno inexorável imposto por supostas leis da história. Trata-se de uma tarefa que exige um gigantesco esforço voluntarista animado por ideias resultantes de práticas insurgentes, rebeldias mais ou menos radicalizadas, ensaios, erros, fracassos, êxitos efémeros ou duradouros.
Notas
[1] As decadências de civilizações anteriores e as reflexões contemporâneas sobre as mesmas, na medida em que conseguiam uma visão de certa amplitude associavam as referidas decadências com futuras renovações ou instalações de novas civilizações no mesmo território. A nível mundial, enquanto uma civilização decaía outras permaneciam ou emergiam. Agora, dado o potencial auto-destrutivo do capitalismo global, surge a possibilidade histórica do “fim da história” não no sentido idílico (sinistro) do mundo liberal feliz que Francis Fukuyama nos propunha há algumas décadas e sim como desastre universal.
[2] Marx e Engels, “La ideología alemana”, Ediciones Progreso, Moscú, 1974.
[3] Em 2012 as despesas do Departamento da Defesa chegaram a cerca de US%700 mil milhões. Se às mesmas forem adicionadas as despesas militares que aparecem integradas (diluídas ou ocultas) em outras áreas do Orçamento (Departamento de Estado, USAID, Departamento da Energia, CIA e outras agências de segurança, pagamentos de juros, etc) alcançar-se-ia um número próximo dos US$1,3 milhões de milhões. Esse número equivale a 50% das receitas orçamentais previstas ou 100% do défice orçamental. Essas despesas representaram quase 60% das despesas militares globais e se lhes somarmos as dos seus sócios da NATO e de alguns países vassalos extra-NATO como a Arábia Saudita, Israel, Colômbia ou Austrália estaríamos entre 75% e 80% da despesa global (Ref: Jorge Beinstein, “Capitalismo del Siglo XXI. Militarización y decadencia”, Ed. Cartago, Buenos Aires 2013).
[4] Narciso Isa Conde, Estados neoliberales y delincuentes , Aporrea, 20/01/2008,
(5) Johan Huizinga, “Homo ludens” (1954), Emecé Editores, Buenos Aires, 1968.
[6] Domenico Losurdo, “Las raices norteamericanas del nazismo”, Enfoques Alternativos, nº 27, Octubre de 2006, Buenos Aires.
[7] Hermann Rauschning, “La révolution du nihilisme”, Gallimard, Paris, 1980.
[8] Robert Kurz, Los orígenes destructivos del capitalismo , 1997,
[9] Em outros textos apresentei um conceito de Anouar Abdel Malek, no meu entender essencial para compreender o fenómeno. Trata-se do “excedente histórico” acumulado durante séculos pelo Ocidente em resultado de um saqueio universal sem precedentes, um património imperialista baseado na destruição do contexto ambiental e de civilizações de todos os continentes (Anouar Abdel Malek, “Political Islam”, Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978.
[10] Angus Maddison,”The World Economy: Historical Statistics”, OECD 2003.
[11] René Grousset qualificou-a como “a primeira expansãon colonial do Ocidente”. Renée Grousset, “Las cruzadas”, EUDEBA, Buenos Aires, 1965.
[12] “O poder veneziano baseava-se na sua capacidade para fabricar armas de acordo com os modernos princípios da especialização e da produção capitalista”, assinala Victor Davis Hanson. E acrescenta que “três anos depois de Lepanto o monarca francês Henrique III, que se encontrava em Veneza, visitou o Arsenal que, para seu assombro, montou, equipou e lançou uma galera em uma hora!
Em condições normais, recorrendo a princípios de construção naval, financiamento e produção em massa comparáveis unicamente aos do século XX, o Arsenal era capaz de lançar uma frota inteira de galeras no espaço de uns poucos dias”, Victor Davis Hanson, “Matanza y cultura. Batallas decisivas en el auge de la civlización occidental”, Fondo de Cultura Económica-Turner, México D.F. / Madrid 2006.
[13] Bertrand Gille, “Les ingénieurs de la Renaissance”, Herman, Paris 1964.
[14] James O’Donnell, “La ruina del imperio romano”, Ediciones B, Barcelona 2010.
[15] Victor Davis Hanson, op cit.
[16] G.W.F Hegel, “La Raison dans l`Histoire”, Union Générale d`Editions, 10/18, Paris 1965.
[17] Antonio Gramsci, “Cuadernos de la cárcel”, Ed. Era, México, 1999.
[18] Richard N. Haass, “The Age of Nonpolarity. What Will Folow U.S. Dominance”, Foreign Affairs, Mai/June 2008.
[19] Karl Polanyi, “The Great Transformation.The Political and Economic Origins of Our Time”, Bacon Press, Boston, Massachusetts, 2001.
[20] K. Polanyi, op. cit.
[21] Luis Diez del Corral, “El rapto de Europa”, Alianza Editorial, Madrid 1974.
[22] Desde os fantasmas burocráticos da história soviética até chegar ao realismo burguês dos dirigentes chineses passando pelos diversos nacionalismos mais ou menos “socialistas” ou capitalistas do Terceiro Mundo.
Textos do Jorge Beinstein em resistir.info:
*Economista, professor na Universidade de Buenos Aires.
Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .