REDE GLOBO: HERANÇA DA DITADURA

imagemPaulo de Biase Di Blasio[i]

A Rede Globo não tem formalmente o monopólio das comunicações no país. Mas na prática detém esse monopólio com suas empresas e pela grande rede de emissoras afiliadas. Domina o entretenimento com novelas, filmes e programas. Controla, por seu poderio econômico, importantes aspectos culturais do país, como o carnaval e o futebol. Seu jornalismo pauta os demais jornais e TVs. Na TV por assinatura controla 61 canais. Mas a história da Rede Globo é repleta de ilegalidades, favorecimentos, defesa da ditadura empresarial-militar implantada em 1964 e apoio aos setores burgueses pró-imperialistas.[1]

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, e principalmente na segunda metade da década de 1950, o Brasil recebeu investimentos estrangeiros de grande monta. Em todas as áreas possíveis e permitidas pela legislação brasileira. Gigantes norte-americanos das comunicações buscavam meios de penetrar no país, embora fosse vedada por lei qualquer associação com estrangeiros nas comunicações (art. 160 da Constituição). Várias tentativas foram realizadas sem sucesso no setor televisivo. Em plena Guerra Fria, o controle das comunicações ganhava grande importância na propaganda do modo de vida capitalista e na luta ideológica contra o socialismo.

Em 1961, a Rádio Globo conseguiu a concessão de uma emissora de TV. A concessão era feita pessoalmente pelo Presidente da República, sem observar nenhum critério, seja técnico, seja de viabilidade econômica, ou outro qualquer. Em 1962, a TV Globo Ltda. assinou dois contratos com o grupo norte-americano Time-Life (das revistas “Fortune”, “Time” e “Life”), ultraconservador e próximo ao Partido Republicano, o que era ilegal. E a Globo passou a receber milhões de dólares. Uma série de artimanhas contratuais procurava escamotear as irregularidades, como, por exemplo, um contrato de locação que tinha como locatária a Globo e como locador o Time-Life num terreno que pertencia à TV Globo. Houve até invasão do Cartório onde estava a escritura dessa transação, sendo arrancada do livro a folha que constava esse documento. Isso tudo com a “vista grossa” das autoridades.

O jornal O Globo sempre defendeu os setores mais reacionários das classes dominantes. Fez campanha contra o Governo Goulart e apoiou intransigentemente o Golpe de 1964. Com a ditadura empresarial-militar implantada, as Organizações Globo sentiram os ventos favoráveis da impunidade. Mas as contradições no seio dos setores golpistas com relação à economia e à política vieram à tona. E a sociedade Globo-Time-Life sofreu denúncias na Câmara de Deputados e nos órgãos do governo. As irregularidades eram tão flagrantes que a ABERT (Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão), presidida pelo deputado federal João Calmon, diretor dos “Diários Associados”, e o golpista Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, fizeram denúncias contra a TV Globo, que iniciou suas transmissões em 1965. Calmon e Lacerda não eram personagens acima de qualquer suspeita e muito menos nacionalistas, mas procuravam preservar seus espaços de atuação.

Com os milhões de dólares do grupo Time-Life, a TV Globo adquiriu equipamentos modernos e contratou os melhores diretores administrativos, diretores de TV, técnicos e artistas de outras emissoras brasileiras. Uma concorrência desleal e predatória. Executivos da Time-Life trabalhavam como assessores na TV Globo, tanto na parte administrativa quanto no setor artístico. O grupo Time-Life tinha participação em 3% do faturamento da TV Globo, um valor considerado muito alto por especialistas. Do lado institucional, a CONTEL (Conselho Nacional de Telecomunicações) e o Ministério da Justiça contemporizavam a favor de Roberto Marinho, evidenciando que os setores da burguesia pró-imperialista ditavam as regras do novo regime político. O Ministro do Planejamento Roberto Campos, conhecido como “Bob Fields” pelo seu norte-americanismo, foi um dos suportes da Globo nesse processo. Roberto Marinho retribuía bajulando Campos em seu jornal.

Mesmo com uma Câmara de Deputados depurada dos políticos ligados à esquerda e aos setores nacionalistas, as denúncias contra a TV Globo provocaram a instalação de uma CPI para apurar as irregularidades em 1966. A CPI era composta em sua maioria por partidários da ditadura. Em depoimento à Comissão, o presidente da ABERT, João Calmon afirmou: “Entretanto, se perdemos neste episódio, o Brasil deixará de ser um país independente para virar uma colônia, um protetorado. É muito mais fácil, muito mais cômodo e muito mais barato, não exige derramamento de sangue, controlar a opinião pública através dos seus órgãos de divulgação, do que construir bases militares ou financiar tropas de ocupação” (13/04/1966). Lacerda, que seria cassado pela ditadura tempos depois, percebendo que seus projetos políticos não seriam viáveis com os rumos trilhados pelo regime militar, afirmava na CPI, abordando a atuação do IPES (organização da burguesia pró-imperialista) e do General Golbery, chamado por ele de Dr. Goebels: “Estavam estimulando no Brasil a formação de um controle de opinião pública, de um controle sobre a opinião, de tal modo que a meus olhos, como aos de outros informados, encontra-se o perigo progressivo e crescente de, dentro em breve, não saber mais o povo o que lhe interessa saber, mas o que pelo menos a outro povo interessa. O povo não vai formar a sua opinião segundo os tópicos, as agendas, as ordens-do-dia, os assuntos, os temas, os problemas, as soluções que no livre debate se apresentem ao país, mas, sim, segundo as tendências, os interesses criados ou por criar daqueles que tenham de fora para dentro interesses aqui.”

A CPI Globo-Time-Life, concluindo seus trabalhos, condenou essa associação: “Os contratos firmados entre TV Globo e Time-Life ferem o artigo 160 da Constituição … por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional.” Ocorre que a ditadura não tomou nenhuma atitude. O ditador Castelo Branco protelou e, em fim de governo, passou o pedido de reconsideração da questão feita pela Globo para o próximo ditador, o Marechal Costa e Silva, que em setembro de 1968, aceitou as alegações de legalidade da Rede Globo. A partir da sociedade Globo-Time-Life, as organizações Globo cresceram vertiginosamente, com várias concessões de rádios e TVs. Os investimentos da ditadura no sistema de telecomunicações (Embratel) facilitaram as ações da Globo em construir sua rede via satélite. Por outro lado, a Rede Globo retribuía essas benesses com a defesa e propaganda da ditadura empresarial-militar. Em seus telejornais e programas o país vivia seus melhores dias. Nenhuma crítica, pelo contrário. Nos anos 60, o programa “Amaral Neto, o repórter”, do deputado udenista e golpista, era o espaço de defesa ufanista das realizações do regime militar. Em 1975, a TV Globo fez um programa especial sobre os onze anos da “revolução”, com o título “Brasil: ontem, hoje e amanhã”, no qual faz uma escancarada defesa do Golpe de Estado, com severas críticas ao governo Goulart e aos movimentos sociais, alardeando as grandes conquistas econômicas e sociais do regime, prevendo um futuro brilhante para o país. (vídeo disponível no youtube: https://youtu.be/eoJOraGa0ZU)

A trajetória da Rede Globo é rica em exemplos de manipulação da opinião pública em defesa dos interesses políticos das classes dominantes, do sistema capitalista-imperialista e dos regimes políticos que sustentam essa dominação. Vamos apenas citar os casos mais graves, que tiveram grande influência na política brasileira. O caso das bombas do Riocentro no primeiro de maio de 1981 é um claro exemplo de distorção da verdade em benefício político da ditadura.[2] A política de “abertura democrática” da ditadura, que acenava com eleições para governadores em 1982, encontrava forte oposição dos setores militares ligados aos órgãos de repressão, a chamada “linha dura”. Numa demonstração de força desses setores, foi articulado um ato terrorista contra o show do 1º de maio, Dia do Trabalhador, organizado por sindicatos e partidos de esquerda, com a presença de artistas de renome no cenário musical do país. Tudo foi feito para facilitar a ação terrorista: mudança da chefia de segurança do Riocentro e redução do seu pessoal. Estimava-se a presença de 20 mil pessoas no evento. O objetivo da ação militar era dar um recado dos setores duros ao governo e provocar pânico e mortes no show promovido por “esquerdistas”, já que as saídas de emergência estavam trancadas. Uma bomba explodiu perto da casa de força, sem afetar o fornecimento de energia. Outra bomba explodiu num carro (Puma), no colo de um sargento, que morreu na hora, tendo ao seu lado um capitão do exército, que ficou gravemente ferido. Apesar do forte isolamento da área feita por militares, as primeiras equipes de imprensa que chegaram ao Riocentro identificaram mais de uma bomba dentro do Puma. Na edição de 06/05, O Globo informava: “O laudo pericial sobre as explosões ocorridas no Riocentro confirma que foram encontradas e desativadas por peritos, mais duas bombas dentro do Puma”. Ocorre que neste mesmo dia, o diretor-redator-chefe Roberto Marinho foi recebido pelo Comandante do Iº Exército, General Gentil Marcondes Filho. No dia seguinte, O Globo informava: “Fontes ligadas ao Iº Exército asseguraram ontem a O Globo que o laudo sobre as bombas do Riocentro declara haver apenas duas: a que explodiu na casa de força e a que explodiu no carro”. Estava montado o esquema para acobertar a participação de militares no ato terrorista. Um IPM foi aberto pelo Exército para apurar os fatos e concluiu que os militares foram vítimas de um atentado de uma organização de esquerda. A farsa era tão gritante que só idiotas acreditaram. Mas a Rede Globo cumpriu seu papel de guardiã dos interesses das classes dominantes mais reacionárias do país, porque naquele momento era preciso preservar politicamente os militares.

Outro caso foi a campanha pelas Diretas Já em 1984. A Rede Globo ignorou solenemente os primeiros comícios pelas eleições diretas para presidente da república. As equipes da TV Globo que cobriam os comícios, cujas reportagens não iam ao ar, eram hostilizadas pelos manifestantes: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Somente quando setores políticos mais conservadores deram sinais de apoio à campanha, a Rede Globo passou a transmitir reportagens dos comícios que ocorriam em todo o país. Quando a emenda Dante de Oliveira foi derrotada e a saída política das forças burguesas democráticas conservadoras se inclinava para a disputa no Colégio Eleitoral da ditadura, a Globo assumiu a sua defesa. A Globo, sempre sendo o termômetro político do país, expressava os interesses das classes dominantes. A “transição democrática”, a “Nova República”, que estava assentada em acordos políticos para garantir que não haveria grandes mudanças socioeconômicas e nem retaliações contra os militares, foi entusiasticamente apoiada pela Rede Globo. A não derrubada da ditadura empresarial-militar é responsável pelos grandes problemas políticos e econômicos que vivemos atualmente, dos quais o monopólio da Rede Globo é um dos mais graves.

A primeira eleição direta para presidente, em 1989, ocorreu numa conjuntura econômica e política bem conturbada. A inflação galopante, de 80% ao mês, anunciava um legado econômico desastroso para o novo presidente. A burguesia mais conservadora estava dividida e lançou vários candidatos, porém com pouco lastro eleitoral (Paulo Maluf, Afif, Caiado, Ulisses, Aureliano e Covas). A burguesia mais progressista tinha Brizola de um lado e Lula do outro, com a Frente Brasil Popular, uma aliança dos setores populares com a pequena burguesia. Correndo por fora e por um pequeno partido, um representante das oligarquias nordestinas, Collor de Mello, travestido de político moderno. Político ligado à ditadura, governador de Alagoas e dono de TV afiliada à Globo, Collor ficou popular como o “caçador de marajás”, por sua campanha contra os servidores públicos de altos salários, campanha esta que foi amplamente apoiada pela neoliberal Rede Globo. Diante desse quadro político-eleitoral, a burguesia brasileira associada ao imperialismo, temendo uma possível vitória de Lula ou Brizola, apostou todas as fichas em Collor de Mello, tido como o único capaz de derrota-los nas urnas. No segundo turno das eleições, as pesquisas apontavam um grande equilíbrio entre Collor e Lula, que contou com o apoio de Brizola. É neste momento que a Globo entra em cena. No último debate, o executivo-mor da Rede Globo assessorou Collor, procurando torna-lo um candidato mais popular. O debate aconteceu tarde da noite, não sendo visto por grande parte da população. No dia seguinte, em horário nobre, no Jornal Nacional, a Rede Globo transmitiu um compacto de seis minutos do debate, do tipo melhores momentos, assistido por 66% da audiência. Só que com os melhores momentos do Collor e os piores momentos do Lula. Uma manipulação descarada que foi reconhecida por jornalistas da própria Rede Globo, que foram, por isso, demitidos. Para muitos especialistas em campanhas eleitorais esse compacto contribuiu em muito para a vitória de Collor (sobre esse assunto e outros casos da Rede Globo veja o vídeo “Muito além do cidadão Kane”, disponível no youtube: https://youtu.be/s-8scOe31D0).

O episódio mais recente da influência da Rede Globo na política está bem vivo em nossa memória. Foi o processo de impeachment da presidenta da república. Com a derrota nas eleições de 2014, a burguesia associada ao imperialismo começou a se articular para criar as condições para derrubar o lulapetismo. Para o imperialismo, a crise capitalista iniciada em 2008 passou a exigir, para a sua superação, para recompor e ampliar os lucros do Capital, um violento ataque aos direitos da classe trabalhadora e às economias nacionais dos países capitalistas periféricos como o Brasil. As medidas neoliberais contrárias aos interesses dos trabalhadores dos governos petistas nos últimos 13 anos não bastaram para sanha por lucros da burguesia brasileira e do imperialismo. Era a hora de afastar intermediários pequeno-burgueses e colocar um governo puro-sangue burguês, totalmente afinado com o imperialismo. Mal começa o segundo mandato, a mídia brasileira, comandada pela Rede Globo, desencadeia uma campanha sistemática contra o governo petista, municiada pelas informações privilegiadas da Operação Lava-jato. Esta operação, comandada por um grupo de promotores e juízes treinados pelos EUA, com acesso a informações dos órgãos de inteligência norte-americanos e com a Polícia Federal a seu serviço, virou vedete nos meios de comunicação do país. O mote da luta contra a corrupção ganhou a classe média, sempre facilmente atraída e ludibriada por esse tema. De acordo com o que era veiculado pela mídia, parecia que o PT e seu governo inventaram a corrupção no honesto Brasil. Sem entrar na questão específica da corrupção, o objetivo político da burguesia associada ao imperialismo era derrubar o lulapetismo, colocar em prática sua política econômica neoliberal, atacando as conquistas dos trabalhadores e as empresas estatais, e inviabilizar o PT do ponto de vista político-eleitoral, principalmente para 2018. Ou seja, evitar a qualquer custo um possível retorno da política pequeno-burguesa petista ao governo. As manifestações contra o governo do PT eram praticamente convocadas pelo jornalismo da Rede Globo. Com amplas coberturas, inclusive ao vivo, essas manifestações passavam para a população uma percepção de que o país inteiro apoiava o impeachment da presidenta. Até a imprensa imperialista registrou essa escandalosa manipulação da opinião pública. O desfecho disso tudo todos sabemos.

Como vimos, o monopólio da Rede Globo é muito prejudicial aos interesses da classe trabalhadora e dos setores populares. A manipulação ideológica da informação está presente em todos os aspectos na programação das empresas privadas de telecomunicações. A radical democratização dos meios de comunicação é um imperativo para a classe trabalhadora. Mas a democratização radical dos meios de comunicação só ocorrerá quando as massas tomarem o poder, constituindo o Poder Popular. As empresas de comunicação devem estar sob controle dos trabalhadores e submetidas aos organismos populares construídos no processo da luta revolucionária pelo Socialismo.


[1] Sobre o processo de formação da TV Globo nos anos 1960, baseamo-nos no livro de Daniel Herz, A história secreta da Rede Globo, de 1987, da Editora Tchê!
[2] Informações colhidas do livro de Belisa Ribeiro, Bomba no Riocentro, de 1981, da editora Codecri.

[i] Professor da rede pública de Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro

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