Blair para a História
Manuel Loff *
Desde há um ano que Blair preside ao Conselho Europeu para a Tolerância e a Reconciliação. Belo nome…
Blair mentiu: Saddam Hussein não representava um “perigo iminente para a paz”. Os serviços britânicos forneceram “informações erradas” e, seguramente suspeitando que o eram, Blair “exagerou o perigo iraquiano” e empenhou-se em convencer os seus colegas de governo de que a relação com os EUA seria posta em causa se a Grã-Bretanha não os acompanhasse na guerra. No relatório de John Chilcot, um “mandarim de Whitehall”, a sede do Governo britânico, como o descreve o jornal The Guardian, que acaba de ser publicado ao fim de sete anos de investigação, demonstra-se que foi Blair quem exagerou esta possibilidade, o que provocou a demissão do seu antigo ministro dos Estrangeiros, Robin Cook, em desacordo total com o envolvimento britânico na guerra, desencadeada em 2003. De facto, logo em 2002, meses depois do 11 de Setembro, Blair terá dado o seu acordo à opção militar que Bush e os falcões de Washington tinham tomado desde o início, muito antes de terem sequer apresentado as provas que há muito sabemos terem sido falsificadas das “armas de destruição massiva”. “A Grã-Bretanha decidiu somar-se à invasão do Iraque antes de as chances de um desarmamento pacífico terem sido esgotadas. A guerra não foi, naquele momento, a derradeira opção.” Os esforços de Blair em manter-se de bicos de pés como fiel aliado de Washington – “Estarei ao teu lado, aconteça o que acontecer!”, escreveu Blair a George Bush em julho de 2002 – foram tão pateticamente vãos que Washington “ignorou as propostas britânicas para o pós-guerra”.
Cai por terra a tese de que eram imprevisíveis as pesadas consequências que a invasão teve para a vida dos iraquianos, e para a vida de todo o mundo, como se a guerra fosse como os melões: antes de se abrirem, é difícil avaliar como são. O relatório é muito claro: “Os riscos de conflitos internos no Iraque, de ingerência iraniana, de instabilidade regional e de atividade da Al-Qaeda no Iraque, foram todos explicitamente identificados antes da invasão.” Em consequência, “morreram pelo menos 150 mil iraquianos – provavelmente muitos mais – , a maioria civis (…), mais de um milhão de desalojados” (Guardian, 6.7.2016). Em outubro de 2004, ao fim de um ano e meio de invasão, os britânicos acompanhando os norte-americanos, os espanhóis e aquela infinidade de aliados menores que Washington costuma arrebanhar para estas tarefas (polacos, ucranianos, georgianos, albaneses, hondurenhos, …), o Governo britânico discutiu como apresentar à opinião pública o balanço cada vez mais embaraçoso das vítimas civis da guerra. O Foreign Office recomendou que “nos limitemos a publicitar as vítimas civis cuja responsabilidade seja atribuível aos terroristas. Qualquer balanço geral das vítimas civis mostrará que a Força Multinacional [dirigida pelos EUA] é responsável por muitas mais do que os insurgentes/terroristas” (documento do relatório citado no Iraq Body Count, 7.7.2016). Entre essas centenas de milhares de mortos, 179 soldados britânicos. Há dias, Blair assegurava que sentia “muito profunda e sinceramente a dor e o sofrimento daqueles que perderam seres amados no Iraque”. A irmã de um dos soldados mortos respondeu-lhe chamando-lhe “o pior terrorista do mundo”.
É verdade que o Médio Oriente não vive em paz desde que os britânicos chegaram à região a seguir à I Guerra Mundial, ocupando o Iraque, a Palestina, a Jordânia e a península da Arábia. É verdade que o projeto de criação de um Estado judeu na região motivou o mais duradouro dos conflitos do séc. XX. E é verdade que Bush pai se empenhara já em 1991 numa guerra do Golfo que, saídos da Guerra Fria, marcou o início de um ciclo de guerras perpétuas de que ainda não saímos. Mas nada se compara à capacidade desestabilizadora que a invasão de 2003 teve. Os EUA fizeram do Iraque, depois do Afeganistão, um território de aventureirismo e violência sem fim para tropas regulares e mercenários de todo o tipo de dezenas de países que, tendo acatado a hegemonia norte-americana, competem entre si para aparecerem como seus aliados fiéis. Ao mesmo ritmo com que instalaram bases por toda a região, deixaram propagar como fogo ateado por gasolina o mais global dos fenómenos de violência jihadista, que eles próprios tinham alimentado contra adversários, desde os soviéticos até aos sérvios ou aos sírios. Ou seja, quanto mais presença militar, mais Al-Qaeda e mais Estado Islâmico. A guerra do Vietname atraiu a condenação universal dos EUA? A do Afeganistão dura já há mais anos, e Obama acaba de dizer que tão cedo de lá não sai…
A conspiração feita de mentiras, manipulações e cinismo (como é frequente na política internacional, é certo) que conduziu à invasão do Iraque foi da responsabilidade de um grupo restrito de personagens que ganhou há anos um lugar na história da vergonha. Nenhum deles foi levado, ainda, à justiça. Donald Rumsfeld e Dick Cheney são hoje entusiastas da candidatura de Donald Trump. Condoleeza Rice dá aulas em Stanford, o que diz bem da ética das universidades elitistas dos EUA. Os demais (Aznar, os ministros britânicos dos Estrangeiros e da Defesa) ganham rios de dinheiro como consultores de grandes empresas, de logística militar entre outras. Depois de deixar o governo em 2007, o seu amigo Bush Jr. propôs Blair para, cúmulo do cinismo, mediador dos Quatro (ONU, EUA, UE e Rússia) para a paz no Médio Oriente. Sete anos depois, um grupo de diplomatas britânicos denunciou (verGuardian, 23.6.2014) a “inutilidade” do desempenho de Blair e a “falta de transparência” na forma como ele aproveitava os seus contactos como mediador para fazer negócios em nome da sua empresa Tony Blair Associatese do banco de investimentos, o JPMorgan Chase – da mesma forma que Durão Barroso, outro compincha de Blair da Cimeira dos Açores, acaba de ser nomeado presidente do Conselho de Administração do Goldman Sachs. Há três anos, o homem que até 2007 não fizera se não carreira política, reunia uma fortuna de 82 milhões de euros.
Lembro-me agora daquele friso de adoradores da personagem que dele fizeram o herói do aggiornamento, da modernização da social-democracia, abandonando o que se dizia ser a velha ganga socialista e adotando a Terceira Via, com a ajuda do seu sociólogo orgânico, Anthony Giddens. As lições que Blair soubera aprender com Thatcher, trazendo o New Labour para o “futuro”, eram as mesmas que Schröder, Hollande/Valls, Renzi e, não esqueçamos, Sócrates aprenderiam com Blair: menos Estado, menos sociedade, mais indivíduo; em política internacional, menos complexo de culpa do Ocidente que colonizara e mais intervencionismo militar.
Desde há um ano que Blair preside ao Conselho Europeu para a Tolerância e a Reconciliação. Belo nome… Aznar acompanha-o no órgão de direção. Está tudo dito.
*Historiador
https://www.publico.pt/mundo/noticia/blair-para-a-historia-1737767