Essa reforma é para quem?
Ana Pacheco*
Lígia Fernandes**
Foi aprovada, no dia 08/02, pelo Senado Federal, a Medida Provisória 746/2016, que trata da reforma do Ensino Médio.
Dentre as mudanças previstas, estão a ampliação da carga horária – sendo que em até 5 anos as escolas devem cumprir 1.400 horas letivas -, a ampliação de 4 para 10 anos no prazo para repasses de recursos federais aos estados referentes a essa mudança, a restrição do ensino de Artes e Educação Física e a especialização do curso nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional, os chamados Itinerários Formativos. Todo o currículo deverá ser composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[1], ou seja, retirando a autonomia das instâncias escolares e alterando completamente as Leis de Diretrizes Básicas da Educação. Isso tudo sem qualquer diálogo real com aqueles que serão mais afetados pelas alterações: estudantes e professores. Essa é mais uma contrarreforma aliada à demais políticas neoliberais sancionadas pelo governo golpista no último período, restringindo direitos e condições aos serviços públicos mais fundamentais.
A Medida Provisória, arquitetada apenas entre a alta cúpula das secretarias estaduais de educação e o governo federal, tem como seu pilar de sustentação um diagnóstico pouco efetivo para sanar os problemas reais da educação no país: privilegiar o ensino pautado na especialização do conhecimento. O discurso do governo se forja na suposta falta de trabalhadores aptos para o sistema produtivo de base e, dessa forma, buscaria sanar o problema do desemprego.
Porém, sabemos que este discurso é falso! Nas leis do mercado, a formação técnica e profissional não garante uma situação de emprego pleno. Aliás, a formação em massa de técnicos colocará à disposição do sistema produtivo uma gama de trabalhadores com uma formação consolidada, rebaixando o valor de sua força de trabalho. É preciso também levar em conta as novas formas de acumulação do capitalismo em crise, como o aumento da divisão do trabalho, grande rotatividade dos postos e uso de novas tecnologias: ao mesmo tempo em que se necessita de uma força de trabalho mais qualificada, ainda é indispensável que exista uma massa de trabalhadores desqualificados para ocupar vagas no setor de serviços, por exemplo, a baixos salários.
Além disso, o aumento da carga horária nas escolas não necessariamente acarretará no aumento dos índices de aprendizado, como mostram os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Há sete anos esse modelo, criado durante o mandato do governador Geraldo Alckmin, é implementado por escolas do Ensino Fundamental do Estado de São Paulo, mas não tem mostrado nenhum avanço em relação aos alunos das escolas em tempos normais.[2] Ademais, essa ampliação será acompanhada pelo aumento dos custos dentro das escolas, tal como sua manutenção e infraestrutura – luz, água, energia – e necessidades básicas e materiais dos alunos – a boa alimentação, os cadernos, os uniformes – , mas essa certamente não será acompanhada de mais repasses financeiros ou de seu maior aproveitamento, levando ao grande sucateamento do Ensino Médio, realidade já conhecida por trabalhadores e estudantes, mas que será reforçada. Isso sem falar que a maioria dos estudantes das escolas públicas trabalha no contraturno das aulas, já que os últimos anos foram de retração do poder de consumo das famílias trabalhadoras brasileiras.
Estamos diante de mais uma tentativa de tornar o ensino médio de hoje ainda mais mecanicista e vinculado ao mercado de trabalho, na medida em que a reforma oferece uma formação incompleta, pela qual o estudante se vê limitado apenas à opção da profissionalização de sua educação, tal como era o ensino no período da ditadura militar [3]. Essa medida reforça uma visão pedagógica ultrapassada, que não reconhece a importância da interdisciplinaridade das diversas áreas do conhecimento para a vida dos jovens.
Ainda sob a perspectiva do mercado de trabalho, o novo ensino médio proposto pelo governo força os jovens de menor renda a cursar o ensino técnico (dadas suas necessidades de ingressar nas áreas de subemprego com maior antecedência), enquanto os de maior renda podem escolher se especializar numa área de seu interesse. Cria-se ainda mais disparidade entre a educação dos ricos e dos pobres.
Não consta na redação do projeto da MP, porém, que as escolas devem oferecer as cinco áreas diferentes – linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional – ou seja, ficará a cargo da escola escolher o que pode ministrar ou não, sem que sejam oferecidas todas as possibilidades aos estudantes.
Existe por parte do governo a promessa de repassar mais recursos às escolas que aderirem ao novo modelo de ensino médio. Porém, como acreditar nisso se o Ministério da Educação foi o que mais teve cortes em seu orçamento nos últimos anos sob o pretexto do período de austeridade? Como crer em uma promessa dessas após a aprovação do congelamento no investimento em educação por 20 anos?
Outra questão fundamental a ser considerada é em relação às alterações que o texto coloca sobre a formação exigida dos professores, fazendo com que não seja mais necessária a licenciatura em determinada matéria para o exercício de lecionar. Este grau de profissionalização, além de proporcionar o aprofundamento na área, garante o aprendizado da didática, psicologia e pedagogia, indispensáveis para o bom aproveitamento nas salas de aula. Demonstrando, mais uma vez, o descaso com a qualidade do ensino, desvalorizando a carreira do professor atual e a formação de novos professores, ao passo que o interesse pela licenciatura sofrerá uma grande queda. A melhoria da educação não será possível se não for reconhecida a importância e as condições necessárias para o crescimento quantitativo e qualitativo de um dos agentes mais importantes nesse processo.
Todavia, uma regra é clara no capitalismo quando o assunto é a precarização dos serviços públicos, principalmente a educação: quanto pior a situação da escola pública, mais simples é expandir o ensino privado sem concorrência.
É sob essa mesma perspectiva de reformar o ensino médio já o desmontando que se abre também a possibilidade de passar a responsabilidade do gerenciamento do ensino público às Organizações Sociais (OS’s), de iniciativa privada, terceirizando os serviços da educação sob o pretexto da falta de recursos públicos para suprir as demandas das escolas, como foi feito em Goiás e Pernambuco. Esse, inclusive, foi o mesmo jogo de cena protagonizado no governo FHC sobre o ensino superior nos anos 90. Na época, justificava-se que os receituários do FMI estavam corretos em orientar a expansão do ensino privado superior no país, já que, em um momento de crise econômica e inflação, os cofres públicos deveriam diminuir seus gastos, ainda que fosse urgente a especialização de mão de obra.
Ainda que o cenário seja desfavorável para a construção de uma educação verdadeiramente pública, e que a conquista dos 10% do PIB para a educação se coloque como um objetivo cada vez mais difícil de ser conquistado, os últimos anos foram de intensas mobilizações de estudantes secundaristas, universitários, professores e demais funcionários do ensino público, na tentativa de resistir a essa série de políticas prejudiciais ao acesso à educação, permanência estudantil e condições de trabalho e carreira.
No final do mês de outubro do ano passado estimou-se a ocupação de aproximadamente 1.000 escolas secundaristas por estudantes contrários à reforma do Ensino Médio e à PEC 241. Só no Paraná as ocupações totalizaram 850 das 2.114 escolas estaduais. As manifestações também atingiram importantes institutos e reitorias das universidades do país, sendo que, dentro desses espaços ou nas ruas, sempre houve a presença da polícia militar com suas violentas ações de repressão e reintegração de posse. O que a MP não considera – tampouco o governo golpista – é que o problema concreto e maior inimigo da educação pública não é a carga horária em sala de aula, nem as diretrizes curriculares tais como estão. Mas sim a forma como a burguesia subordinada de nosso o país opera o modelo educacional de forma a servir apenas ao lucro.
Educação no capitalismo é um campo estratégico para a disputa, pois nela coexistem a funcionalidade com relação à formação do perfil técnico e cognitivo de trabalhadores e a fomentação da ideologia dominante, fechando-se qualquer possibilidade de ensino que ultrapasse as demandas do mercado de trabalho ou vise à emancipação humana.
É evidente que a educação pública precisa passar por intensas transformações em sua estrutura, de forma a se universalizar, garantir seu caráter verdadeiramente público, integrador e popular. Porém, a reforma feita pelo governo de Michel Temer é conservadora! Lutar por uma educação que esteja nas mãos dos trabalhadores, e não mais nas mãos de setores da elite, pela ampliação de investimentos e valorização da escola pública e pelo acesso universal à mesma é a tarefa urgente que cabe ao momento.
*Ana é estudante secundarista, constrói o grêmio da Escola Nossa Senhora das Graças e é da Coordenação Estadual da UJC em São Paulo.
** Lígia estuda Letras, é diretora do DCE Livre da USP e da Coordenação Nacional da UJC.
1. http://www25.senado.leg.br/
3. A Lei 5.692, de 1971, modificou as diretrizes do ensino no Brasil de forma a criar divisões das áreas do conhecimento, levando à uma educação dualista. A mesma lei foi modificada 1982, dado o fracasso da medida em termos de melhorias concretas no ensino, ingresso nas universidades e evasão escolar.