Paris, terror e humanidade
Por Mauro Luis Iasi.
“Quando nascer o dia
e limparmos da varanda
os morcegos mortos
teremos que ter todo o cuidado
para não estar entre eles”.
(Mauro Iasi. Sobre o Trabalho da Civilização)
Devemos iniciar com a solidariedade e respeito ao sofrimento das vítimas e aos familiares daqueles que sofreram os ataques coordenados ocorridos em Paris. Nossa intenção de refletir analiticamente sobre eventos como estes não pode nos deixar indiferentes à dor daqueles que são atingidos, feridos ou perdem sua vida como peças de um jogo que nem sempre, ou quase nunca, compreendem de fato.
O presidente dos EUA, Barack Obama, disse em sua mensagem que se solidariza à França, pois era uma de suas mais antigas aliadas e que os atentados foram contra “as ideias e valores que constituem a base de nossas sociedades”, enfim, um ataque “contra a humanidade”. Um site especializado em abaixo assinados, certamente com a melhor das intenções, expressa com estas palavras sua indignação diante dos atentados:
“Este foi mais do que um ato monstruoso de ódio. Os ataques tiveram a intenção de desestabilizar a base de nossas sociedades. Foram um ataque à nossa humanidade compartilhada, tolerância, liberdade e respeito, valores que simbolizam o mundo pelo qual nosso movimento tem lutado“.
O que nos chama a atenção é um paradoxo reiterado em situações como essa, isto é, se o ataque foi contra a humanidade, quem os realizou não faz parte da humanidade? Nesta direção, o segundo comentário é mais preciso que o primeiro, uma vez que deixa claro que se trata de “nossa humanidade”. O adversário, o inimigo, o terrorista, torna-se um outro externo ao campo da humanidade, ou em outros termos preferidos, por exemplo, por Huntington, são de outra civilização.
Segundo este senhor, não haveria uma compreensão unânime sobre quantas civilizações comporiam o mundo, oscilando entre 7 e 23, mas se conformaria um “consenso razoável, acerca da afirmação sobre a existência de doze civilizações principais, entre elas sete que já encontraram seu fim e cinco que persistem (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental). O problema, ainda segundo Huntington, é que a civilização ocidental, pelo seu sucesso econômico e superioridade moral, está cercada pela migração que se impõe pelo número e insidiosamente iria minando os valores, a língua e os padrões de vida da sociedade ocidental que entra em declínio e tem o direito de se defender. Para ele o quadro conjuntural da política mundial configura o que chama de uma “guerra de civilizações”. Diz Huntington:
“O crescimento natural da população dos Estados Unidos é baixo e praticamente zero na Europa. Os migrantes têm altas taxas de fertilidade e por isso respondem pela maior parte do futuro crescimento populacional nas sociedades ocidentais. Em consequência, os ocidentais cada vez mais receiam “estarem atualmente sendo invadidos, não por exércitos e tanques, mas por migrantes que falam outros idiomas, adoram outros deuses, pertencem a outras culturas e, temem eles, irão tomar seus empregos, ocupar suas terras, viver à custa do sistema de previdência social e ameaçar seu estilo de vida”.
(HUNTINGTON, S. P. O Choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 249).
Apesar de alguns expressarem tais ideias conservadoras orgulhosos de seu reacionarismo, os ideólogos da ordem burguesa mundial recepcionam tais afirmações com inequívoco desconforto. Não pelo conteúdo que carregam e que fundamenta ações práticas no campo do ordenamento jurídico e geopolítico, mas porque revelam sem mediações a constatação que se trata de uma guerra contra “outras civilizações”, seus valores e padrões de existência. O trabalho da ideologia é encobrir esta constatação brutal , atenuando-a, e para tanto não se trataria de uma luta entre “civilizações”, mas da defesa “da civilização” e dos valores consensuais que caracterizam a “humanidade” contra minorias que ao atacar estes valores e esta civilização colocam-se fora da condição civilizada e humana (podendo, por isso mesmo, ser tratados como se não fossem humanos).
Toda a fala de Francois Hollande vai nesta direção, atacaram “nossa forma de vida”, nossos “valores”, e ao proceder desta forma, atacam “toda a humanidade”. Os próprios sujeitos dos atentados, caso se confirme o que hoje parece ser a maior probabilidade, isto é, que tenham partido do Estado Islâmico (ISIS), reforçam esta cortina ideológica ao afirmar em seu comunicado que atacaram símbolos de uma forma de vida “degradada e decadente”, marcada pela frivolidade e o pecado, arrogando a si mesmo a tarefa de empunhar a espada contra os “infiéis.
Nesta dimensão o discurso ideológico se presta a uma outra finalidade, reduzir as ações à dimensão do ódio irracional, como tal, não se exige nenhum esforço de compreensão mais profundo de causas e determinações, é apenas a irracionalidade das paixões, do fundamentalismo, da fé cega, da intolerância.
Caso se confirme a autoria do estado Islâmico, ou de subgrupos a ele associados, estas determinações precisam mesmo ser ocultadas para o bem da ordem, na França e na mítica civilização ocidental. Os que perpetraram os ataques, segundo testemunhas, gritaram que aquilo era uma vingança contra o que aconteceu no Iraque e na Síria. Mas, contra o que exatamente que aconteceu no Iraque e na Síria?
É certo que aqueles que aproveitavam de uma noite de sexta feira na Cidade Luz, indo à uma partida de futebol, jantando em um elegante bistrô ou indo a uma casa de espetáculo ver uma banca de rock, reagiriam, com certa razão, que nada tinham com as ações militares naqueles países distantes.
Aqui é necessário que adentremos um pouco mais na forma e conteúdo daquilo que se chama de “terrorismo”. O terrorismo é um instrumento de luta que se costuma usar, fundamentalmente, para tornar pública uma guerra que é secreta, ou que se dá abaixo da linha de visibilidade da consciência da uma boa parte da sociedade. Foi assim que foi utilizada pelos israelenses contra o domínio britânico, ou pelos argelinos da FLN contra o colonialismo francês, ou se quisermos voltar mais no tempo, pelos colonos norte-americanos contra o domínio britânico com ajuda dos franceses.
Os marxistas sempre tiveram reticências em relação ao terrorismo, essencialmente, por dois motivos: ele é um instrumento indiscriminado, isto é, não ataca diretamente o adversário, preparado para uma guerra, mas a população; segundo, pelo fato de que o marxismo compreende a revolução como um processo de transformação massivo que não prescinde da ação de vanguardas, mas que no entanto nunca pode se restringir à iniciativa de minorias. Nesta segunda acepção, mesmo as ações militares, muitas vezes decisivas, se subordinam à ação política. Podemos ver estes princípios claramente expressos nas criticas de Marx e Engels à Blanqui, em Lenin e Trotski no balanço das propostas do grupo “Terra e Liberdade” e do terrorismo na Rússia, em Fidel quando afirmava que a guerrilha só poderia ser o pequeno motor que faria mover o grande motor que era a ação de massas, e, de forma ainda mais evidente, mesmo na Revolução Vietnamita que se desdobrou para uma guerra direta contra os EUA.
A direita sempre usou do terrorismo de forma mais intensa sem muitas reticências. Os exemplos se multiplicam, desde a Operação Condor na America Latina, os Corpos Francos na Alemanha de 1918, as hordas nazi-fascistas que abriram caminho para Mussolini e Hitler, utilizaram largamente de ações terroristas, mas talvez o exemplo mais didático seja do secretário de Estado dos EUA, o senhor Mac Namara, que aconselhou os militares americanos que atacavam o Japão a usarem bombas incendiárias no lugar das convencionais, pois os incêndios, destruindo se alastrando pelas casas de madeira, tinham um potencial mais eficiente quanto à taxa de mortalidade.
No caso presente, as coisas são muito diversas. A guerra em si da qual se trata não é, nem de perto, secreta. Ela é pública e visível, no entanto as causas, interesses e acordos que estão por trás desta visibilidade, não são nem públicos, nem visíveis. O grupo em questão surge na desintegração do Iraque fruto da intervenção militar norte-americana apoiada por seus aliados, entre os quais a França, e sempre contou com a simpatia ou anuência do imperialismo. Trata-se de uma estratégia muito antiga e largamente aplicada na política imperialista no oriente médio, baseado no velho adágio romano – dividir para governar. O imperialismo aprendeu, inclusive por amargas experiências, que não convêm apoiar uma única força para desestabilizar um regime ou um país, sendo o melhor caminho o de apoiar diversas facções, dividi-las e se beneficiar de sua futura luta para que caiam todas sob sua dependência.
Desta forma os EUA, para criar um contraponto à revolução iraniana na região e desestabilizar um governo com certa independência, financiou, armou e bancou a subida ao poder de Saddam Houssein no Iraque, da mesma forma que armou, treinou e respaldou logisticamente Osama Bin Laden para intervir na guerra civil do Afeganistão. Sabemos o que ocorreu com estes senhores. Os fatos comprovam de forma inequívoca que os EUA e seus aliados financiaram, armaram, treinaram e apoiaram logisticamente o Estado Islâmico, assim como outros grupos mercenários e alguns rebeldes, com a finalidade evidente de desestabilizar o governo de Bashar al-Assad na Síria, assim como operaram na destruição da Líbia.
Os EUA, a França, a Alemanha e outras potências não fizeram isso na defesa de valores sagrados da sociedade ocidental, pelo menos não aqueles que hoje tem de ser colocados em evidência pelo discurso ideológico, isto é, na defesa da igualdade, liberdade e fraternidade, para garantir uma sociedade fundada na “tolerância e no respeito”. São outros valores os que aqui são centrais: os valores monetários e financeiros, os valores do petróleo e do gás, os valores como substância que precisa se impulsionar constantemente à autovalorização pela exploração do trabalho. A garantia desses “reais valores fundamentais” colidiu diretamente com os outros valores abstratos que dizem defender.
Independente do juízo que façamos dos regimes políticos em questão (no Iraque, na Líbia ou na Síria), as pessoas que foram atingidas como peças do jogo do capital imperialista mundial e da geopolítica do pós-guerra fria, também iam a restaurantes, assistiam partidas de futebol, viam espetáculos musicais. É um tanto quanto difícil manter um padrão de vida numa vila ou cidade destruída pelas bombas da coalisão que atacou a Síria, ou seus mercenários armados e financiados pelos Estados ditos ocidentais. As pessoas das cidades destruídas empreendem uma dura peregrinação para sobreviver sob o terror da ocupação do Estado Islâmico, que autorizou o estupro como direito legítimo, por exemplo, ou o desespero da fuga que os leva ao mar e a indiferença das fronteiras fechadas. Até agosto de 2015 a estimativa é que haviam morrido mais de 240 mil pessoas na Síria, entre elas, 12 mil crianças.
Quando Žižek analisava os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, dizia que a verdade mais dramática que os norte-americanos perceberam com os ataques é que o mundo não gostava deles como eles próprios imaginavam, que eles não eram os heróis da liberdade do mundo e garantia da democracia planetária, mas que parte da humanidade os via como inimigos e algozes. (Ver:Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas N.E.).
De certa forma é o que se vê hoje nos ataques em solo francês. Por que alguém atacaria a terra da igualdade, da liberdade e da fraternidade, das artes e da cultura, de vinhos e queijos, da culinária refinada servida em porções minúsculas? Quando a Constituição francesa redigida após a Revolução de 1789 declara os princípios da igualdade e da liberdade (a fraternidade foi quase que imediatamente esquecida), os franceses “esquecem” que havia escravidão objetiva em suas colônias (como no Haiti, por exemplo) que ainda não tinha sido abolida. Esquecem também como os direitos “universais” não se estendiam aos trabalhadores, proibidos de se associar em defesa de seus salários ou participar das eleições em sua Nova República hierarquizadas pelo voto censitário. Quer dizer, sempre alguém ficou de fora do campo dos sagrados valores da “humanidade”. Vinte nações africanas conseguiram romper com o colonialismo francês somente na segunda metade do século XX.
Hoje o problema não é mais apenas o mundo lá fora cujo papel é ser saqueado para garantir a civilização burguesa. A contradição, já há algum tempo, migrou para dentro das ilhas de prosperidade do capital, na força de trabalho barata e precarizada, nos serviçais, na superpopulação relativa. Ao que parece, caso se confirmem os fatos, muitos dos sujeitos dos atentados não são os imigrantes cuja estigmatização servirá para o endurecimento das políticas xenófobas de fechamento das fronteiras da Comunidade Européia, mas de filhos do próprio solo francês nascidos na velha Europa, e que não se veem como parte desta civilização que os despreza cotidianamente.
Tanto o mar de refugiados, como os ataques são a volta do bumerangue da política externa francesa. Mas há ainda um ingrediente adicional desta crise. A própria Europa está cindida internamente. (Ver: “O bumerangue de Foucault: o novo urbanismo militar”, de Stephen Graham, em Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios de sua superação. N. E.).
O drama que vivemos não se resolverá na defesa abstrata da humanidade contra aqueles que a atacam, uma vez que o que os olhos “ocidentais” não conseguem ver no espelho é que fazem parte da humanidade tanto as vitimas dos ataques quanto aqueles que os praticaram. Uma humanidade cindida, fragmentada por interesses que beneficiam uma ridiculamente pequena parcela da população, protegida em seus bunkers na forma de poderosos Estados militarizados, condenando os demais a comprovar dramaticamente sua condição de simples mortais.
Nem o Estado francês e seu presidente conservador, tampouco os EUA e seu presidente eleito como um democrata, ou os que empunharam armas e bombas em Paris, parecem representar de fato a combalida humanidade como um todo. Todos são parte dela. Parte de uma forma histórica que a humanidade assumiu e precisa ser superada. Precisamos urgentemente saber ver esse fenômeno como um alerta. Ele é a face grotesca que se reflete em nosso espelho, e que dói tanto olhar de frente.
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog da Boitempo