Dívida: a arma que permitiu à França apropriar-se da Tunísia

imagemEric Toussaint

A utilização da dívida como instrumento de dominação e de alienação da soberania de um Estado fica bem ilustrada na tratamento reservado à Tunísia pela França na segunda metade do século XIX. Em 1881, a França conquistou a Tunísia para a transformar num protetorado. Até aí a Tunísia, conhecida como Regência de Tunes, era uma província do Império Otomano[1] e dispunha de uma considerável autonomia sob a regência de um bei.

Até 1863 a Tunísia não pedia empréstimos ao estrangeiro

Até finais do reinado do bei Mustafá, em 1837, não existia qualquer dívida pública. A produção agrícola assegurava a soberania alimentar do país. O seu sucessor, bei Ahmed, que reinou de 1837 a 1855, encetou um programa de despesas públicas que dava prioridade à constituição de um exército permanente, à compra de material militar, à construção de residências sumptuosas e à construção de algumas indústrias (nomeadamente a indústria têxtil de Tebourba) segundo o modelo europeu. Estas realizações ficaram muito aquém do que Mohamed Ali, o monarca egípcio, tinha levado a cabo com um sucesso[2] que lhe valeu a agressividade das potências europeias[3]. No entanto havia um ponto comum entre os dois: a ausência de empréstimos estrangeiros durante a primeira metade do século XIX. Os investimentos foram realizados à custa dos recursos internos do país.

O programa de investimentos públicos foi um fiasco, porque não se baseava no apoio e reforço dos produtores locais. O exército permanente foi desfeito em 1853, o palácio de maior vulto não foi acabado e as indústrias foram abandonadas. O bei de Tunes tinha recorrido a empréstimos internos, por vezes aceitando taxas usurárias que engordaram a dívida. O Estado contraía dívidas vendendo teskérés – ou seja, títulos do tesouro a curto prazo – aos tunisinos ricos e aos residentes estrangeiros endinheirados (libourneses, genoveses, franceses, …).

Com a ascensão ao trono de Mohammed es-Sadok em 1859[4], aumenta fortemente a influência das potências europeias, dos seus interesses comerciais e das suas empresas, em particular os banqueiros. A corrupção alastrou até ao topo do regime, tendo por responsável principal o primeiro-ministro Mustafá Khaznadar, que ocupava postos importantes desde 1837, a começar pela tesouraria do bei (tesoureiro = khaznadar em turco). Mustafá Khaznadar permaneceu à cabeça do Estado até 1873. Cobrava comissões por cada transação, por cada empréstimo, sobre a coleta de impostos; a sua fortuna tornou-se colossal. Até ser afastado em 1873, Mustafá Khaznadar desempenhou um papel mais importante do que o próprio bei nas decisões do Estado e nos acordos firmados com os financeiros e empresários europeus.

Em 1859-1860, Mustafá Khaznadar e o bei Mohammed es-Sadok aumentaram as despesas públicas e a dívida interna para comprarem à Bélgica armas inutilizadas e para construírem residências consulares de alto gabarito para a França e a Grã-Bretanha. Estas despesas, claro está, não respondiam a nenhuma das necessidades da população. A dívida interna pública aumentou 60% no decurso dos três primeiros anos do reinado de Mohammed es-Sadok. Os tunisinos ricos e os residentes estrangeiros lucraram com a política de endividamento interno, que lhes forneceu um rendimento elevado; os altos dirigentes do Estado lucraram também, pois desviaram uma parte do dinheiro emprestado (acrescentemos que eles próprios eram detentores de títulos de dívida); os fornecedores estrangeiros também beneficiaram. Em contrapartida, a população teve de suportar o fardo crescente da dívida.

O primeiro empréstimo estrangeiro de 1863: um verdadeiro cambalacho

O primeiro pedido de empréstimo ao estrangeiro data de 1863. Foi uma verdadeira burla que 18 anos depois teve como desfecho a conquista da Tunísia pela França.

Nessa época a praça financeira de Paris estava muito ativa na concorrência com a de Londres, a mais importante a nível mundial. Os banqueiros parisienses, tal como os londrinos, dispunham de abundante liquidez e procuravam ocasiões para investir no estrangeiro. Os empréstimos à América Latina, Ásia, Império Otomano, Egito, Rússia e América do Norte eram abundantes[5]. O crédito destinava-se principalmente à construção de caminhos de ferro (com uma bolha especulativa em formação no setor), ao refinanciamento de antigas dívidas – foi o caso na América Latina – e à compra de armas. Os rendimentos obtidos em Paris no mercado local rondavam os 4 a 6%, enquanto os rendimentos de empréstimos ao estrangeiro eram muito mais elevados (podiam atingir os 10 a 11% de rendimento real).

Quando, no início de 1863, o bei anuncia que pretende pedir um empréstimo de 25 milhões de francos no estrangeiro, vários banqueiros e corretores de Londres e Paris oferecem os seus serviços, entre os quais o barão James de Rothschild, outras sociedades londrinas, o Crédit Mobilier de Paris e Émile Erlanger, banqueiro de Francoforte com sede na capital francesa.

O cônsul do Reino Unido em Tunes apoiava as ofertas dos banqueiros de Londres e o de França apoiava as ofertas provenientes de Paris. Finalmente, o banqueiro Émile Erlanger obtém o «contrato». A sua biografia merece ser resumida[6]. Segundo o cônsul britânico, o banqueiro Émile Erlanger ter-lhe-ia oferecido 500.000 francos para obter o seu apoio.

Em que consiste o empréstimo de 1863?

O banqueiro Erlanger, associado a outros, obtém autorização do Governo francês para vender na Bolsa de Paris os títulos tunisinos. Segundo um relatório de 1873 de Victor Villet, inspetor francês das finanças, o empréstimo é uma verdadeira fraude.

Segundo o banqueiro Erlanger, foram emitidas 78.692 obrigações tunisinas. Cada uma tinha o valor nominal de 500 francos. Foram vendidas as 480 francos e cada uma dava direito a um cupão anual de 35 francos durante 15 anos. Isto representava uma taxa teórica de juro de 7%, mas, visto que as obrigações foram vendidas a 480 francos, o juro real era de 7,3%. Para o comprador isto significava que por cada 480 francos desembolsados, obtinha 525 francos (15 anos x 35 francos) de juros, mais os 500 francos que eram o valor facial da obrigação.

Quanto ao devedor, o governo tunisino, recebia por cada obrigação 415 francos (ou seja, 480 francos menos 65 francos correspondentes à comissão de emissão e outros custos de remuneração do banqueiro) e tinha de reembolsar 1025 francos.

Outra forma mais global de apresentar estes cálculos: o devedor (Tunísia) recebe 37,7 milhões de francos (78.692 obrigações vendidas a 480 francos, ou seja 37,77 milhões) e em troca compromete-se a reembolsar 65,1 milhões.

Segundo a investigação realizada pelo inspetor de finanças francês, Victor Villet, o banqueiro Erlanger embolsou um pouco mais de 5 milhões de comissão (ou seja cerca de 13% do montante angariado). É preciso ainda subtrair um montante de 2,7 milhões de francos que deveriam ter sido recebidos mas que foram desviados, certamente para o primeiro-ministro e para o banqueiro Erlanger.

Assim, por cerca de 30 milhões de francos a receber, o governo tunisino comprometeu-se a reembolsar 65,1 milhões de francos.

Para completar o cambalacho, é preciso acrescentar algumas agravantes no comportamento do banqueiro Émile Erlanger e do primeiro-ministro tunisino. Erlanger afirmava ter vendido pouco mais de 38.000 obrigações em Paris e 40.000 em Tunes (recordemos que o total de obrigações era de 78.692). Parece que a venda em Paris foi muito inferior à declarada por Erlanger e que, na realidade, mais de 30.000 não encontraram comprador e ficaram na posse de Erlanger. Ora Erlanger cobrou uma comissão total de mais de 5 milhões de francos, como se tivesse vendido todas as obrigações … Tudo leva a crer que Erlanger terá pedido emprestado a outros bancos o dinheiro que se comprometeu a transferir para o tesouro tunisino (cerca de 30 milhões de francos) em quatro pagamentos. É possível que ele tenha pedido empréstimos a outros banqueiros dando como garantia os 30.000 títulos que não conseguiu vender. É esta a hipótese avançada pelo revisor dos Fundos Públicos num artigo publicado em 19 de agosto de 1869: «Cremos não fugir à verdade quando dizemos que 5000 obrigações, quanto muito, estão nas mãos de portadores residentes em França … Sobravam portanto 30.000 obrigações nas mãos do sr. Erlanger. Sendo assim, ele encontrava-se em dificuldades para fazer face aos compromissos que tinha assumido com o Bei. Como terá feito? Cremos que, ao depositar no Comptoir d’Escompte os títulos que não conseguiu vender, obteve um adiantamento, graças ao qual pôde enviar alguns fundos a sua alteza.»

Encontramos claro indício da solidez desta hipótese, no facto de Erlanger afirmar que recomprou no mercado secundário 20.962 títulos em janeiro de 1864 e outros 8000 em 1865. Estas recompras não provocaram aumento do seu valor no mercado, o que não é verosímil. Uma recompra de 20.000 títulos, quando estão em circulação oficialmente 38.000, tem de produzir automaticamente um aumento do seu valor no mercado. Ora não foi verificado aumento dos preços das obrigações tunisinas no mercado secundário. Isto significa que os títulos não estavam em circulação no mercado. O banqueiro fez de conta que recomprou títulos que na realidade já estavam na sua posse.

Note-se que, por outro lado, cada ano esses 30.000 títulos davam lugar ao pagamento de juros. Enquanto estavam no posse do banqueiro, era ele que empochava os juros …

O resultado imediato do empréstimo de 1863

Este empréstimo externo era destinado a reestruturar a dívida interna, avaliada no montante de 30 milhões de francos franceses (recordemos que aumentou 60% entre 1859 e 1862 por causa das despesas do bei Mohamed es-Sadok, que tinha multiplicado a compra de mercadorias estrangeiras). Tratava-se concretamente de reembolsar os antigos títulos com dinheiro de empréstimos estrangeiros. Na realidade, embora os antigos títulos tenham sido reembolsados, as autoridades emitiram novos teskérés (títulos do tesouro) em montante equivalente. Diz-nos o inspetor das Finanças francês, Victor Villet: «ao mesmo tempo que nos escritórios do representante da casa Erlanger em Tunes eram reembolsados os antigos títulos … um corretor do Governo (o sr. Guttierez) instalado nas vizinhanças recuperava do público o dinheiro que este acabava de receber, em troca de novos teskérés emitidos à taxa de 91% [isto é: vendidos a 91% do seu valor facial – N. do T.]. Graças a esta comédia de reembolso, a dívida aumentou simplesmente … cerca de 15 milhões». As receitas provenientes dos novos teskérés foram em grande medida desviadas para os cofres do primeiro-ministro, doutros dignitários e de residentes estrangeiros endinheirados.

O mesmo inspetor das Finanças escreveu: «Os fundos provenientes do empréstimo de 1863 [que] eram pagos no Bardo (o bei e o primeiro-ministro estavam sediados no palácio do Bardo) foram depositados numa conta especial: mas não deram entrada na contabilidade geral do governo, nem nas caixas do Estado, e nada leva a crer que tenham servido para saldar contas públicas.»

Em menos de um ano, o empréstimo de 1863 foi delapidado. Ao mesmo tempo, o Estado achou-se endividado, pela primeira vez na história da Tunísia, perante o estrangeiro, num montante muito elevado. Os montantes a reembolsar ao estrangeiro anualmente eram insustentáveis. Quanto à dívida interna que deveria ter sido reembolsada pelo empréstimo externo, foi duplicada. Pressionado pelos credores, o governo do bei decidiu transferir a fatura para cima do povo, aumentando 100% a mejba, imposto por habitante.

A revolta de 1864, consequência da decisão de aumentar 100% um imposto para reembolsar o empréstimo de 1863

O aumento do imposto provocou em 1864 uma rebelião geral no país. O repúdio do aumento do imposto de capitação, a mejba, era a reivindicação principal dos contestatários[7]. Quando os agentes do bei se deslocaram pelo país para cobrar a mejba elevada a 72 piastras, a revolta estalou. A 10 de março de 1864, o vice-cônsul francês Jean-Henri Mattei telegrafou de Sfax: «Todas as tribos se puseram de acordo para não pagarem o novo imposto de 72 piastras. (…) A união de todas as tribos terá lugar ao primeiro sinal de partida de Tunes de quem quer que seja com a intenção de cobrar o imposto»[8] Algumas semanas mais tarde, noutra nota consular, lia-se: «A insurreição é geral e estende-se até uma hora de caminho de Tunes»[9]. Segundo vários testemunhos, os insurretos acusavam o governo, com o primeiro-ministro Mustapha Khaznadar à cabeça, de ter vendido o país aos Franceses. Afirmavam que o empréstimo de 1863 emitido em Paris pelo banqueiro Erlanger era prova disso.

A França, a Grã-Bretanha, a Itália, o Império Otomano enviaram navios de guerra para as águas territoriais tunisinas, a fim de intimidar as populações e de intervir em auxílio das autoridades, se a situação se tornasse incontrolável. O bei recuou face aos protestos e anunciou a 21 de abril de 1864 que renunciava à duplicação da mejba[10]. Reiterou as concessões em julho de 1864, a fim de obter um acordo com o principal cabecilha da revolta, Ali ben Ghedahem[11]. Depois, com o apoio das potências estrangeiras, avançou para a repressão. O sultão (monarca do Império Otomano) deu apoio financeiro ao bei para que este pudesse arregimentar tropas frescas e lançar a repressão. Foi uma iniciativa do sultão para não se deixar submergir pela França[12], pela Grã-Bretanho e pela Itália.

Uma repressão massiva

O bei lançou-se numa repressão massiva a posteriori que lhe permitisse extorquir o máximo de impostos e multas à população. Assim escrevia o cônsul francês, em 4 de dezembro de 1864, ao ministro dos Negócios Estrangeiros em Paris: «O governo do bei desistiu rapidamente do sistema de clemência que parecia ter inaugurado … ; regressou à dureza, traduzida em ferros e tortura, para obter, das províncias do litoral, impostos exorbitantes de guerra.» Declara ainda o cônsul: «É meu dever informar-vos do modo bárbaro como age o general Zarrouk para executar as ordens do bei, depenando completamente os indígenas, submetendo à tortura pessoas idosas e mulheres que não tomaram parte na revolução» (carta de 16 de fevereiro de 1865). Outro funcionário francês: «A multa só pôde ser cobrada por meio do prisão, pondo as pessoas a ferros, à bastonada e com os castigos mais ilegais do ponto de vista do nosso direito público atual. Entre esses castigos assinalo o confisco de bens, a tortura levada por vezes ao limite da lesão ou da morte, a violação de domicílio … enfim, a violação das mulheres, tentada ou consumada, na presença dos pais e maridos acorrentados» (1 de março de 1865). Jean Ganiage acrescenta: «Em março de 1865, Espina, vice-cônsul, calculou em 23 milhões de piastras o montante que o governo tirou do Sahel, de outubro/1864 a janeiro/1865, sem contar cerca de 5 milhões de piastras extorquidas pelos seus empregados para seu próprio benefício»[13].

O segundo empréstimo externo realizado em Paris em 1865

Visto que o empréstimo de 1863 em nada tinha melhorado a situação financeira do país, o bei e seu primeiro-ministro optaram pela fuga para a frente e fizeram um acordo com o banqueiro Erlanger para contrair novo empréstimo em março de 1865. A Tunísia endividou-se no montante de 36,78 milhões de francos. Fê-lo em condições ainda piores e mais escandalosas do que em 1863. De facto, enquanto os títulos de 500 francos tinham sido vendidos a 480 francos em 1863, os novos títulos foram vendidos a 380 francos, ou seja, por 76% do seu valor facial.

Um comprador de um título de 500 francos pagava 380 para o adquirir, esperando receber cada ano um cupão de 35 francos durante 15 anos (ou seja, 525 francos), aos quais acresciam 500 francos na data de maturidade, em 1880. Um investimento de 380 francos rendia 1025, ou seja um lucro de 645 francos. A taxa de juro teórico era de 7%, mas visto que o cupão anual era de 35 francos, o rendimento real era de 9,21% (=35/380).

Se nos colocarmos no ponto de vista do Estado tunisino devedor: a nova dívida resultante do empréstimo de 1865 foi de 20 milhões de francos, incluindo as despesas de corretagem e comissões cobradas pelo banqueiro Erlanger e seus associados Morpurgo-Oppenheim, que ascenderam a 18%. Acrescentemos que quase 3 milhões foram diretamente desviados, uma metade pelos banqueiros, outra pelo primeiro-ministro e seus associados. O balanço apresenta três números:

A nova dívida contraída em 1865 eleva-se a 36,78 milhões de francos.

O montante realmente recebido não chega a 20 milhões de francos.[14]

O total a reembolsar em 15 anos é de 75,4 milhões.
Os banqueiros fizeram um belo negócio: sem investirem um centavo, cobraram no momento da emissão cerca de 6,5 milhões de francos a título de comissões, custos de corretagem e roubo puro e simples. Todos os títulos foram vendidos em poucos dias. Reinava em Paris a euforia a propósito dos títulos de dívida dos países muçulmanos (Tunísia, Império Otomano, Egito), que eram apelidados «valores de turbante». Os banqueiros pagaram às redações dos jornais para publicarem notícias tranquilizadoras. Embora a economia e as finanças tunisinas estivessem estagnadas, o semanário parisiense La Semaine Financière escreveu a propósito do empréstimo de 1865: «O bei de Tunes encontra-se hoje sob o protetorado moral da França, que está interessada em favorecer a prosperidade do povo tunisino, uma vez que essa prosperidade reforça a segurança na Argélia»[15].

As burlas dos banqueiros Erlanger e Morpurgo-Oppenheim não acabam aí. Não satisfeitos com endividar a Tunísia sob condições leoninas, trabalharam ativamente para que o dinheiro do empréstimo fosse utilizado em despesas das quais tirariam proveito. Dois exemplos: convenceram o bei a comprar a um negociante marselhês, um tal Audibert, dois navios arruinados a preço de novo (250.000 francos). Segundo o inspetor das finanças, Victor Villet, E. Erlanger, que fez questão em fornecer 100 canhões de novo modelo por um milhão de francos, na realidade forneceu «velhos canhões cuja culatra tinha sido [inutilizada]. A fraude era demasiado grosseira; depressa se soube que esses canhões apenas tinham custado ao fornecedor cerca de 200.000 francos»[16]. A lista de negócios com indícios evidentes de burla é longa. Por outro lado, Erlanger conseguiu que o bei lhe desse, como garantia do empréstimo, a concessão da manufatura de tecidos de Tetourba.

As dívidas acumuladas durante o período 1863-1865 conduzem à tutela da Tunísia

As novas dívidas acumuladas ao longo de 1863-1865 colocaram a Tunísia à mercê dos seus credores externos e da França. Pura e simplesmente a Tunísia não tinha capacidade para reembolsar os montantes que lhe eram exigidos. As receitas excecionais de impostos após a repressão em finais de 1864 e inícios de 1865 tinham feito entrar no tesouro público uma quantia avultada (30 milhões de piastras, o que ultrapassava largamente os rendimentos do Estado num ano normal) que foi rapidamente engolida pelo pagamento da dívida e por novas despesas sumptuosas e contrárias ao interesse das populações.

O ano de 1867 foi muito mau em termos de produção agrícola. Ora o bei precisava que esses produtos fossem exportados, para obter receitas. Daqui resultou um surto de escassez em diversas regiões do país e uma epidemia de cólera, favorecida pelo estado de debilidade de uma parte da população (esmagada pelos impostos e afectada pela subida de preço dos alimentos de base) e pela ausência de despesa pública ao nível sanitário. Alguns relatos falam de 5000 mortos na capital, devidos sobretudo à carestia, e de 20.000 em toda a Tunísia[17].

Ao nível internacional, os banqueiros tornaram-se subitamente timoratos e começaram a exigir rendimentos mais altos que no passado. Em 1866 o México infligiu uma derrota militar estrondosa ao exército francês e logo a seguir repudiou o pagamento da dívida, considerada odiosa, aos banqueiros franceses e aos portadores de títulos mexicanos (nomeadamente os que tinham sido vendidos em Paris pelo banqueiro Erlanger em 1864 e 1865). Em consequência o bei e seu primeiro-ministro não conseguiam obter novos empréstimos em Paris nem onde quer que fosse. Procuraram obter um empréstimo de 100 milhões, mas foi um fiasco. De facto, em 1867 voltaram a assinar um contrato com o banqueiro Erlanger. Este tencionava vender 200.000 obrigações tunisinas em Paris, mas ao cabo de algumas semanas apenas tinha conseguido vender 11.033. Tinha-se extinto a febre dos «valores de turbante» tunisinos. De repente o bei viu-se obrigado a recorrer a «pequenos» empréstimos, a taxas de juro usurárias, junto de outros banqueiros parisienses como Alphonse Pinard[18], diretor do Comptoir d’Escompte de Paris, que organizou um empréstimo de 9 milhões de francos em janeiro de 1867. Rothschild, contatado, não quis emprestar à Tunísia. Oppenheim e outros exigiram taxas de juro na ordem dos 15%.

A partir de 1867, o bei suspende parcialmente o pagamento da dívida interna e externa. Isto leva A. Pinard, diretor do Comptoir d’Escompte de Paris, a apresentar uma queixa contra a Tunísia no tribunal civil de La Seine, por incumprimento de cláusulas do empréstimo de 9 milhões de francos em janeiro de 1867. A. Pinard exige ser compensado nomeadamente com os rendimentos das alfândegas tunisinas e das colheitas de azeitona. A sentença é lida em agosto de 1867 e A. Pinard perde o processo: a Regência de Tunes era um país estrangeiro, não abrangido pela jurisdição do tribunal.

Alphonse Pinard e outros banqueiros utilizam então outra estratégia. Formam um sindicato[19] de detentores dos títulos tunisinos no qual entram os banqueiros Bischoffsheim, Bamberger, Lévy-Crémieu, Edmond Adam, mas também Joseph Hollander, administrador do Banque des Pays-Bas, futuro sogro do filho de Pinard. Esta associação encarrega-se de «ajudar» o governo do bei a pagar os cupões. Mais tarde, em 1869-1870, consegue fazer-se representar diretamente na comissão financeira internacional que vai tomar conta das finanças tunisinas e obtém uma vitória total (ver adiante).

As dívidas resultantes dos empréstimos do período 1863-1867 são odiosas e deviam ter sido repudiadas

A dívida contraída entre 1863 e 1867 é claramente uma dívida odiosa para o povo tunisino. Corresponde à letra à definição dada em 1927 por Alexander Nahum Sack, professor de direito em Paris e teórico da doutrina da dívida odiosa: «Se um poder despótico contrai uma dívida não segundo as necessidades e interesses do Estado, mas para fortalecer o seu regime despótico, para reprimir a população que o combate, essa dívida é odiosa para a população do Estado inteiro. Essa dívida não obriga a nação no seu todo: é uma dívida do regime, dívida pessoal do poder que a contraiu; por consequência, ela cai com a queda desse poder.»[20]

Mais adiante acrescenta: «Podemos igualmente englobar nessa categoria de dívidas os empréstimos contraídos com fins manifestamente interesseiros e pessoais dos membros do governo ou das pessoas e grupos ligados ao governo – fins que nada têm a ver com os interesses do Estado.» Tudo isto se aplica na perfeição ao comportamento do primeiro-ministro Mustapha Khaznadar e aos outros dignitários do regime do bei[21].

Sack sublinha ainda que os credores dessas dívidas, quando emprestaram com conhecimento de causa, «cometeram um ato hostil em relação ao povo; por isso não podem esperar que uma nação sujeita a um poder despótico assuma as dívidas “odiosas”, que são dívidas pessoais desse poder». O banqueiro Émile Erlanger, o banqueiro Alphonse Pinard e os seus associados sabiam perfeitamente que as verbas emprestadas não serviam o interesse geral. Além disso eles eram, como mostrámos, atores diretos do cambalacho.

Em relação à política de emissão de títulos de alto risco no plano financeiro e odiosos no plano jurídico por parte e do banqueiro Erlanger, é preciso recordar ainda que nessa mesma época ele emitiu em 1864 e 1865 títulos mexicanos por conta do Estado fantoche montado pelo exército francês no México, tendo à cabeça Maximiliano da Áustria, que seria fuzilado em junho de 1867. Em 1863, E. Erlanger emitiu em Paris um empréstimo de 15 milhões de dólares para os Estados esclavagistas do Sul (os Confederados), tendo por garantia o algodão e que lhe permitiu extrair um lucro imediato de cerca de 4 milhões de dólares[22].

O desmantelamento do Império Otomano

A França aguarda o momento oportuno para passar a controlar completamente a Tunísia

Uma vez lançada na colonização da Argélia nos anos 1830, os dirigentes franceses consideraram que a França tinha o direito de estender o seu domínio colonial à Tunísia. Faltava encontrar o pretexto e o momento oportunos. Havia outras prioridades, tanto no plano interno como no continente europeu ou noutras partes do Mundo. Na região árabe, o Egito era uma prioridade por razões geoestratégicas: o acesso direto à Ásia via Canal de Suez, situado entre o Mediterrâneo e o mar Vermelho; o acesso à África Negra através do Nilo; a proximidade do Oriente por via terrestre; o potencial agrícola do Egito; a concorrência entre a Grã-Bretanha e a França – quem fosse capaz de controlar o Egito obteria um avanço estratégico sobre outras potências. Napoleão já tinha percebido isso e tinha-o posto em prática com a sua campanha do Egito em 1798.

A conquista da Tunísia não constituía uma prioridade, tanto mais que a estabilização do domínio francês na Argélia saía caro, por causa da resistência persistente. Em França, o apoio popular à nova iniciativa colonial não estava inteiramente assegurado. Durante os anos 1860, a tentativa de conquista do México foi catastrófica. Conforme foi mencionado mais acima, Luís-Napoleão Bonaparte teve de retirar os soldados franceses do solo mexicano em 1866, face à contra-ofensiva vitoriosa das forças progressistas mexicanas, e viu-se a braços com um repúdio das dívidas reclamadas pelos banqueiros franceses no México (cerca de 60 milhões de francos)[23]. Em finais de 1867, Napoleão III estava também preocupado com o avanço dos camisas-vermelhas republicanos de Garibaldi, que ameaçavam tomar Roma, protegida da França.

No entanto, para o cônsul em funções em Tunes, representante plenipotenciário da França junto do bei, a tentativa de colocar sob tutela ou de conquistar pura e simplesmente a Tunísia constituía não só uma prioridade, mas até uma obsessão. Os atos e os comportamentos dos sucessivos cônsules em Tunes deram prova disso mesmo. Em plena revolta de 1864, o cônsul francês, Charles Beauval, jogava nos dois lados do tabuleiro: oficialmente a França apoiava o bei, mas ao mesmo tempo negociava com o principal cabecilha da revolta, Ali ben Ghedahem, não fosse dar-se o caso de este derrubar o bei. Escrevia ele a 30 de maio de 1864: «Será digno do Imperador reunir mais tarde todas as tribos da Tunísia numa pequena confederação árabe.» Em setembro de 1865, segundo o historiador Jean Ganiage, «os assuntos tunisinos foram discutidos num conselho de ministros presidido pelo imperador. Consultado o governador da Argélia, o marechal Mac-Mahon, este propôs o envio de tropas para Tunes e apresentou um projeto pormenorizado sobre a marcha e organização dessa coluna. Mas esse plano estava para além das intenções do governo»[24]. Dois anos mais tarde, ainda segundo J. Ganiage, «o cônsul de Botiliau não via outra solução que não fosse a ocupação da Tunísia pela França, a anexação definitiva da Argélia ou a ocupação temporária a título de penhor».

Por outro lado, declarações racistas não faltavam na correspondência dos representantes da França na Tunísia, conforme testemunha uma carta de 2 de dezembro de 1867 do cônsul Botiliau, na qual denunciava «os costumes da raça árabe, a sua inatidão para o trabalho, os seus hábitos de falsidade, de mentira, de corrupção …»[25].

A criação de uma Comissão Financeira Internacional em 1869

A proposta de criação duma comissão internacional encarregada de controlar as finanças da Tunísia é apresentada por escrito nas suas linhas gerais pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da França, o marquês de Moustier, em janeiro de 1868: «Parece por conseguinte que os nossos esforços devem visar antes de tudo assegurar a boa gestão dos rendimentos dados em penhor pelo governo do bei, e que, ao estabelecer um controlo sério sobre a coleta do fisco atualmente entregue em mãos inábeis ou infiéis, daríamos um grande passo em direção aos fins que nos propomos. No caso de ser admitido este princípio, poderíamos entregar a tarefa a uma comissão com sede em Tunes.»

Em abril de 1868, sob o comando dos representantes da França, o bei promulga um projeto de decreto de constituição da Comissão Financeira Internacional. Quinze meses mais tarde, depois de a França ter obtido o consentimento definitivo da Grã-Bretanha e da Itália, o decreto definitivo foi promulgado pelo bei. O texto do decreto de 5 de julho de 1869 constitui um verdadeiro ato de submissão da Tunísia aos credores (ver texto completo no quadro abaixo). O artigo 9º é particularmente importante, pois indica claramente que a comissão receberá todos os rendimentos do Estado, sem exceção. Acrescenta que nenhum empréstimo poderá ser efetuado sem o seu acordo. O artigo 3º estipula, embora em termos diplomáticos, que o representante da França é a pessoa mais importante nessa comissão e é designado pelo imperador dos Franceses. Na prática o bei limita-se a ratificar. Cabe à comissão estipular o montante exato da dívida (art. 5º). Do ponto de vista dos banqueiros credores, este é um ponto fundamental, pois a comissão vai reestruturar a dívida reclamada à Tunísia e vai determinar se haverá ou não redução da dívida. O artigo 10º tem igualmente uma importância fundamental para os banqueiros franceses, pois prevê a presença de dois representantes seus na comissão. De facto, quando esta foi constituída em 1869, a associação dos detentores de títulos, dirigida pelo banqueiro parisiense Alphonse Pinard, teve direito a um representante, o mesmo sucedendo com o banqueiro Erlanger[26]. Os credores ingleses e italianos portadores de títulos da dívida interna também estavam representados.

Decreto do bei de Tunes que institui a Comissão Internacional Financeira

Tomámos conhecimento da necessidade, para bem do nosso reino, dos nossos súbditos e do comércio, de organizar uma comissão financeira em conformidade com o projefactoo de decreto promulgado em 4 de abril do ano passado, que foi ratificado pelo nosso de creto de 29 de maio seguinte, de acordo com as seguintes directivas:

Art. 1. A comissão relativamente à qual foi promulgado o nosso decreto de 4 de abril de 1868 reunir-se-á na nossa capital no prazo de um mês.

Art. 2. Esta comissão será constituída por dois comités distintos: um comité executivo e um comité de controlo.

Art. 3. O comité executivo será composto da seguinte maneira: dois funcionários do nosso governo nomeados por nós mesmos, e um inspetor das finanças francês igualmente nomeado por nós mesmos, e previamente designado pelo governo do imperador.

Art. 4. O comité executivo fica encarregue de verificar o estado actual dos diversos créditos que constituem a dívida do reino e os recursos de que o governo dispõe para satisfazer a dívida.

Art. 5. O comité executivo abrirá um registo no qual serão inscritas todas as dívidas contraídas, tanto no estrangeiro como no interior do reino, e que consiste em teskérés ou títulos do tesouro, bem como as obrigações do empréstimo de 1863 e o de 1865. Quanto às dívidas que não forem controladas por contratos públicos, os portadores dos títulos deverão apresentar-se no prazo de 2 meses. Para este efeito o comité tratará de publicar um aviso nos jornais de Tunes e no estrangeiro.

Art. 6. O comité executivo comunicará o desejo de tomar conhecimento de todos os documentos autênticos de receitas e despesas, e o ministério das finanças fornecer-lhe-á todos os meios.

Art. 7. O orçamento das receitas será assim comparado com o das despesas do governo, acrescido do valor da dívida, e o comité executivo procurará os meios para estabelecer uma repartição equitativa da receitas públicas, tendo em conta, na justa proporção, todos os interesses, e elaborará um quadro dos rendimentos que poderiam ser acrescentados ao conjunto das garantias já atribuídas aos credores.

Art. 8. O comité executivo tomará todas disposições relativas à dívida geral e nós dar-lhe-emos todo o apoio necessário para assegurar a execução das medidas adotadas para o efeito.

Art. 9. O comité executivo receberá todos os rendimentos do Estado sem exceção alguma e não será emitido nenhum título do tesouro ou valor algum sem o consentimento do dito comité devidamente autorizado pelo comité de controlo; e se o governo for obrigado, assim não queira Deus, a contrair um empréstimo, não o poderá fazer sem a aprovação prévia dos dois comités.
Todos os teskérés que sejam emitidos no montante afectado pela comissão às despesas do governo serão assinados pela comissão e terão o visto do comité executivo. Estes teskérés não poderão exceder o número fixado no orçamento das despesas.

Art. 10. O comité de controlo será composto da seguinte forma: dois membros franceses representantes dos empréstimos de 1863 e 1865; dois membros ingleses e dois membros italianos representantes dos portadores dos títulos da dívida interna.
Cada um dos delegados receberá directamente o seu mandato dos portadores de títulos dos empréstimos e conversões do nosso reino, devidamente credenciados para esse efeito pelos nossos ofícios sob vigilância do comité executivo.

Art. 11. O comité de controlo tomará conhecimento de todas as operações do comité executivo. Terá a seu cargo verificá-las e aprová-las se for caso disso. A sua aprovação é necessária para dar um carácter executivo às medidas de interesse geral emitidas pelo comité executivo.

Art. 12. O nosso primeiro-ministro fica encarregue da execução do conteúdo dos onze artigos precedentes. Nomearemos os dois membros e requereremos o inspetor das finanças francês no mais breve prazo possível.Os doze artigos acima foram escritos no Palácio de La Goulette, a 26 de Rabiâ El-Avel 1286 (5 de julho de 1869).

A reestruturação da dívida tunisina em 1870

Uma das principais tarefas da comissão, a mais urgente, consistia em reestruturar a dívida. Victor Villet, o inspetor das finanças designado pela França, mete mãos à obra. Como dissemos, ele é em princípio o personagem principal da comissão. Em dezembro de 1869 ele propõe à comissão uma redução de mais de metade da dívida avaliada num total nominal de 121 milhões de francos. A dívida reestruturada e reduzida passaria a ser de 56 milhões de francos[27].

Os representantes dos banqueiros recusam a proposta do inspetor das finanças e nisso são apoiados pelos respetivos governos, em particular a aprovação do governo de Luís Napoleão Bonaparte, estreitamente ligado à alta finança da França. Não é concedida à Tunísia qualquer redução da dívida. Pelo contrário, os banqueiros conseguem elevá-la para 125 milhões de francos. É uma vitória total para os banqueiros representados pelos delegados de Alphonse Pinard e Emile Erlanger. Embora tivessem recomprado na Bolsa os títulos de 1863 e de 1865 (que eles próprios tinham emitido por conta da Tunísia) a 135 ou a 150 francos depois de terem especulado em baixa, obtêm, graças à reestruturação de 1870, a troca desses títulos por outros que valiam quase 500 francos. Concretamente, um antigo título de 1863 ou de 1865 com o valor de 500 francos que eles compraram por 150 francos, por exemplo, é trocado por um novo título de 500 francos. Uma verdadeira sorte grande, que resulta numa nova dívida odiosa!

Como escreveu o historiador Nicolas Stoskopf, tratava-se de apertar um pouco mais a corda que o próprio bei tinha posto ao pescoço. No seu balanço da ação do banqueiro A. Pinard que dirige a associação de detentores dos títulos, N. Stoskopf escreve: «A partir de 1867, a bancarrota tunisina permite passar à etapa seguinte. Depois disso, por meio de negociações inclementes e manobras ocultas, Pinard nunca mais parou de recolher os lucros previstos, com total cinismo em relação aos aforradores franceses e à sorte dos Tunisinos, mas com a eficácia assustadora de um financeiro exceçional que lhe permite por fim recuperar, aquando da unificação da dívida tunisina em 1870, 13 milhões em troca dos 5 que tinham sido investidos pelo sindicato»[28].

As autoridades tunisinas foram cúmplices activos desta pilhagem dos recursos públicos. O primeiro-ministro Mustapha Khaznadar, outros dignitários do regime, não esquecendo os tunisinos endinheirados que detinham grande parte dos títulos de dívida interna, conseguiram enormes proveitos graças à reestruturação. Tal como sucede na maioria dos países, as classes dominantes locais estavam solidárias com os credores internacionais, pois uma parte dos seus próprias rendimentos provinha do reembolso da dívida. Isto era verdade no século XIX e continua a ser verdade no século XXI.

O sucesso dos banqueiros às custas do povo tunisino

Os banqueiros Alphonse Pinard e Émile Erlanger decidiram retirar-se da Tunísia, foram indemnizados e deram-se por satisfeitos. Émile Erlanger conseguiu construir um império financeiro, nomeadamente graças às suas operações na Tunísia. Deitou a mão ao Crédit Mobilier de Paris e, anos mais tarde, à famosa agência noticiosa internacional Havas[29]. Alphonse Pinard, por seu lado, prosseguiu as suas actividades em França e noutras zonas do Mundo, contribuindo para a criação da Société Générale (um dos três bancos principais na actualidade), assim como outro banco que iria transformar-se com o correr do tempo no BNP Paribas (o maior banco francês actual).

Esta passagem de O Capital de Marx, publicado em 1867, resume o papel da dívida pública: «O sistema de crédito público, isto é, das dívidas nacionais, cujas origens encontramos em Veneza e Génova na Idade Média, apoderou-se definitivamente da Europa durante a época industrial. (…) A dívida pública – por outras palavras: a alienação do Estado, quer ele seja despótico, constitucional ou republicano – é um março da era capitalista. (…) A dívida pública opera como um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva. (…) Com as dívidas públicas nasceu um sistema de crédito internacional que esconde frequentemente uma das fontes da acumulação primitiva em determinados povos»[30].

E ainda: «Os grandes bancos nasceram recheados de títulos nacionais, nada mais eram senão associações de especuladores privados que se estabeleceram à ilharga dos governos e que por isso dispunham do privilégio de emprestar dinheiro ao Estado. (…) A dívida pública deu o impulso inicial às sociedades por ações, ao comércio de toda a espécie de papéis negociáveis, às operações aleatórias, à agiotagem, em suma, aos jogos da bolsa e à bancocracia moderna»[31].

O falhanço da Comissão Internacional Financeira

Conforme o previsto no artigo 9º do decreto de criação da Comissão Financeira Internacional de julho de 1869, os seus membros controlavam os rendimentos do Estado. Subsequentemente, a política económica ditada pelo reembolso da dívida provocou a estagnação da economia, pois o Estado não efectuou qualquer investimento produtivo, não fez despesas para estimular a economia e esmagou com impostos os pequenos produtores locais, tanto os rurais como os urbanos. Daí resultou que as receitas fiscais se tornaram insuficientes para o reembolso da dívida de 125 milhões de francos.

Os membros da Comissão que representavam os banqueiros retiraram-se em 1871, pois já tinham satisfeito os seus interesses e não podiam extrair mais benefícios dos trabalhos da Comissão, que se via confrontada com o falhanço das políticas que tinha ditado desde 1869. O falhanço é de tal ordem, que o primeiro-ministro Mustapha Khaznadar, que ocupava postos governamentais há 36 anos, é derrubado em 1873. Fica com termo de residência, por pressão da França, em razão das suas responsabilidades nos desvios de fundos e na corrupção.

Khérédine, que substituiu Mustapha Khaznadar, procura aplicar algumas reformas, mas sem sucesso; é demitido em 1876, nomeadamente por não favorecer suficientemente os interesses das empresas francesas. Khérédine pretendia também obter uma redução dos juros da dívida. Era de mais.

A situação dos artesãos tunisinos era desastrosa, porque, em consequência dos acordos de livre comércio, não conseguiam fazer face aos produtos importados da Europa. Os camponeses encontravam-se em situação semelhante. Não havia nenhuma indústria importante. A rede de caminhos de ferro tinha apenas umas dezenas de quilómetros (Tunes – Marsa e Tunes – Goulette). As ruas de Tunes não eram pavimentadas e não existia uma rede de esgotos.

A França recebe luz verde das outras grandes potências para se apoderar da Tunísia

Aquando do Congresso das Nações efectuado em Berlim, em julho de 1878, tanto a Inglaterra como a Alemanha declaram que a França pode dispor da Tunísia como bem entender.

A Alemanha do chanceler Otto von Bismarck, que tinha infligido uma derrota pungente à França em 1870-1871 (aprisionou Luís Napoleão Bonaparte em Sedan, tomou a Alsácia-Lorena e recebeu uma indemnização), achava que era preciso dar uma prémio de consolação aos novos dirigentes franceses (o Segundo Império deu lugar em 1870 à Terceira República[32]). A Tunísia não atrai a Alemanha. Bismarck calcula que se a França se concentrar na conquista da Tunísia com o seu acordo, tornar-se-á menos reivindicativa em relação à recuperação da Alsácia-Lorena. A Inglaterra, que no Mediterrâneo dá prioridade à parte oriental (Chipre, Egito, Síria, …), também vê com bons olhos que a França se entretenha a deitar a mão à Tunísia. Lord Salisbury, representante da Inglaterra, declara ao seu homólogo francês: «Tomem Tunes, se quiserem, a Inglaterra não se opõe e respeitará as vossas decisões. Aliás, não podem deixar Cartago nas mãos dos bárbaros»[33]. O ministro francês do Interior, por seu lado, escreve: «O sr. Bismarck deu-nos a entender que poderíamos tomar conta da Tunísia sem entraves da sua parte …»[34]. O governo francês discute longamente a questão mas não se resolve a passar à ação, porque tem outras prioridades. Entretanto, o cônsul francês em Tunes procura constantemente provocar um passo em falso do bei, para criar um pretexto para uma intervenção militar francesa[35].

Finalmente chega-se a vias de facto em 1881, quando se forma uma maioria no governo francês a favor da conquista da Tunísia. Pretexto: a «razia» feita pela tribo dos Kroumirs (ver adiante).

Os banqueiros, ao tomarem conhecimento das intenções do governo, recompram massivamente a baixo preço, na Bolsa de Paris, os títulos da dívida tunisina, que são vendidos a 330 francos em janeiro de 1881. Na véspera da intervenção francesa, valem 487 francos (sendo o valor nominal de 500 francos), montante este que nunca tinha sido alcançado. O raciocínio dos banqueiros e doutros financeiros é simples: se a França passar a controlar a Tunísia, irá reestruturar mais uma vez a dívida e indemnizar os credores. Não se enganaram: a reestruturação da dívida é feita em 1884, durante o segundo mandato de Jules Ferry, e o erário público é usado para benefício dos banqueiros.

A agência Havas, que pertencia ao banqueiro Erlanger desde 1879, desenvolveu uma campanha mediática a favor da intervenção francesa.

A invasão de 1881

A França apenas precisava de uma ocasião propícia para pôr em prática o acordo de Berlim. A dificuldade, para Jules Ferry, presidente do Conselho, é que isso significava uma intervenção militar, o que exigia o acordo da Câmara de Deputados.

Como se disse mais acima, a diplomacia francesa procurava continuamente provocar um incidente ou encontrar uma ocasião que justificasse a intervenção francesa. Théodore Roustan, cônsul francês, deitou mãos à obra. Em maio de 1880 escreveu ao barão de Courcel, pessoa muito influente na diplomacia francesa (viria a ser embaixador em Berlim a partir de 1881 e participou na Conferência de 1884-1885 sobre a partilha colonial da África)[36]: «Temos de esperar e preparar os nossos motivos para agir, antes de prepararmos os meios de ação. A parvoíce do governo tunisino nisso nos ajudará.» O conflito entre a tribo argelina dos Ouled Nahd e os Kroumirs tunisinos foi o móbil para lançar uma intervenção militar francesa de grande amplitude. Em finais de fevereiro de 1881, no seguimento de numerosos diferendos entre as duas tribos, os Ouled Nahd «argelinos» atacaram o acampamento dos Kroumirs «tunisinos». Morreram no confronto cinco Ouled Nahd e três Kroumirs.

O cônsul francês exulta: «Melhor ocasião para agir não poderia haver, e para agirmos sozinhos, pois trata-se de uma questão que não diz respeito às outras potências.» Para vingar os mortos, a 30 e 31 de março, 400 a 500 membros da tribo nómada dos Kroumirs atacam por duas vezes a tribo dos Ouled Nahd em território argelino, mas são rechaçados pelas tropas francesas; nos combates morrem seis soldados franceses[37].

Jules Ferry obtém mão livre do Parlamento para «restabelecer a ordem». Eis como Jules Ferry apresenta, de forma completamente hipócrita e enganosa, o pedido de dotação de guerra de 11 de abril de 1881 à Assembleia Nacional: «Vamos à Tunísia para castigar as malfeitorias que já conheceis; vamos também para tomar todas as medidas necessárias para que não se repitam. O Governo da República não busca conquistas, não precisa delas [muito aplaudido à esquerda e ao centro]; mas recebeu um legado dos governos que o antecederam, essa magnífica possessão argelina que a França glorificou com o seu sangue e fecundou com os seus tesouros. A repressão militar far-se-á, até ao ponto em que seja necessário ir, para pôr a salvo de forma séria e duradoura a segurança e o futuro dessa França africana [mais aplausos]»[38].

São enviados 24.000 soldados contra os Kroumirs.

O tratado do Bardo é ratificado, por esmagadora maioria, pela Câmara de deputados francesa. Apenas um deputado vota contra, o corajoso socialista Alfred Talandier[39]. Este tratado de 12 de maio de 1881 é assinado entre o bei de Tunes e o Governo francês (ver texto do Tratado do Bardo em moldura). Instaura o protectorado francês na Tunísia. Com medo de ser destronado pelos franceses, que detinham o seu irmão Taïeb, o bei submete-se e confia ao «intendente-geral da França» todos os seus poderes nas áreas dos negócios estrangeiros, da defesa do território e da reforma administrativa.

O tratado do Bardo

É preciso sublinhar que poucos meses mais tarde a França, sob o comando de Ferry, reforça a sua ação militar na Indochina, para alargar o seu domínio colonial. Durante o Verão de 1881 Ferry faz votar na Assembleia Nacional a dotação para uma ofensiva militar no Tonkin[40]. Também neste caso a França se serve de um pretexto para justificar as manobras coloniais.

O exército francês ocupa Tunes em outubro de 1881 e apodera-se da cidade santa de Kairouan em finais do mesmo mês[41].

Perante a resistência da população e em particular das tribos tunisinas que entram em rebelião[42], a intervenção militar da França recrudesce. A força expedicionária francesa sobe para 50.000 soldados. A França, no acordo de La Marsa de junho de 1883, destitui o bei da autoridade que lhe resta e institui a administração directa da França sobre o país (ver moldura com o acordo de La Marsa).

Primeira página do Tratado do Bardo

É preciso sublinhar que tanto o tratado do Bardo (1881) como a convenção de La Marsa (1883) contêm disposições claras no que diz respeito à dívida como instrumento de submissão e de espoliação. O artigo 7º do Tratado do Bardo decreta que: «O Governo da República francesa e o Governo de Sua Alteza o Bei de Tunes reservam-se o direito de fixar, de comum acordo, as bases da organização financeira da Regência, de forma a assegurar o serviço da dívida pública e garantir os direitos dos credores da Tunísia.» O artigo 2º da Convenção de La Marsa especifica: «O Governo francês garantirá, na época e nas condições que lhe pareçam mais adequadas, um empréstimo a ser emitido por Sua Alteza o Bei, para conversão ou reembolso da dívida consolidada, que se eleva a 125 milhões de francos, e da dívida flutuante, até ao montante máximo de 17.550.000 francos. Sua Alteza o Bei compromete-se a não contrair nenhum empréstimo futuro por conta da Regência sem autorização do Governo francês.»

Conclusão

Após esta análise da dívida da Tunísia durante a segunda metade do século XIX, podemos afirmar, sem risco de errar, que ela é de natureza odiosa e que facilitou o domínio colonial do país.

A partir desse momento, a dívida nunca mais deixou de ser um importante instrumento de dominação e pilhagem dos recursos naturais e humanos da Tunísia e por isso uma das causas essenciais do seu «atraso» e da sua marginalização.

Partindo desta conclusão, o povo tunisino tem o direito de exigir compensações à França, que devia endossá-las aos bancos (por exemplo o BNP Paribas e a Société Générale) e às empresas francesas que se aproveitaram da dívida para espoliar o povo tunisino.

Por outro lado, os ensinamentos que podemos tirar desta análise são importantes para compreender a situação da Tunísia contemporânea.

À imagem da dívida contraída entre 1863 e 1867, a que foi contraída durante o regime de Ben Ali, entre 1987 e 2010, é largamente odiosa, e as instituições financeiras internacionais e os credores do Norte (com a França à cabeça) sabem-no perfeitamente, como provam as resoluções do Senado belga (julho de 2011) e do Parlamento europeu (maio de 2012).

As políticas económicas postas em prática pelo poder do bei no século XIX para reembolsar a sua dívida são espantosamente semelhantes às fixadas pelos condicionalismos impostos pelo FMI no seu plano de reestruturação de 1986[43].

Em 1864 o aumento da mejba conduziu a uma revolta popular de grande dimensão. Em dezembro de 2010 foi o abandono das políticas sociais, por causa do encargo da dívida, que conduziu à revolução. Enquanto em 1864 a França enviou navios de guerra para fazer frente à revolta, em janeiro de 2011 a França propõe ao regime de Ben Ali uma ajuda material para manter a ordem, pela voz da ministra do Interior, Michèle Alliot-Marie.

Enfim, enquanto os credores internacionais se aproveitaram da situação no século XIX para instaurar acordos de livre comércio, a liberalização das trocas imposta à Tunísia pela União Europeia a partir de 1995 para os produtos industriais, que neste momento está a ser alargada aos produtos agrícolas e à pesca, aos serviços e aos mercados públicos (Acordo de Livre Comércio Completo e Alargado – ALECA), produz os mesmos efeitos desastrosos na sociedade tunisina.

O derrube do ditador Ben Ali em 2011 não pôs fim ao sistema da dívida. Pelo contrário, os sucessivos governos, pressionados pelos credores, não param de submergir a Tunísia em mais dívidas.

Ao mesmo tempo intensifica-se e organiza-se a luta contra a dívida. Uma quarentena de deputados (num total de 217) irá apresentar em junho de 2016, na Assembleia de Representantes do Povo, um projecto de lei sobre a auditoria da dívida pública externa e interna desde 1986.

A Tunísia não tem outro meio para sair do impasse da subjugação e do subdesenvolvimento, que não seja romper as correntes do sistema da dívida.

Tratado de garantia celebrado em Kasr Saïd, entre a França e Tunes.

O Governo da República francesa e o de Sua Alteza o Bei de Tunes,Desejando impedir em definitivo a repetição das desordens ocorridas recentemente nas fronteiras entre os dois Estados e no litoral da Tunísia, e desejosos de estreitar as antigas relações de amizade e boa vizinhança, decidiram celebrar uma Convenção com esse objectivo, no interesse das duas Altas Partes contraentes.Em consequência, o Presidente da República francesa nomeou seu plenipotenciário o sr. General Bréart, que se pôs de acordo com Sua Alteza o Bei sobre as estipulações seguintes:

Artigo primeiro. Os tratados de paz, de amizade e de comércio e todas as outras Convenções existentes actualmente entre a República francesa e Sua Alteza o Bei de Tunes são expressamente confirmados e renovados.

Artigo 2.
Com vista a facilitar ao Governo da República francesa o cumprimento das medidas que tem de tomar para atingir o fim que se propõem as Altas Partes contraentes, Sua Alteza o Bei de Tunes consente que a Autoridade militar francesa ocupe os pontos que considere necessários para assegurar o restabelecimento da ordem e da segurança das fronteiras e do litoral.
Esta ocupação cessará logo que as autoridades militares francesas e tunisinas reconheçam, de comum acordo, que a administração local tem condições para garantir a manutenção da ordem.

Artigo 3.
O Governo da República francesa compromete-se a prestar um apoio constante a Sua Alteza o Bei de Tunes, contra todos os perigos que ameacem a pessoa ou a dinastia de Sua Alteza ou que comprometam a tranquilidade dos seus Estados.

Artigo 4.
o Governo da República francesa garante a execução dos tratados actualmente existentes entre o Governo da Regência e as diversas Potências europeias.

Artigo 5.
O Governo da República francesa será representado junto de Sua Alteza o Bei de Tunes por um Ministro Residente, que velará pela execução do presente Acto, e que será o intermediário das relações entre o Governo francês e as Autoridades tunisinas para todos os assuntos comuns aos dois países.

Artigo 6.
Os Agentes diplomáticos e consulares da França em países estrangeiros ficarão encarregados da proteção dos interesses tunisinos e das nações da Regência.
Em troca, Sua Alteza o Bei compromete-se a não concluir qualquer acto de carácter internacional ser ter dado conhecimento ao Governo da República francesa e sem se ter entendido previamente com ele.

Artigo 7.
o Governo da República francesa e o Governo de Sua Alteza o Bei de Tunes reservam-se o direito de fixar, de comum acordo, as bases da organização financeira da Regência, com o fim de assegurar o serviço da Dívida pública e garantir os direitos dos credores da Tunísia.

Artigo 8.
Será imposta uma contribuição de guerra às tribos insubmissas da fronteira e do litoral. Em convenção ulterior será determinada a importância e o modo de cobrança, pela qual o Governo de Sua Alteza o Bei fica responsável.

Artigo 9.
A fim de proteger contra o contrabando de armas e munições de guerra as possessões argelinas da República da França, o Governo de Sua Alteza o Bei de Tunes compromete-se a proibir qualquer introdução de armas e munições de guerra através da ilha de Djerba, do porto de Gabès ou doutros portos do Sul da Tunísia.

Artigo 10.
O presente Tratado será submetido a ratificação do Governo da República francesa, e o instrumento de ratificação será entregue a Sua Aletza o Bei de Tunes no mais breve prazo possível.

Kasr Saïd, a 12 de maio de 1881.

Mohammed es-Saddok Bey.

General Bréart.

Convenção assinada em La Marsa entre a França e a Tunísia para regulamentar as relações entre os dois países.

Sua Alteza o Bei de Tunes, tendo em consideração a necessidade de melhorar a situação interna da Tunísia, nas condições previstas no Tratado de 12 de maio de 1881, e o Governo da República, levando a peito a resposta a esse desejo e a consolidação das relações de amizade felizmente existentes entre os dois países, acordaram em estabelecer uma Convenção especial para esse efeito; em consequência o Presidente da República francesa nomeou seu plenipotenciário o sr. Pierre-Paul Cambon, seu Ministro residente em Tunes, oficial da Legião de Honra, condecorado com as medalhas de Haid e grã-cruz de Nichan Iftikar, etc., o qual, depois de aceite a apresentação dos seus plenos poderes, emitiu, com Sua Alteza o Bei de Tunes, as disposições seguintes:

Artigo primeiro.
A fim de facilitar ao Governo francês o cumprimento do seu protectorado, Sua Alteza o Bei de Tunes compromete-se a proceder às reformas administrativas, judiciais e financeiras que o Governo francês julgue úteis.

Article 2.
O Governo francês garantirá, na data e nas condições que lhe pareçam as melhores, um empréstimo a ser emitido por Sua Alteza o Bei, para a conversão ou o reembolso da dívida consolidada no montante de 125 milhões de francos e da dívida flutuante até ao montante máximo de 17.550.000 francos.
Sua Alteza coíbe-se de contrair, no futuro, qualquer empréstimo por conta da Regência sem autorização do Governo francês.

Article 3.
Sobre os rendimentos da Regência, Sua Alteza arrecadará:

os valores necessários para assegurar o serviço do empréstimo garantido pela França;

o valor de 2 milhões de piastras (1.200.000 francos) provenientes da sua lista civil, devendo os rendimentos remanescentes ser afectados às despesas de administração da Regência e ao reembolso dos custos do Protectorado.

Artigo 4.
O presente entendimento confirma e completa, onde necessário, o Tratado de 1 de maio de 1881. Não modificará o disposto anteriormente no que se refere ao ajuste das contribuições de guerra.

Artigo 5.
A presente Convenção será submetida à ratificação do Governo da República francesa, e o diploma da ratificação será enviado a Sua Alteza o Bei de Tunes no mais breve prazo possível.
Os abaixo-assinados fazem boa-fé do presente diploma e apõem-lhe os respetivos selos.

La Marsa, 8 de junho de 1883.

Mohammed es-Saddok Bey.

Paul Cambon.

Primeira página da Convenção de La Marsa

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WESSELING, Henri. 1996. Le partage de l’Afrique – 1880-1914, Paris, Denoël (Folio Histoire, 2002; 1ª edição e holandês, 1991), 840 pp.

Agradecimentos: O autor agradece a Mokhtar Ben Afsa, Fathi Chamkhi, Nathan Legrand, Gus Massiah e Claude Quémar pela leitura e correções, bem como a Pierre Gottiniaux pelas ilustrações e paginação.

O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.

Artigo publicado a 12 de agosto no Comité para a Abolição de Dívidas Ilegítimas, com a tradução de Rui Viana Pereira.

[1] Tunes foi conquistada pelo Império Otomano em 1574.

[2] Ver CORM, Georges. 1982. «L’endettement des pays en voie de développement: origine et mécanisme» in Sanchez Arnau, J.-C. Coord, 1982, Dette et développement (mécanismes et conséquences de l’endettement du Tiers-monde), Éditions Publisud, Paris.

[3] Em 1839-1840 houve duas intervenções militares europeias contra o Egito, uma levada a cabo pela Grã-Bretanha e a França, outra pela Grã-Bretnha e a Áustria. Ver Éric Toussaint, «La dette comme instrument de la conquête coloniale de l’Égypte».

[4] Mohammed es-Sadok reinou de 1859 a 1882, foi o bei que conduziu a Tunísia à dominação francesa direta.

[5] Os banqueiros de Londres e de Paris emprestaram 3 milhões de libras aos Estados sulistas durante a Guerra da Secessão (1861-1865).

[6] Frédéric Émile d’Erlanger, n. 19.06.1832 em Francoforte e f. 22.05.1911 em Versalhes, foi um banqueiro destacado na praça financeira de Paris e de Londres na segunda metade do século XIX. É considerado o inventor dos empréstimos de alto risco aos países em vias de desenvolvimento, que se multiplicaram nas praças europeias até ao escândalo dos empréstimos russos. Entre eles, os empréstimos sobre o algodão americano em plena Guerra da Secessão ou as emissões de títulos pelo bei tunisino.

Em 1853, Friedrich Emil Erlanger tem 19 anos e mostra-se particularmente dotado: o governo de Otão I da Grécia recruta-o como cônsul-geral e agente financeiro na praça de Paris. Negoceia então para outras coroas vários empréstimos: a rainha D. Maria II de Portugal outorga-lhe o título de barão em agradecimento. No decurso duma viagem de repouso ao Egito, cruza-se com Ferdinand de Lesseps e oferece-se para o ajudar a encontrar financiamentos para o Canal de Suez.

O Banco Erlanger que dirige em Paris, assim como a sua filial londrina, organiza em 1685 a subscrição do «empréstimo Erlanger», que permite aos aforradores serem reembolsados em algodão do Sul dos Estados Unidos, durante a época da Guerra da Secessão, na condição de os Estados do Sul o entregarem. Esta aposta era acrescida duma taxa de juro relativamente elevada à época: 7% ao ano. O empréstimo também era negociável em Londres. Durante a Guerra da Secessão os Estados do Sul tinham organizado uma retenção do algodão que fez subir as cotações a um nível histórico de 1,89 dólares a libra, um recorde ainda por bater dois séculos depois. Esta subida representou uma subida de cotação de 20 vezes em poucos meses, mas as indústrias britânicas tiveram tempo para armazenar matéria-prima. Em 1870, cinco anos após a guerra, o algodão americano tinha quase regressado ao anterior nível de produção e o país continuou a ser líder mundial do algodão até 1931, como era desde 1803. Mas os portadores de obrigações nunca foram reembolsados.

Ao mesmo tempo, o Banco Erlanger realizou outra operação de envergadura, graças aos famosos empréstimos de 1863 e 1865 lançados pelo governo tunisino, sob direção do primeiro-ministro do bei, Mustapha Khaznadar. Esta operação, em virtude do seu falhanço imprevisto, contribuiu para a ruína das finanças tunisinas e precipitou a instauração do regime de protetorado francês.

O Banco Erlanger também financiou na Suíça a escavação do túnel de Simplon, que liga Valais ao Val d’Aoste, que foi nessa época o maior túnel ferroviário da Europa. O banco era um negócio de família que desenvolveeu atividade em diversos países.

[7] Outras medidas tomadas pelo bei e igualmente postas em causa: a nova Constituição ditada pelo cônsul francês em 1861, a reforma da Justiça que a tornou mais cara em geral e menos acessível às tribos nómadas.

[8] Citado por Jean Ganiage, p. 193.

[9] Jean Ganiage, p. 195.

[10] Por fim, a mejba, que orçava antes da revolta a 36 piastras e que subiu para 72 piastras em 1864 a fim de reembolsar a dívida, foi reduzida em 1865 a 20 piastras.

[11] Ali Ben Ghedahem, chefe da tribo dos Majer, na région de Kasserine, é uma das figuras emblemáticas da revolta lançada em março-abril de 1864 contra o poder do bei. Depois de negociar uma suspensão das hostilidades em julho de 1864, em troca de importantes concessões do bei, regressou às armas no Outono. Foi encarcerado em 1866 e morreu, provavelmente assassinado, na sua cela em La Goulette em 1867.

[12] O cônsul francês, Charles Beauval, plenipotenciário da França na Tunísia, jogava em dois carrinhos: enquanto a França apoiava o bei, ele negociava com o principal cabecilha da revolta, Ali ben Ghedahem, não fosse dar-se o caso de este derrubar o bei. A correspondência foi tornada pública por Ali ben Ghedahem em agosto de 1864 e denunciada pelo cônsul britânico, que protestou contra o jogo duplo da França. Ver Jean Ganiage, p. 212-213 e 222.

[13] Jean Ganiage, p. 227-228.

[14] Na realidade a soma efetivamente transferida para o Tesouro tunisino é inferior, não ultrapassou os 18 milhões de francos. É isto que afirma Victor Villet, inspetor das finanças francês, no seu relatório de 19.05.1872.

[15] Semaine financière, 25.03.1865.

[16] Citado por Jean Ganiage, p. 248.

[17] Ver http://fathichamkhi.over-blog.com/a

[18] No que se refere a Alphonse Pinard, ver http://www.persee.fr/doc/hes_0752-5… O Comptoir National d’Escompte de Paris (CNEP), dirigido por Alphonse Pinard, é um dos quatro bancos na origem do BNP Paribas. Fundado em 1848, tomou o nome de Comptoir d’Escompte de Paris (CEP) de 1853 a 1889. Em 1889, esteve envolvido num dos maiores escândalos financeiros da história da banca francesa: o escândalo do Panamá. A. Pinard desempenhou um papel ativo na criação da Société Générale. https://fr.wikipedia.org/wiki/Compt

[19] Este era o termo utilizado à época pelos banqueiros, os detentores de títulos e a imprensa.

[20] Alexander Nahum Sack. 1927. Os efeitos das transformações dos Estados sobre as suas dívidas públicas e outras obrigações financeiras, Recueil Sirey, Paris. Ver documento integral em versão gratuita no sítio do CADTM : http://cadtm.org/IMG/pdf/Alexander_… Para exemplos concretos de aplicações da doutrina da dívida odiosa, ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Dette… et http://cadtm.org/Dette-odieuse?lang=fr

[21] Para ter uma ideia da amplitude dos desvios. A fortuna do ministro da Tesouraria do bei, o alcaide Nessim, que fugiu de Tunes em plena revolta de 8.06.1864 e se instalou em Paris, onde passou a viver luxuosamente, foi avaliada aquando da sucessão em 17 milhões de francos, o equivalente a um ano e meio de rendimentos do Estado tunisino. Ver Jean Ganiage, p. 197. A fortuna de Mustapha Khaznadar era ainda maior.

[22] http://global.britannica.com/biogra

[23] Ver https://www.herodote.net/Guerre_du_… Voltarei brevemente a este assunto num artigo consagrado à dívida da América Latina. Ver também Carlos Marichal, p. 80 e ss.

[24] Jean Ganiage, p. 240.

[25] Jean Ganiage, p. 260

[26] Jean Ganiage, p. 313.

[27] Jean Ganiage, p. 319-320.

[28] STOSKOPF, Nicolas. «Alphonse Pinard et la révolution bancaire du Second Empire ». Histoire, économie et société», 1998, 17º ano, n° 2. pp. 299-317. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/hes_0752-5… (consultado em 22. 05.2016).

29. Em 1879, a Havas foi adquirida pelo barão Émile d’Erlanger e transformada em sociedade anónima com o capital social de 8,5 milhões de francos. Vrr : https://fr.wikipedia.org/wiki/Agenc

[30] Karl Marx, 1867, O Capital, livro I.

[31] Karl Marx, 1867, O Capital, livro I, capítulo 31.

[32] https://fr.wikipedia.org/wiki/Trois

[33] Carta do ministro francês Waddington ao seu embaixador em Londres Georges d’Harcourt, 21.07.1878.

[34] Hanotaux, Histoire de la France contemporaine (1871-1900), IV, pp. 388-89.

[35] Ver Jean Ganiage, p. 436-437.

[36] Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Alpho

[37] Ver Ministère de la Guerre, L’expédition militaire en Tunisie. 1881-1882, editor militar Henri-Charles Lavauzelle, Paris, 1898, p. 10 e ss. http://gallica.bnf.fr/ark :/12148/bp…

[38] Journal officiel, 12.04.1881, p. 850.

[39] Ver a sua interessante biografia: http://www2.assemblee-nationale.fr/… Note-se que este deputado também se opôs à intervenção da França no Tonquim poucos meses mais tarde.

[40] Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Exp%C… e https://fr.wikipedia.org/wiki/Histo

[41] Encontram-se vários discursos de Jules Ferry pronunciados a partir de novembro de 1881 e relatórios dos debates parlamentares relativos à intervenção na Tunísia em: https://archive.org/stream/discours

[42] Para ter uma ideia da resistência tunisina, ver a parte consagrada à intervenção militar francesa em https://fr.wikipedia.org/wiki/Conqu

[43] Ver a carta de intenções enviada pelo Governo tunisino ao FMI em 2 de maio de 2016: http://www.imf.org/External/NP/LOI/

Sobre o/a autor(a)

Eric Toussaint

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo

http://www.esquerda.net/artigo/divida-arma-que-permitiu-franca-apropriar-se-da-tunisia/44136

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