Poderão as manifestações de rua deter a temerária ofensiva burguesa?
Por Gabriel Landi Fazzio
“Para não ter protestos vãos, para sair deste antro estreito, façamos nós com nossas mãos tudo o que a nós nos diz respeito”. – Verso de “A Internacional”, hino do movimento comunista internacional.
Quando as primeiras manifestações pela deposição da presidenta Dilma, ainda em 15 de março de 2015, colocaram algo em torno de 300.000 pessoas nas ruas em todo o país, uma onda de desconforto se alastrou entre os setores autodeclarados “progressistas”. Para a esquerda reformista e parte da revolucionária, causava espanto que a direita se valesse de “seus” métodos. Ora, a direita não tinha à sua disposição outras armas e formas de luta? Não combatera desde sempre qualquer manifestação de massas? Por que subitamente desciam às ruas em multidão os pequeno burgueses reacionários e setores mais atrasados das massas trabalhadoras?
Não faltou quem culpasse a própria massa por, em junho de 2013, ir às ruas e abrir uma suposta “Caixa de Pandora conservadora” – que o lulismo esperava ter selado com muita segurança em seus acordos. Muitas e muitos camaradas refutam assertivamente tal discurso contra as jornadas de junho e fazem melhor que os governistas rancorosos ao ter mais cautela em debater o caráter de junho, preferindo apenas abordar a questão relembrando que a classe trabalhadora e os “progressistas” não têm o monopólio do protesto como desejariam: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade era o exemplo que sempre vinha à tona, carregado de todo o alarmismo que se poderia esperar.
Para os setores contrarrevolucionários, a desculpa vinha a calhar: é preciso desmobilizar as massas, sob pena de perdê-las para a reação! E, precisamente porque a ala esquerda do regime não sinalizasse mais nada de progressivo à pequena burguesia radicalizada, os protestos de direita se enraizaram. Conforme a direita dava sinais de que não sairia das ruas, o movimento contra a ofensiva burguesa (materializada no processo de impeachment, com todas as ilusões legalistas de tal movimento) decidiu adotar também como tática prioritária as manifestações de rua. O erro de tal política era gritante: seria possível crer que se produziriam manifestações maiores que as da direita, agitadas pelas mídias e estruturadas com rios de dinheiros? E, em não sendo capaz de produzir manifestações maiores, o movimento contra o impeachment mostraria algo mais que seu isolamento social e sua debilidade?
Ainda depois do insucesso de tal tática, a luta contra o governo Temer se inicia insistindo no equívoco da fase anterior! O que explicaria tal situação?
A conquista da rua em junho
Quando se iniciaram os protestos contra o aumento da tarifa, em 2013, o movimento já contava com a repressão como um elemento de sua tática. Como de costume, os atos buscariam ocupar as avenidas centrais de maior fluxo no horário de pico, de modo a atrapalhar o trânsito na maior escala e tempo possível. Como de costume, os protestos seriam, mais cedo do que tarde, reprimidos em nome do direito de ir e vir (um direito, afinal, dos indivíduos em seus carros privados, não das massas) e ganhariam com isso maior visibilidade na mídia. Em São Paulo, onde quase 40% dos deslocamentos são realizados por meio de veículos particulares, esse discurso repressivo do “balanceamento de direitos” há muito tempo tinha grande legitimidade. Mas, a esse respeito também, junho foi um ponto de viragem. Naqueles dias, a tática das ruas demonstrou o que poderia aportar ao movimento: após a noite da mais escancarada repressão em anos de protestos contra o aumento da tarifa (quinta-feira, 13 de junho) as manifestações ganharam projeção espetacular e os protestos cresceram espantosamente, culminando em uma noite na qual centenas de milhares, talvez milhões de pessoas foram às ruas (17 de junho). Estava conquistado, de fato, o direito das massas à livre manifestação, mesmo contra o direito individual de ir e vir.
É evidente que, com isso, cessaria a repressão à massa – mas seria obrigada a recuar alguns passos, permitindo uma maior margem de protestos dali em diante. Não à toa, as manifestações de rua ganharam fôlego no período seguinte. Pressionados a tolerar o direito à massa de ir e vir em protesto, os órgãos de repressão do Estado passariam a se valer abertamente do direito de propriedade e da ordem social como discurso legitimador. A esse propósito, as ações diretas realizadas por elementos radicalizados do movimento passariam a ser indispensáveis à legitimação da repressão: o direito à manifestação é plenamente reconhecido, mas não se confunde com o “vandalismo de uns poucos”, a anarquia – na verdade, a insurreição.
Seria importante frisar que não só nesse aspecto junho foi um ponto de viragem: naqueles dias, centenas de milhares de jovens se puseram em movimento e puderam aprender uma série de lições práticas da luta de classes: o caráter repressivo do Estado, o caráter conservador da mídia e, mais importante, a lição de que a luta social é a única arma à disposição das massas despossuídas. Identificar essa massa à que protestou em favor do impeachment é um equívoco grosseiro.
São esses os 20 centavos espirituais que se conquistaram em junho: por um lado, um salto significativo de consciência para amplos setores; por outro, a conquista moral das ruas como principal espaço da luta de massas. E, no entanto, também foi em junho que os limites de tal forma de luta puderam ser vistos de modo inequívoco pela primeira vez: afinal, materialmente, a convulsão social promovida por centenas de milhares significou pouco mais que 20 centavos. Junho representou, para os setores mais jovens da classe trabalhadora e da pequena burguesia, um salto de consciência. Ao mesmo tempo, a vitória material do movimento não poderia levar senão à sua depressão: conquistada a causa, era hora de voltar para casa. Isso, somado à desorientação da vanguarda, defrontada com o evidente descolamento entre a espontaneidade das massas e as ações organizadas (empurrando alguns definitivamente para as posições apologéticas dos “novos sujeitos sociais”), ajudou a produzir um desânimo crescente, uma sensação de expectativas frustradas quanto às manifestações de rua. A esse respeito, ao menos sobre esse sentimento crescente em frações da vanguarda, valeria lembrar as palavras de Lenin [1] às portas da revolução de Outubro sobre o estado de ânimo das massas, tendo em mente evidentemente as distinções das fases da luta aqui (onde percebem-se temporalidades ainda muito distintas na compreensão das lições históricas) e lá:
“[Alguns argumentam:] Como todos relatam, entre as massas não existe o estado de ânimo para sair às ruas. Entre os sintomas que justificam o pessimismo figura também a difusão, aumentada ao extremo, da imprensa pogromista e ultrarreacionária…
[Aqueles que assim argumentam esquecem] que todos reconhecem também que entre os operários conscientes existe certa falta de desejo de sair às ruas só para manifestações, só para lutas parciais, pois está no ar a proximidade de um combate não parcial, e sim geral, e a falta de sentido das greves, manifestações e pressões isoladas já foi provada e compreendida por completo”.
Uma tática limitada às manifestações de rua
Assim se explica a supervalorização, pelas forças conscientes, das manifestações de rua: sua base está no papel destacado que essa forma de luta adquiriu nas fases anteriores, principalmente no tocante ao desenvolvimento da consciência política de amplas massas. Restaria explicar o motivo pelo qual precisamente esta forma de luta, durante todo o período precedente, talvez desde os anos 90, mas certamente após 2013, assumiu tal papel destacado! Daí é possível debater os potenciais e limites desta forma de luta.
Um apontamento bastante exato e corriqueiro é aquele, aparentemente “desmobilizador”, que resmunga sobre como após as manifestações das massas nas ruas, cada indivíduo retorna à sua casa com a consciência um pouco mais tranquila por ter se manifestado, talvez um pouco mais desenvolvida quanto a algum aspecto que experimentou na luta de massas, mas, no mais das vezes, nada se altera materialmente no “dia seguinte”. Em verdade, o direito à manifestação se encena apenas nessa esfera alegórica do espaço público democrático burguês – um mundo onde a cisão entre o privado e o público é traumaticamente erigida e preservada. Afinal, o direito à manifestação é o direito à expressão pública da vontade privada, não uma despótica intervenção da vontade publicamente expressa sobre a realidade privada. Os despossuídos podem livremente pedir, não impôr qualquer obtenção! A classe dominante sempre se colocará à disposição para comprovar essa verdade às massas: querer não é, imediatamente, poder.
Em um exemplo menos óbvio ao caso, mas onde essa cisão se evidencia: se os trabalhadores querem fazer greve, que não haja motivos políticos de fundo (decreta-se tão corriqueiramente banida a luta de classes!); se querem se manifestar politicamente, que o façam enquanto cidadãos, não enquanto classe.
Preservada essa cisão, as manifestações de rua são o front legal onde se concentra toda a oposição minimamente organizada e que assume um caráter mais geral e político do que a tolerada greve econômica, esta “luta privada”. E o que resta à massa em tais manifestações? Se não se confrontam diretamente enquanto classe com outras classes; se aparentemente não haveria propósito em se dirigirem enquanto cidadãos a um ente privado, como uma empresa ou um veículo jornalístico; então o que lhes resta é ser a forma de massas da luta parlamentar. Em outras palavras: a premissa das manifestações de rua legalmente asseguradas é um diálogo entre a massa de cidadãos e um poder público legitimamente constituído, que responda às demandas manifestadas dentro de certas regras.
Nestes termos podemos entender com mais facilidade o sentido tático e os limites estratégicos desta forma de luta: os protestos de rua buscam incidir sobre a opinião pública, criando transtornos pontuais à mera reprodução cotidiana do trabalho, como a ida ou a volta do emprego para casa (sem, no entanto, pô-la em risco mais prolongado). Assim, todas camadas afetadas demandam ao poder público uma resposta, tanto a fim de aplacar os cidadãos manifestantes, quanto a fim de evitar os ônus legais administrativos e políticos eleitorais que um mandatário estatal pode ter diante de tal tipo de protesto, perante os seus “representados”, caso não se mostre apto a retornar o cotidiano ao seu estado original, pondo fim às manifestações pela força ou pelo consenso. Mas é precisamente por operar nessa dinâmica que as manifestações tem um limite temporal nítido: caso se prolongue a intransigência do poder público em negociar e, por conseguinte, os protestos, o apoio a estes tende a ser decrescente, quanto mais transtornos causem efetivamente à reprodução cotidiana da divisão social do trabalho e, com isso, imediatamente a diversos setores da própria massa trabalhadora – sem, contudo, oferecer radicalmente uma alternativa organizada à desorganização que se provoca. Daí deriva o fato de que o poder público busca, precisamente, protelar, “dar corda ao enforcado” – e apenas ceda aos protestos de rua caso esses se prolonguem sem dar sinais de cansaço e refluxo, ao contrário, aglutinando crescentemente novos setores das massas.
Diferente dos contextos abertamente ditatoriais, onde as manifestações de massas são proibidas e sua mera ocorrência já assume um caráter de contestação radical e geral ao regime em geral; nas democracias burguesas o direito à manifestação é um direito “cidadão”, aceito conquanto não se aproxime das portas da insurreição e conquanto se prenda às questões parciais e pontuais, ao possível das reformas, tratando o Estado como interlocutor legítimo – caso contrário, os protestos são, evidentemente, “rebeldia sem causa”. Nos casos em que os protestos se tornam generalizados e vigorosos e passam a se combinar com outras formas de luta como as greves, as ocupações, as sabotagens, etc, o limite dessa interlocução é escancarado: “renuncie”, poderá pedir legitimamente a massa ao governo. Esse é o limite da “reivindicação” – o resto deverá ser feito pelas próprias mãos. E, caso as massas proletárias disponham, em tal contexto, da sua organização política capaz de forçar a deposição e assumir o poder, é possível ultrapassar esse limite da “interlocução”. Caso contrário, os protestos tenderão ao refluxo e repressão, seja pelas mãos deste governo combatido ou do próximo, de uma força social ainda mais reacionária que operou por si a deposição.
Interessante pontuar, a esse respeito: as manifestações pró-impeachment puderam se dar ao luxo de serem estáticas por contarem com ampla cobertura midiática (ou seja, se combinarem às formas de luta midiáticas da burguesia). O caráter destes protestos é, como parte desses próprios manifestantes agora descobrem, apenas de legitimação da deposição e não de causa da mesma. Por outro lado, no curso dos protestos, as forças anti-impeachment também passaram a fazer manifestações imóveis, talvez em parte por vícios de comícios, talvez por receio de se expor à vista e ao transtorno geral. Parte do motivo de seu insucesso reside aqui – e em mais toda uma série de hesitações em momentos de usar efetivamente as próprias forças sociais e parlamentares. E enfim, uma vez que a massa, pela luta, conquistara seu direito de ir e vir pela cidade e agora parte dela o sacrificava em nome de seu direito de ocupar a Paulista, as forças de segurança já buscam redefinir seus limites ao protesto da massa: o direito à rua, mas com trajeto definido e previamente comunicado.
Talvez fosse o caso aqui de parafrasear as conclusões de Bernard Edelman [2]: as manifestações de massas podem ser formas de luta de diversas classes, mas o direito à manifestação é um direito inequivocamente burguês. A começar porque nasce do direito de opinião, individualizado e que apenas precariamente se efetiva ao patamar da luta de massas (incontrolável em suas minúcias e que sempre tende a ultrapassar os estreitos limites da legalidade). Em segundo lugar, porque encontra na própria lei que o reconhece as diversas limitações ao seu ‘”justos” exercício: o direito de ir e vir, a ordem pública e, importantíssimo, a responsabilização das lideranças conhecidas pelos delitos eventualmente cometidos pelas massas. Por fim, o direito à manifestação, com todo seu potencial organizativo e ideológico, não passa da condescendência da ditadura burguesa: pode-se reivindicar o que seja, conquanto certas coisas não se conquistem. O motivo de a luta social ver-se presa neste “antro estreito” é precisamente o “horizonte estreito do direito burguês”.
Evidentemente esta posição será criticada (ou abraçada com tendências niilistas): uma posição abstrata e intelectual, em oposição à luta real das manifestações de rua. Nunca é demais tornar nítido: não dizemos que a forma política da dominação (democracia ou ditadura) é indiferente, nem muito menos, como poderia soar do parágrafo acima, dizemos que as condições da luta revolucionária são melhores numa ditadura escancarada. Em uma ditadura escancarada da burguesia, o que se escancara é a dominação política, não a de classe, o que só pode prejudicar a formação da consciência revolucionária do proletariado – como tão bem demonstra a história do Partido dos Trabalhadores. Não: o melhor terreno para a luta revolucionária do proletariado é, no regime burguês, sua democracia. E precisamente na medida em que fornece as melhores condições organizativas e ideológicas para a luta de classes do proletariado, busca limitá-las pela via da subordinação “negociada”. E isso os revolucionários não podem perder de vista, sob pena de desperdiçar historicamente essas melhores condições organizativas e ideológicas.
Passamos agora, portanto, à discussão dos potenciais das manifestações de rua que crescem contra o governo Temer, tendo em vista [3] que:
“O marxismo exige um exame absolutamente histórico da questão das formas de luta. Colocar esta questão fora da situação histórica concreta significa não compreender o á-bê-cê do materialismo dialético. Em diferentes momentos da evolução econômica, dependendo das diferentes condições políticas, nacionais-culturais, de vida, etc., diferentes formas de luta passam para primeiro plano, tornam-se as principais formas de luta, e, em ligação com isto, modificam-se também as formas secundárias, acessórias, de luta. Tentar responder por sim ou não à questão da utilização de um determinado meio de luta, sem examinar detalhadamente a situação concreta do movimento dado no grau dado do seu desenvolvimento, significa abandonar completamente o terreno do marxismo.”
As manifestações sob a crise da democracia burguesa
Se examinarmos historicamente a questão, teremos de reconhecer a já mencionada centralidade da tática dos protestos de rua. Além disso, teremos de reconhecer que, na fase anterior da resistência à ofensiva burguesa, tal forma de luta principal das massas foi dirigida quase que completamente pelas organizações petista e cutistas, conjugada à luta parlamentar, sob uma tática de conciliação. O insucesso de tal política é um dado e, precisamente por conta deste dado, se inicia agora uma nova fase da luta, onde uma correlação de forças ainda mais desfavorável se coloca, tendo o Partido da Ordem se alçado à Presidência.
Em tal fase passada da luta, a massa aderiu de forma desigual ao chamado contra o impeachment: a pequena burguesia, notadamente jovem, em massa; os movimentos populares mais longevos se alinharam; a vanguarda do movimento de moradia ombreou; alguns poucos elementos do proletariado menos organizado vieram à tona.
A força conjugada da direção governista, com sua tática parlamentar e a adesão massiva da pequena burguesia (carregando para o movimento concepções heterogêneas de toda a sorte, notadamente as reformistas, legalistas e republicanas) baseou todo o movimento, até aqui, em uma denúncia democrática e constitucional, quando não moral. Falhou em caracterizar o caráter de classe da manobra – e falhou não porque não se esforçasse em vender a ideia de que o PT seria a representação fiel do proletariado sendo atacado, mas porque falhou em demonstrar tal representação ao longo das décadas de desmobilização na base e concessão na direção.
Em toda essa fase da luta, a direita falou mais vezes em greve geral que a esquerda! Essa palavra de ordem, repelida prontamente como impossível, distante, esquerdista, causou mal-estar e troça entra a esquerda parlamentar, mas nem a esquerda revolucionária abraçou-a com decisão. Afinal, em tal fase, o chamado à greve geral se dividiria em dois, ao fim: um pela manutenção e outro pela queda de Dilma.
Nessa nova fase da luta, o movimento sai do campo da defesa de um mandato para o campo da luta contra um governo capitalista. A insistência do PT na defesa do mandato de Dilma implicará sua limitação ao campo da oposição legal e parlamentar, campo no qual sua força é ainda menor agora. Coloca-se uma disputa pelos rumos do movimento contra o governo interino, cujo desfecho ainda é incerto. A esquerda revolucionária tem por tarefa enfrentar as ilusões legalistas que disputarão a frente do movimento, pelas mãos do PT principalmente.
Assim, despojado da sua conexão com a luta parlamentar, o protesto de rua deverá se conjugar a outras formas de luta. E a forma de luta imediatamente colocada pelas próprias massas em tal conexão são as ocupações. Isso não só porque a própria tônica dos protestos, de ocupar as ruas, aponta tal caminho, mas porque é a forma de luta principal tanto dos setores que hoje combatem na linha de frente da classe proletária (o movimento de moradia e pela terra, cujo exemplo assume grande importância na medida de seu papel dirigente em tal resistência à ofensiva burguesa; mas também as ocupações das escolas por estudantes secundaristas), que já passa a ser adotada por alguns setores do movimento contra o governo Temer, como as frações de artistas que desenvolvem as ocupações de prédios da Funarte, ligados ao Ministério da Cultura.
Nesta nova fase da luta, os setores que estão aprendendo ou reaprendendo as lições da luta de classes, terão de aprender a lição da correlação de forças. Em tal contexto, quanto mais os processos de luta se radicalizem sem, contudo, envolver as amplas massas da classe trabalhadora, mais o governo Temer será empurrado e legitimado à repressão. Para tanto, não faltarão oportunidades, principalmente no momento das Olimpíadas, onde todos instrumentos jurídicos repressivos (muitos criados pelo próprio governo petista) e todo sentimentos de “unidade nacional” poderão ser mobilizados. Sobre isso, vale pontuar o equívoco grosseiro que é o de fazer tarefa prioritária do movimento a denúncia internacional e não a agitação das massas! A esquerda revolucionária não deve atuar como força de contenção da massa, desestimulando os protestos e sua radicalização (como fará o PT a cada passo da luta). Ao mesmo tempo, contudo, é indigno calar sobre as tendências desfavoráveis em curso. É preciso orientar a massa em luta a agir com consequência, principalmente no tocante à necessidade de uma autodefesa organizada, que prepare condições para a necessária retirada posterior, em um possível momento de mais duros ataques, perseguições e repressão.
Por fim, é preciso saber que o único modo de reverter tal correlação de forças em favor das massas oprimidas é, precisamente, pô-las em movimento. Atualmente, é a burguesia unida que se encontra no centro da luta de classes, em ofensiva, com o apoio de parte da pequena burguesia, se opondo a um outro amplo setor pequeno burguês, com seus apêndices “socialistas”. A massa proletária ainda não entrou em cena com a maioria de suas forças, ainda que as greves se multipliquem e fortaleçam a olhos vistos nos últimos anos e haja casos de radicalização em algumas categorias. Aqui, é preciso dar um passo atrás para dar dois à frente – tanto na exposição quanto na ação:
No atual contexto, em que não há propriamente reivindicações senão o “Fora Temer”, as manifestações de ruas cumprem um papel de forma de luta ideológica, eminentemente uma agitação que busca denunciar aos setores menos mobilizados das massas a necessidade de derrotar este governo. Essa agitação, ao menos na fase anterior, teve sucesso “espontâneo” apenas frente à pequena burguesia “progressista” (notadamente em termos de valores). Sob o risco da derrota ainda mais dura em médio prazo, urge superar o descolamento abissal existente entre tais protestos e as massas trabalhadoras. Neste sentido, é preciso que essa agitação seja levada das ruas dos bairros ricos e centrais para os locais de trabalho e de moradia. O centro da luta contra Temer deve ser não só a mobilização da vanguarda “democrática” das camadas médias, mas a realização de uma intensa agitação e propaganda que aponte à classe trabalhadora a necessidade da organização e da ação, chegando aos locais de trabalho e aos bairros periféricos. É preciso saber elaborar as temporalidades distintas de tais frações: por um lado, a pequena burguesia disposta desde já a radicalizar por conta do “golpe na legalidade”; por outro, a classe trabalhadora cuja mobilização tende a crescer apenas conquanto os ataques realizados pelo governo Temer se façam sentir efetivamente.
É sobre tais bases que deve ser dar uma atuação revolucionária no interior das manifestações democráticas. Assim como as próprias manifestações tem um caráter de luta ideológica, é possível conceber, também, a atuação no interior de tais atos como uma forma de luta ideológica e organizativa, de agitação e propaganda. É necessário não apenas engrossar as fileiras e ombrear ao lado de tais manifestantes, mas panfletar as posições revolucionárias para a população e para as pessoas presentes nos atos, de modo a abrir um diálogo efetivo com os elementos avançados, convidando-os para outras atividades, sejam elas formativas ou outras formas de luta (ocupações, ações de solidariedade às greves, manifestações por questões particulares etc).
Para aqueles que subestimam a centralidade do proletariado enquanto classe nesta luta, notadamente os legalistas pequeno burgueses, achando que falar em classe trabalhadora é só uma questão de trazer mais ou menos trabalhadores para os protestos de rua, vale o lembrete: não foi a Passeata dos Cem Mil, em 1968, quem derrubou o regime militar; nem mesmo o colossal Comício das Diretas Já conquistou seus objetivos, em 1984! Não: foi apenas a greve geral operária, a forma de luta de classe do proletariado, iniciada no ABC ao fim dos anos 70, que teve força suficiente para desestabilizar os arranjos da dominação militar burguesa e pôr em movimento amplas massas, abrindo caminho para a democracia burguesa, constitucionalizada em 1988.
Isso, repetimos, não significa menosprezar o papel das manifestações de rua. Em alguns casos, a mera realização de manifestação pode significar uma vitória, no sentido de demonstrar em prática a capacidade organizativa de tal ou qual força social – como é evidentemente o caso das datas anuais do calendário da luta social (1º de Maio, 8 de Março, 20 de Novembro, etc). Em outros casos, mesmo manifestações meramente de denúncia podem cumprir, tanto para os presentes nessas, quanto para aqueles que cruzam com elas nas ruas, um papel de transformação da consciência. Além disso, no curso das lutas do próximo período, decerto poderemos ver manifestações de rua materialmente vitoriosas – notadamente, aquelas que abraçarem lutas particulares e não apenas o mote geral do Fora Temer, buscando obstar esta ou aquela medida reacionária proposta pelo governo. Mas a derrubada de Temer, é preciso dizê-lo com nitidez, não se dará apenas com manifestações de rua, no caso de estas não se conjugarem às formas mais avançadas da luta de classes.
As forças revolucionárias e consequentes devem atuar no interior desses processos de luta “espontâneos”, lembrando sempre vividamente do alerta feito por Antonio Gramsci [4], aparentemente não tão levado em conta pela esquerda reformista em seu trato com os protestos de junho de 2013:
“Descuidar – e mais ainda, depreciar – os movimentos chamados espontâneos, ou seja, renunciar a dar-lhe uma direção consciente, a elevá-los a um plano superior inserindo-os na política, pode amiúde ter consequências sérias e graves. Ocorre quase sempre que um movimento espontâneo das classes subalternas coincide com um movimento reacionário da direita da classe dominante, e ambos por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise econômica determina descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massas, por uma parte, e, por outra, determina complôs dos grupos reacionários, que se aproveitam da debilitação objetiva do governo, para intentar golpes de estado. Entre as causas eficientes destes golpes de estado há que se incluir a renúncia dos grupos responsáveis em dar uma direção consciente aos movimentos espontâneos para convertê-los assim num fator político positivo. […] Outros exemplos podem ser tomados de todas as revoluções do passado, nas quais as classes subalternas eram numerosas e estavam hierarquizadas pela posição econômica e pela homogeneidade. Os movimentos espontâneos dos estratos populares mais vastos possibilitam a chegada ao poder da classe subalterna mais adiantada pela debilitação objetiva do Estado. Este é um exemplo progressivo, porém no mundo moderno são mais frequentes os exemplos regressivos.”
[1] Carta aos Camaradas, em “Às portas da revolução”, organização por Slavoj Zizek, p. 160-161.
[2] “A greve é operária, o direito de greve é burguês”. Ou “O direito de greve é um direito burguês. A greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital”. Citações de “A legalização da classe operária”, de Bernard Edelman, recentemente traduzido para o português e publicado pela Editora Boitempo.
[3] “A Guerra de Guerrilhas”, por Lenin, disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/09/30.htm
[4] “Espontaneidade e direção consciente”, disponível em: http://gramsci-brasil.blogspot.com.br/2007/10/espontaneidade-e-direo-consciente.html
Poderão as manifestações de rua deter a temerária ofensiva burguesa?