OTAN estende a guerra da Ucrânia à Síria
OTAN estende a guerra da Ucrânia à Síria
Membros do grupo terrorista denominado Maghawir al-Thawra treinam na região síria de al-Tanf, ilegalmente ocupada pelos EUA, junto à fronteira com o Iraque e a Jordânia (imagem de arquivo)
Créditos: PressTV
Por José Goulão
ABRIL ABRIL
As atividades de guerra contra a soberania síria têm potencial para virar rastilhos de uma provocação antirrussa que os belicistas da OTAN, empenhados em transformar a situação na Ucrânia numa «guerra sem fim», considerem necessária.
Segundo relato recente da revista norte-americana Newsweek, dois caças F-16 da Força Aérea dos Estados Unidos interceptaram dois aviões de combate russos SU-34 quando estes se preparavam para atacar instalações onde terroristas do ISIS ou «Estado Islâmico» fabricam bombas para alimentar a guerra na Síria. A missão antiterrorista da aviação da Rússia ficou por cumprir.
A guerra da Síria está «quase resolvida» a favor de Damasco, isto é, do governo legítimo do país, reconhece também a Newsweek, que chega a defender a retirada dos efetivos militares estadunidenses dos territórios e das bases que ocupam ilegalmente.
Pressente-se, porém, que amanhã não será a véspera do dia em que se cumprirá a inusitada mas significativa sugestão dessa revista «de referência» da rede mundial de informação corporativa. Existem indícios indisfarçáveis de uma reativação em território sírio dos grupos terroristas com franquias da al-Qaida e do ISIS, embora sob outras designações. Foram camuflados através de operações de rebranding tecnocrático produzidas em Washington e Londres para continuarem as suas missões de banditismo como braços da OTAN, organização que tenta, cada vez com maior insucesso, esconder essa «clandestinidade» da opinião pública. Tal como fez com as operações «stay behind», como a Gladio, ao longo da sua história.
O incidente entre os aviões russos e estadunidenses, um inquietante episódio de enfrentamento militar entre as duas grandes potências, não foi o primeiro, e não será certamente o último, no teatro de guerra sírio. Existem, é certo, canais próprios entre os contingentes dos dois países de modo a tentar evitar que situações desse tipo evoluam para choques diretos susceptíveis de gerar a escalada belicista pretendida por alguns lunáticos neoconservadores que gerem a administração Biden. Esses canais funcionaram recentemente, recorrendo de novo à Newsweek, quando aviões russos bombardearam acampamentos de mercenários do ISIS acolhidos e treinados na base norte-americana de al-Tanf. A guarnição dos Estados Unidos foi avisada previamente e não se registrou qualquer baixa entre os efetivos do Pentágono.
Situação propícia
A situação na Síria, porém, é de uma delicadeza extrema, embora tenha parecido estagnada durante os tempos mais recentes – uma imagem deturpada pela falta de interesse da comunicação social dominante quando percebeu que o governo de Damasco não foi derrotado.
As importantes vitórias conquistadas pelas tropas sírias durante os últimos anos, sobretudo a partir do momento em que Damasco solicitou o apoio militar da Rússia, em 2015, deslocaram decisivamente o fiel da balança de guerra para o lado da soberania síria. Muitas foram as ocasiões em que os agressores ocidentais reconheceram a derrota militar – mais uma – inclusive em Washington, mas o quadro geral resultante não ficou plenamente evidenciado. Embora o poder de Damasco se exerça na maior parte do território, a soberania síria não se estende ainda a todo o país. Mantém-se alguma fragmentação, circunstância que cumpre parcialmente um dos principais objetivos originais da agressão cometida pelos Estados Unidos e a OTAN através dos mercenários «fundamentalistas islâmicos», seus procuradores.
A situação geral tem, portanto, muitos ingredientes que, de um momento para o outro, podem reativar o conflito em proporções há muito não registradas. Além disso, segundo desenvolvimentos que se percebem no terreno, a Síria pode vir a servir como uma reserva estratégica de guerra a ser explorada pela OTAN em conformidade com o andamento do conflito na Ucrânia.
Existe pelo menos um resultado imediato da coexistência dos dois conflitos. A diminuição da atividade militar russa na Síria na sequência do envolvimento militar de Moscou na Ucrânia está sendo aproveitada pelos Estados Unidos e pela Turquia, que tentam se recuperar de algumas perdas sofridas no auge da guerra.
Ancara alimenta continuamente a interligação entre as suas tropas no terreno e os efetivos terroristas do Hayat Tahrir al-Sham (al-Qaida) na província de Idlib, um enclave sírio ocupado e governado pela OTAN através deste grupo. O Hayat Tahrir al-Sham é efetivamente um heterônimo da al-Qaeda, repaginado como «moderado» a partir do momento em que o seu chefe, Abu Mohammad al-Jolani, conhecido pelos crimes bárbaros contra civis, envergou um terno ocidental para ser entrevistado no programa «Frontline» da cadeia pública de televisão dos Estados Unidos PBS, uma emanação propagandística da CIA. Foi um happening para consumar a regeneração milagrosa de um criminoso sanguinário, testemunho inquestionável dos prodígios apenas ao alcance de uma «civilização superior» como é a ocidental.
A Turquia e os Estados Unidos continuam a aproveitar a ocupação terrorista de Idlib como celeiro de mercenários transferíveis para outras áreas de conflito. Isso aconteceu anteriormente na Líbia para impedir que as milícias do governo da região da Cirenaica concluíssem a sua ofensiva até Trípoli, onde pontifica um governo da Irmandade Muçulmana protegido por Ancara.
Nos últimos meses, Ancara e Washington injetaram um número avultado de terroristas da al-Qaeda/Tahrir al-Sham na Ucrânia, onde têm combatido em ligação operacional com as milícias nazistas de Kiev. Mercenários «fundamentalistas islâmicos» foram detectados, por exemplo, nos combates por Mariupol – e alguns deles acabaram detidos pelas tropas russas quando abandonaram a siderurgia de Azovstal.
Nem só de Idlib se deslocaram terroristas «islâmicos» para a Ucrânia. Aconteceu movimento semelhante com efetivos reciclados do ISIS que têm sido acolhidos e treinados na base norte-americana de al-Tanf e em outros redutos ocupados ilegalmente por tropas dos Estados Unidos na Síria. Também estes grupos do «Estado Islâmico» receberam uma reconversão de fachada. Agora atuam sob a designação de Magavir al-Saura, não deixando de ser o que são – terroristas do ISIS.
Como se percebe, a ocupação ilegal de áreas da Síria por tropas da OTAN pode vir a servir de reserva estratégica em interligação com o envolvimento directo da aliança na defesa do regime ucraniano de tutela nazista.
Outras atividades de guerra contra a soberania Síria prosseguem no terreno. Todas elas têm potencial para ser rastilhos de uma grande provocação antirrussa que os belicistas da OTAN, empenhados em transformar a situação na Ucrânia em mais uma «guerra sem fim», possam considerar necessária – nem que seja como fruto do desespero suscitado pela derrota de Kiev em desenvolvimento. Depois do fracasso militar no Afeganistão e dos insucessos no Iraque; tendo em conta a situação na Síria, ainda assim um grande fracasso da agressão ocidental, e perante as fragorosas derrotas no Donbass diante de efetivos russos, que representam uma percentagem menor do poder militar total de Moscou, a administração Biden e os falcões neocons agregados ao Partido Democrata necessitam de qualquer coisa grandiosa que supostamente os ajude nas eleições intercalares de novembro. A previsível perda da maioria no Congresso será terrível para uma administração Biden em estado de desgraça.
Enquanto vem ganhando terreno na região de Idlib, a Turquia regressou ao velho objetivo de ocupar uma zona tampão no Norte e Nordeste da Síria invocando, como sempre, a sua guerra contra os curdos.
Os curdos da região, porém, estão às ordens das tropas estadunidenses dentro das Forças Democráticas Sírias (FDS), na companhia de efetivos do ISIS pretensamente regenerados. O seu objetivo é travar os esforços do exército sírio para alargar territorialmente a soberania de Damasco.
No plano teórico, esta situação regional poderia acarretar um diferencial, até de índole militar, entre dois aliados dentro da OTAN, os Estados Unidos e a Turquia. Porém, a experiência nos diz que os arrufos da Turquia se dissolvem com relativa facilidade no interior da aliança – como foi o caso das inconsequentes «ameaças» turcas em relação ao avanço do processo de anexação da Suécia e da Finlândia pela organização atlantista. A OTAN convive esplendidamente com regimes autocráticos e mesmo antiliberais no seu interior. O neo-otomanismo de Erdogan acaba por ser um OTANanismo.
Acresce que na região setentrional da Síria o setor curdo não incomoda a Turquia porque foi reconvertido do «marxismo-leninismo» a uma espécie de «anarquismo ecológico» e supostamente «contemplativo» pelos seus tutores do regime de Israel, conhecido como um grande defensor do pacifismo. De modo que as Forças Democráticas Sírias sob controle estadunidense, dominadas por curdos em aliança com o ISIS, deixam a Turquia em paz e atuam exclusivamente contra as tropas soberanas sírias.
As forças estadunidenses de ocupação têm ainda outra missão: controlar todas as fontes de combustíveis fósseis da Síria para roubar petróleo de modo a sabotar a restauração da normalidade energética pelo governo de Damasco e também, agora com maior acuidade, para pô-lo a circular nos mercados internacionais. Quem sabe, talvez a União Europeia venha a consumir desse petróleo saqueado – e certamente a preços bem mais altos do que os praticados com o petróleo russo. Iniciado por Trump, este roubo tem continuado na administração Biden, no âmbito de uma prática cada vez mais comum de rapina transnacional que saqueia bilhões de reservas de ouro e monetárias de países que não se submetem ao diktat atlantista imposto por Washington. É, como se sabe, uma expressão da «ordem internacional baseada em regras».
Guerras boas e guerras más?
Ao quadro geral da instabilidade síria acresce a guerra que Israel trava contra Damasco, alegadamente para atingir os meios operacionais iranianos que atuam em aliança com o exército de Damasco na resistência à agressão ocidental.
Raro é o dia em que a Força Aérea de Israel não bombardeia a Síria, perante o silêncio da chamada «comunidade internacional» e do aparelho global de propaganda, empenhado na intoxicação das populações com a única versão oficial dos acontecimentos internacionais: a guerra contra a Ucrânia é «má»; a guerra de Israel contra a Síria, sempre que noticiada, é «boa».
Israel tem a sua agenda própria para estes ataques: mostrar quem tem o poder para controlar o Oriente Médio; sabotar a restauração do acordo internacional sobre as questões nucleares iranianas; consolidar a ocupação e a anexação ilegais dos Montes Golã sírios e manter em aberto as condições propícias à consumação de uma tão desejada agressão internacional contra o Irã. Por outro lado, a guerra de Israel contra a Síria insere-se na agressão internacional perpetrada desde 2011 no âmbito da OTAN. O regime sionista é dos mais interessados na destruição do Estado sírio e no desmantelamento territorial do país, potencialmente um dos mais poderosos da região, que se mantém solidário com os direitos nacionais do povo palestino, com a soberania do Líbano e outras frentes de resistência ao expansionismo de Israel. Recorda-se que o desmantelamento de outro dos mais poderosos Estados do Oriente Médio – o Iraque – continua a ser o objetivo central da agressão internacional contra o país, seja por ação direta, seja por procuração terrorista.
De maneira que existem atualmente na Síria circunstâncias em banho-maria e outras em agravamento a que os Estados Unidos e a OTAN poderão recorrer à medida que a derrota do nazismo ucraniano vai se consumando. Embora a possibilidade de virar o rumo dos acontecimentos a favor de Kiev não passe de uma ilusão de teor propagandístico, para animar tropas, as organizações nazistas e a conspiração midiática internacional, restam as esperanças concretas atlantistas de prolongar a guerra na Ucrânia criando o tal desejado «pântano» para as tropas russas. A situação síria pode ser útil para as tentativas de concretizar este objetivo.
Um regresso à guerra generalizada na Síria é susceptível de criar embaraços estratégicos à Rússia, pois as forças militares de Moscou serão confrontadas com duas frentes de guerra ativas, o que exige um esforço militar bastante maior a não ser que haja alguma desativação do envolvimento num dos casos, que seria certamente o do Oriente Médio. Nessa hipótese, a OTAN, em aliança com os mercenários da al-Qaida e do ISIS, «moderados» por exigências da propaganda, poderia ganhar alento na tarefa de esfrangalhar a Síria e reclamar assim, finalmente, uma gloriosa vitória. Há que ter em conta, contudo, que tanto na Síria como na Ucrânia a Rússia está usando setores bastante limitados do seu poder militar global, uma situação que poderá não se manter se as condições se alterarem radicalmente.
No horizonte estaria então, ou já está mesmo, uma interligação aterradora entre as guerras da Síria e da Ucrânia, tendo como consequência uma multiplicação exponencial dos riscos de confronto directo entre tropas da OTAN/Estados Unidos e da Rússia. Além de serem muito mais amplas as condições propícias a uma grande provocação capaz de transpor o conflito para dimensões e consequências imprevisíveis. Recorda-se que a Síria tem funcionado como um «laboratório» terrorista para ensaios de operações de falsa bandeira, concretamente através de encenações de ataques químicos para acusar o governo de Damasco – obviamente com a cumplicidade dos seus aliados russos.
Os conflitos da Ucrânia e da Síria são assim complementares nos perigos que representam, tornando no fundo as guerras de agressão e sem fim dos Estados Unidos e aliados, como as do Iraque, da Líbia, do Iêmen, da Somália e as situações na Palestina e no Saara Ocidental comparáveis na mesma dimensão e actualidade à situação ucraniana. Dizer o contrário, como corre por aí, é próprio de intelectuais oficiais do regime voluntariamente desfasados da realidade, destacando-se um, especialmente prolixo, que pratica História a la carte, tem sempre o cuidado de escrever «império americano» entre aspas e guarda extremosamente no cantinho das relíquias uma Rússia no caos, governada e saqueada por Washington através de uma marionete estilizada.
É o mesmo lapidador e fiscal da opinião única para quem os defensores da paz, palavra que ele também escreve entre aspas, encaram a guerra como se fosse uma coisa «abstrata».
Não é por isso que a paz deixa de ser a única solução para conflitos como os da Ucrânia e da Síria, embora a palavra tenha desaparecido do dicionário da opinião única.
Daí o enorme risco que corre a humanidade no caso de que, como muitas coisas o indicam, o agravamento do conflito sírio acabe por multiplicar para lá da Ucrânia os riscos de conflagração direta entre as duas maiores potências militares.
Para a OTAN e os seus aliados terroristas nazistas e «islâmicos», esta se apresenta como uma estratégia atraente para tentar diluir num conflito de vastas proporções as sucessivas derrotas militares que vêm acumulando. Um conflito obviamente concreto que só pode ser impedido por caminhos realistas e corajosos em direção a uma paz concreta. O problema é que, para o Ocidente e a sua civilização «excepcionalista», militarista, expansionista, colonialista e xenófoba, a paz tem de ser um conceito abstrato, ou mesmo já extinto.
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