Gobierno de mierda?

Nunca se mente tanto como em véspera de eleição, durante a guerra e depois da caça (Otto von Bismarck)

Final da década de 1970. Quem intermediou o contato, não me lembro. O general Nelson Werneck Sodré tinha uma história pouco ortodoxa. Marxista, já estava na reserva em 1964. Os golpistas chegaram a prendê-lo e cassaram seus direitos políticos. Proibido de lecionar, dedicou-se, até morrer, a pesquisar e escrever livros. E lá estava eu, na frente daquela figura sóbria, que gostava de conversar. Acabara de ler Memórias de um soldado, alentado volume autobiográfico de Nelson, e estava cheio de dúvidas. Perguntei-lhe, claro, sobre o golpe de 64 e, especialmente, sobre as mulheres a quem chamara de “viragos marchadeiras da CAMDE”. Falou, então, sobre as articulações civis com a caserna, que desaguaram na deposição de Jango. Numa época de censura rigorosa, que castigava duramente a produção editorial, tive o privilégio de ouvir o testemunho de um protagonista dos acontecimentos que marcaram profundamente minha geração.

As palavras do general Sodré vieram à tona nos últimos dias. Não, entretanto, para referendar a conclusão duvidosa de que estamos à beira de um golpe, e que as manifestações de ontem só têm equivalência nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade (organizadas com eficiência, reconheça-se, pelas “viragos” da CAMDE). Esta interpretação, mais do que falaciosa, é, sobretudo, temerária. Errar no diagnóstico é o caminho mais curto para o desastre político. O Brasil está mergulhado numa crise múltipla, em nada parecida com a “marolinha” sentenciada por um certo ex-metalúrgico boquirroto. De nada adiantará ocultar as conexões internas da crise com reações pavlovianas. A degradação econômica, refletida no homem comum com o aquecimento visível da inflação, se conjuga com o descrédito nos partidos políticos e os sucessivos escândalos de corrupção, para criar um quadro de enorme irritação e desalento. A novidade é que os que costumam reclamar na surdina saíram para as ruas. Ainda de forma inorgânica, sem unidade nas reivindicações e sem lideranças consistentes. Se, ao invés de Lobão, existisse um demagogo incendiário como Carlos Lacerda para dar lastro político à insatisfação, a crise adquiriria proporções bíblicas.

Estava ontem na avenida Atlântica para a caminhada matinal, quando cruzei com a multidão, aliás muito diversificada, que se concentrava para o protesto. Uns poucos, visivelmente isolados, pediam intervenção militar. Outros, também em escassa minoria, carregavam cartazes onde rotulavam Dilma de assassina (!!!!) e comunista (!??!). A maioria se agitava quando alguém puxava o coro com “fora PT”. A virulência das redes sociais não estava presente, felizmente, em Copacabana. Como em qualquer multidão, à esquerda e à direita, ninguém parecia muito preocupado em perguntar como fazer para alcançar os objetivos. No passado, quando estávamos nas ruas gritando “fora daqui o FMI”, não tínhamos a menor ideia de como chegar lá. O mesmo para os que pedem a afastamento do PT. É absolutamente legítimo discordar, mesmo que aos berros e sem apresentar uma proposta concreta para viabilizar a reivindicação. Isso, em si, não torna ninguém golpista. A generalização será sempre marota.

A presidente e seu partido estão pagando o preço por uma série impressionante de equívocos e desvios. Na base de todos eles, a burocratização da política. Dilma é um quadro político medíocre, sem a menor paciência para trabalhar nas costuras parlamentares e na construção de consensos. Sua alardeada eficiência técnica está fortemente abalada pelas encrencas da Petrobras. Semana passada, ao ser vaiada num evento em São Paulo, amarrou a tromba e interrompeu a programação. Não tem a menor capacidade para absorver as contrariedades do exercício do poder. Seu diálogo com a sociedade é pífio. Discursos protocolares, despolitizados, mistificadores. É bom não esquecer que sua tática Pinóquio nas últimas eleições foi rapidamente desmascarada, e jogou gasolina no incêndio. As mentiras sobre a situação econômica e a crise energética facilitaram sua reeleição, mas fortaleceram a impressão de estelionato. Quem coordenou a campanha, ressalte-se, não foi o PIG. Cereja do bolo solado, o pronunciamento em cadeia nacional do dia 8 de março foi um dos maiores tiros no pé que já tive oportunidade de assistir. Omitindo o caráter de classe das origens do Dia Internacional da Mulher – omissão usual do PT no poder -, Dilma tratou de convocar uma “unidade nacional” e pedir “paciência” para medidas que, segundo ela, exigem sacrifícios de todos. Qualquer cartilha sobre o capitalismo mostra que, nele, não há divisão igualitária de sacrifícios. Quem paga a maior fatia dos custos das crises são, sempre, os de baixo, os explorados. É a ilusão da conciliação por cima, vendida à sociedade como “governabilidade”.

Nas manifestações das vanguardas sociais, no dia 13 passado, vi um cartaz que dizia: “Em defesa do projeto popular”. Desconheço a existência de um “projeto popular” para o Brasil, em fase de implantação pelo PT e com a colaboração do tripé “progressista” Joaquim Levy, Armando Monteiro e Kátia Abreu. Pode ser ignorância ou desinformação, mas suspeito que a causa seja outra. Não sou do ramo, mas parece que há sinais clínicos de esquizofrenia no PT. Por um lado, reivindica uma raiz nas massas, nas lutas populares. Por outro, faz política à revelia delas, desarticulado das incontáveis manifestações de organização do povo e associado ao que há de pior nas camadas burguesas e sua representação política. Não há uma única política pública relevante que tenha sido construída com a participação ativa dos trabalhadores organizados. Como bem acentuou Ricardo Melo: O PT se transformou num Partido da Ordem, completamente integrado aos diferentes setores que compõem as frações burguesas no Brasil. Pouco antes do golpe militar chileno, em 1973, houve grandes manifestações nas ruas de Santiago. A favor e contra Allende. Numa delas, um solitário trabalhador das minas de cobre levava um cartaz: És un gobierno de mierda, pero és mi gobierno. É cada vez mais improvável que se veja um cartaz desses traduzido para o português.

Sem uma liderança reconhecida e palavras de ordem claras e unificadoras, as manifestações antigoverno tendem a refluir. Afinal de contas, a classe média, coluna vertebral do pessoal que foi para as ruas, faz lembrar uma pequena história vivida pelo grande Almirante, a Maior Patente do Rádio. Em 1961, Sílvio Caldas visitou Almirante e, papo vai, papo vem, recordou a experiência do histórico radialista como diretor artístico da rádio Tupi: “Almirante, não vale a pena ser diretor de nada. O grande negócio é ser sócio contribuinte e falar mal da diretoria”. O agravamento da situação econômica pode modificar subitamente o quadro. Quanto ao governo, tudo indica que manterá a tática de pacto social com a burguesia. Não arriscará uma saída pela esquerda para enfrentar a crise. Desconfio que aquele mineiro chileno, caso morasse no Brasil, refaria seu cartaz, dizendo apenas: Gobierno de mierda !

Caso a situação evolua para uma tentativa de golpe, esteja ou não ligada ao impedimento da presidente Dilma, é preciso lutar contra ela. No entanto, isso não significa dar o aval para a continuidade do projeto petista de poder, fundamentado na conciliação de classes.

Jacques Gruman

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