As tecelãs incendeiam a pradaria: o centenário da Revolução de Fevereiro
Por Neirlay Andrade
Resumen Latinoamericano
“Pão, pão, pão…”. Em 08 de março de 1917 (23 de fevereiro no antigo calendário juliano), as mulheres de Petrogrado clamavam por pão. Eram centenas e marchavam ao longo da avenida Nevsky, a caminho da Duma.
Eram as tecelãs da cidade e desde as primeiras horas tinham se declarado em greve. Avançaram pelo emblemático distrito fabril de Vyborg, incitando o resto dos trabalhadores e conseguiram: ao final desse histórico dia, o rio Neva era cenário de confrontos abertos de classe: os operários gritavam contra o czar e contra a guerra imperialista.
Há 100 anos eclodiu a Revolução de Fevereiro. O Dia Internacional da Mulher foi o pano de fundo deste ato heroico das trabalhadoras das fábricas têxteis de Petrogrado, que convenceram seus irmãos de classe que os de baixo já não suportavam sobreviver como antes e que os de cima – o czar e seu bando – já não podiam viver (e muito menos governar) como até então.
“Na manhã de 23 de fevereiro – relata o operário bolchevique Ilya Mitrofanovich Gordienko – escutávamos, através das janelas da fábrica, vozes femininas procedentes das ruas: Abaixo a guerra! Abaixo os preços altos! Abaixo a fome! Pão para todos os trabalhadores!”. [1]
Alguns dias antes, as autoridades de Petrogrado declararam um racionamento da distribuição do pão. Uma medida que aprofundou o já lamentável panorama de escassez no qual se encontrava a cidade. Um duro inverno deixou preso vagões com víveres nas deterioradas vias férreas. Desde o início da guerra (1914), ao menos 25% das unidades do sistema ferroviário foram perdidas.
A confrontação interimperialista também trouxe consigo o aumento sem precedentes dos preços dos produtos de primeira necessidade. De acordo com dados coletados pelo setor econômico do Soviete de deputados operários de Moscou, o aumento de preços dos alimentos cresceu, entre 1914 e 1917, em média 556%.
No caso do pão preto, o aumento foi de 330% nesse período; o queijo, 754% e a carne de porco, 770%. No entanto, nada disto superava a lenha (1110%) ou o carvão (1525%). Enquanto isso, o aumento do preço do couro para a sola dos sapatos estava próximo a 2000%.
Relata o jornalista estadunidense John Reed que, paralelamente, o rublo teve uma queda, atingindo menos que a terça parte de seu valor [2].
A escassez de combustível empurrou centenas de trabalhadores ao desemprego. A paralisação esteve na ordem do dia e as greves se multiplicaram nos principais centros industriais.
Em 18 de fevereiro, os operários da fábrica Putílov empreenderam uma greve. Ao final do mês, o movimento grevista já alcançava 200 mil pessoas, ou seja, quase a metade dos trabalhadores de Petrogrado. [3]
Uma crise nas alturas
Certamente, na Rússia o desenvolvimento do capitalismo foi tardio em relação ao restante da Europa. Já em finais do século XIX, é possível identificar claramente as características da fase imperialista. Quando estoura a Revolução de Fevereiro, 28 mil nobres controlavam 62 milhões de desiatinas [4] de terra, enquanto 10 milhões de famílias camponesas concentravam 73 milhões.
O capital bancário também estava concentrado em sete entidades financeiras em Petersburgo e tão somente três monopólios (Shell, Oil e Nobel) controlavam a indústria petroleira.
Já em 1915, 60% dos trabalhadores estavam concentrados em grandes empresas, questão crucial para o trabalho de agitação e organização. No início de 1917, dos 3,5 milhões de operários existentes, 3,3 milhões estavam nas indústrias de comunicação, construção e transporte.
Nesse convulso fevereiro, Lenin definiria a guerra imperialista como “o diretor da cena onipotente” [5]. A conflagração afundou quase 4 mil das 9750 grandes empresas do país.
“A crise revolucionária amadurecia com grande rapidez. O movimento grevista abarcou as principais zonas industriais do país. Segundo dados, que estão muito longe de serem completos, nos meses de janeiro e fevereiro de 1917, foram à greve 676.000 trabalhadores” [6]
Como se isto fosse pouco, no interior do país, os camponeses incendiavam as propriedades dos latifundiários e se apoderavam da precária produção de trigo para enfrentar a fome.
Entretanto, o czarismo pretendia negociar uma paz em separado com a Alemanha para enfrentar o fantasma da revolução que vertiginosamente ia ganhando corpo nos centros fabris.
Definitivamente, havia uma crise nas alturas. A monarquia era incapaz de conseguir deter o movimento de massas e, por sua parte, a burguesia russa conseguiu afiançar seu poder com a guerra. Não lhe convinha colocar fim ao conflito bélico, pois seus interesses estavam irrevogavelmente enlaçados aos dos capitalistas da Inglaterra, França e Estados Unidos.
“A burguesia imperialista russa decidiu, por sua vez, antecipar-se à revolução mediante uma revolta palaciana. Pensavam ser possível obrigar Nicolau II, tão odiado pelo povo, a abdicar do trono em favor de seu pequeno filho Alexei, encarregando a regência a Mikhail, irmão do czar. Assim é como a burguesia calculava continuar a guerra até a vitória final. Porém, os planos da autocracia e da burguesia fracassaram” [7]
As tecelãs foram a faísca revolucionária
Neste estado de coisas, irromperam as tecelãs de Petrogrado. Mais de 16 milhões de homens foram enviados à frente de batalha. O papel da mulher passou a ser de primeira ordem nas cidades.
No dia seguinte ao primeiro chamado à greve das trabalhadoras, as ruas foram novamente tomadas. Os cossacos foram dispostos pelas ruas principais para frustrar qualquer tentativa, porém, a audácia das operárias têxteis foi superior: cercaram os cossacos e os lembraram que eles também tinham mães, esposas e filhas. Para surpresa do regime moribundo, os cossacos não carregaram suas armas contra as tecelãs e em um clima de euforia geral, se começou a entoar: “Abaixo a guerra! Viva a unidade dos trabalhadores e dos soldados!”
A mesa estava servida para a insurreição. Em 25 de fevereiro, os bolcheviques publicam um panfleto no qual se lia: “Temos a luta pela frente, porém, nos aguarda a vitória certa! Todos sob as bandeiras vermelhas da revolução! Toda a terra dos latifundiários para o povo! Abaixo a guerra! Viva a fraternidade dos trabalhadores do mundo inteiro!” [8]
Dois dias depois, cerca de 60.000 soldados da guarnição de Petrogrado se colocaram ao lado dos trabalhadores e junto com eles tomaram as estações de trens, os escritórios dos Correios e Telégrafos e a Fortaleza de Pedro e Paulo.
As pontes sobre o rio Neva – que separavam a zona fabril do centro da cidade – estavam nas mãos do proletariado, e os ministros do czar foram detidos e confinados no Palácio de Táuride.
A primeira etapa da Revolução tinha triunfado. Os próximos passos estavam definidos: os operários e soldados deviam escolher imediatamente seus representantes para o Governo revolucionário que devia outorgar liberdades democráticas, jornada de oito horas para os trabalhadores, terra para os camponeses e paz sem anexações.
Passariam oito meses antes da vitória definitiva. Os fatos dariam razão a Lenin e aos bolcheviques: só os trabalhadores no poder poderiam sepultar a velha ordem e conjurar a contrarrevolução. Hoje recordamos com entusiasmo aquelas mulheres, as tecelãs de Petrogrado, aquelas que – como diria Alexandra Kollontai – “brandiram a tocha da revolução proletária” [9] e incendiaram a pradaria.
1. Jonathan Daly y Leonind Trofimov, Russia in War and Revolution, 1914-1922. A Documentary History. Hackett Publishing Company, 2009, pp. 36-38. Disponível em: <revolucionbolchevique.blogspot.com>.
2. John Reed, Diez días que estremecieron al mundo. Ocena Sur, 2014, pp. 296-297.
3. VV.AA, Historia de la Gran Revolución Socialista de Octubre. Editorial Progreso, 1977. Edición digital, p. 5.
4. Antiga medida de superfície equivalente a 1,09 hectares.
5. Lenin, Cartas desde lejos. Primera carta. La primera etapa de la primera revolución. Foi escrita por Lenin em 7 (20) de março de 1917. Publicada uma versão resumida nas edições de 21 e 22 de março do Pravda. Não apareceu publicada integramente até 1949.
6. El movimiento obrero en 1917. M.-L., 1926, págs. 20, citado por VV.AA, Historia de la Gran Revolución Socialista de Octubre, Editorial Progreso, 1977. Edición digital, p. 4.
7. Op. Cit, p. 5.
8. El proletariado de Petrogrado y la organización bolchevique en los años de la guerra imperialista. 1914- 1917. Compilação de materiais e documentos. 1939, p. 201
9. Alexandra Kollontai, Día Internacional de las Mujeres. Artigo publicado em Rabotnitsa, 1920.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)