As mulheres de Outubro
As mulheres desempenharam um grande papel em ambas revoluções de 1917, e em muito maior medida do que tiveram em 1905. O levante de Fevereiro foi, de fato, desencadeado por uma greve de mulheres da indústria têxtil em seu duplo papel como operárias e, em muitos casos, viúvas dos soldados da frente. Enviaram apelos aos trabalhadores metalúrgicos para que se unissem a elas e, no final do dia, mais de 50.000 operários estavam se manifestando nas ruas da capital. A eles se uniram donas de casa marchando para a Duma, exigindo pão. Era o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora (8 de março do calendário gregoriano), que a ativista bolchevique Konkordia Samoilova deu a conhecer aos russos em 1913, e que tinha sido celebrado, observado e marcado desse ano em diante. Habitualmente era um acontecimento público, porém muito pequeno em umas poucas cidades. Celebra-lo com uma greve de massas liderada por trabalhadoras não tinha precedentes. Existia envolvida uma ironia especial: os capitalistas da Rússia tinham assumido que já que as mulheres eram o grupo mais oprimido, dócil e socialmente atrasado (no sentido de que diferente das terroristas das décadas prévias, uma grande maioria era analfabeta) da sociedade russa, isso lhes converteria, segundo a lógica capitalista, nos membros mais obedientes e nada problemáticos da força de trabalho. Foi um erro de cálculo. Enquanto a Primeira Guerra Mundial continuava, continuava a necessidade de mais emprego. A porcentagem de mulheres nas fábricas se duplicou e triplicou. A indústria armamentista de Putilov também estava produzindo os operários mais militantes e organizadores bolcheviques, mulheres e homens.
Em Moscou, também, as operárias estavam se radicalizando. Uma delas, Anna Litveiko, de dezoito anos em 1917, descobriria mais tarde a questão da mulher no processo em breves memórias. Ela e duas amigas, aproximadamente de sua idade, estavam trabalhando na fábrica Elektrolampa, no cinturão industrial de Moscou. Ela recordava seu pai regressando para casa em 1915 da última barricada que restava na cidade, todo golpeado, com sua roupa rasgada e seus bolsos cheios de cartuchos. Desta vez era diferente. Muitos soldados e cossacos estavam de seu lado. Em outubro, precisava escolher. De que lado estavam? Mencheviques ou bolcheviques? Anna admirava as duas organizadoras bolcheviques que trabalhavam com ela. Em sua fábrica, os mencheviques enviavam intelectuais para dirigir-se a elas de fora, porém então me disseram que habitualmente era o contrário: os mencheviques eram os operários e os bolcheviques os intelectuais. Como poderia averiguá-lo? Um dia esperou um dos bolcheviques e perguntou: Qual a diferença entre os bolcheviques e os mencheviques? Ele respondeu:
Você vê, o czar foi derrubado, porém os burzhuis [burgueses] ficaram e se apropriam de todo o poder. Os bolcheviques são os que querem lutar contra os burzhuis até o final. Os mencheviques não são nem uma coisa nem a outra.
Anna decidiu que se era até o final, então vou iria unir-se aos bolcheviques. Suas duas amigas rapidamente seguiram seu exemplo.
Nenhum dos participantes ou dirigentes dos partidos políticos clandestinos localizados na capital tinha nem ideia de que era o primeiro dia de uma revolução, exceto as funcionárias as quais escutou Sujanov pouco depois de chegar para trabalhar naquela manhã. As mulheres saíram no dia seguinte e, desta vez, também os homens. E os partidos da esquerda foram agora despertados por completo, escrevendo, imprimindo e distribuindo panfletos muitos dos quais eram de um tom similar, exceto aqueles dos bolcheviques, que também reivindicavam paz e um final imediato para a guerra imperialista. Para aquele fim de semana, a suave brisa havia se convertido em uma tormenta. Sujanov, agora foi para as ruas tomando notas e saboreando a situação, escutou dois espectadores pouco simpáticos. O que querem?, disse um homem de aspecto sombrio. De volta, veio a resposta de seu semelhante: Querem paz, paz com os alemães e igualdade para os yids [1]. Atingiriam o alvo, pensaria o futuro historiador, expressando seu deleite ante esta brilhante formulação do programa da grande revolução.
Só existiam duas mulheres membros do Comitê Central bolchevique em 1917: Alexandra Kollontai e Elena Stasova. Varvara Yakovleva se uniu um ano mais tarde e foi ministra de Educação em 1922, convertendo-se posteriormente em ministra da Fazenda. Os mencheviques não estavam muito melhor. O contraste numérico com a organização terrorista Vontade do Povo não podia ter sido mais chamativo, porém mesmo seu sucessor, o Partido Social-Revolucionário (SR), mostrava quanto tinha mudado no novo século. A proporção de mulheres em seus órgãos diretivos também tinha registrado um declínio muito agudo, ainda que marginalmente menor em seu braço secreto, a Organização de Combate.
As razões para esta situação eram variadas. As operárias estavam sendo recrutadas em grande número nos complexos industriais. Uma comparação política é igualmente reveladora. Aqueles homens e mulheres dos velhos grupos que queriam manter suas lealdades em diferentes épocas poderiam ter ingresso nos SR. A maioria deles agora aparecia em público sem a máscara do terrorismo.
Alexandra Kollontai não foi a única mulher que desempenhou um papel importante na primeira União Soviética, mas foi, sem dúvida, uma das mais dotadas, possuía uma mente e um espírito ferozmente independentes. É em sua obra na qual podemos ver a síntese do feminismo revolucionário (socialista, não radical). Entendeu melhor que a maioria as necessidades sociais, políticas e sexuais da libertação das mulheres. Às vezes suas apreciações sobre as mulheres com diferentes origens de classe podem ser duras, levando a que essas visões não fossem compartilhadas por muitos de seus camaradas, homens e mulheres. Foi deliberadamente mal interpretada e retratada como uma defensora da libertinagem permanente; no campo, os pequenos proprietários utilizaram seu nome para alertar os camponeses pobres que se fossem adiante com o plano de coletivização agrícola, teriam que compartilhar as mulheres mais jovens de suas famílias com todos os demais homens, enquanto as mulheres maiores seriam reduzidas a sabão.
Kollontai era muito consciente da natureza absurda da maioria da propaganda e se irritou especialmente quando a acusaram de priorizar o sexo sobre o amor. Em seu breve ensaio autobiográfico Autobiografia de uma mulher sexualmente emancipada, explica que o amor sempre supôs uma ampla parte de sua vida, porém que era uma experiência passageira. Mais importante era a necessidade de entender que o amor não era o principal objetivo de nossa vida e sabermos como situar o trabalho como seu centro. Poderia ter acrescentado… como fazem os homens. Ela queria que o amor fosse harmoniosamente combinado com o trabalho, porém mais uma vez, as coisas resultaram diferentes, com os homens sempre tentando impor seu ego sobre nós para nos adaptarmos plenamente a sus propósitos. A escolha era aceitar esta posição para o resto da vida ou, ao contrário, terminar com ela. Explicava que desde que o amor tinha se convertido em grilhão, a única saída era através de uma inevitável rebelião interior… nos sentíamos escravizadas e tentávamos relaxar o vínculo amoroso. Em momento algum Kollontai disse que não existiriam contradições no caminho para a liberdade, mas ao contrário: Estávamos de novo sozinhas, infelizes, solitárias, porém livres – livres para perseguir nosso amado e querido trabalho ideal. Foi uma das primeiras declarações fundamentais dos valores feministas modernos, e um dos quais o século XXI retirou, apesar dos aleluias intermináveis honrando o matrimônio gay.
Lenin escreveu em 1918 que, desde a experiência de todos os movimentos de libertação, é possível afirmar que êxito de uma revolução pode ser medido pela extensão do envolvimento das mulheres nele. Praticamente todos os revolucionários russos, independentemente de sua facção ou partido, tinham estado sempre de acordo com isto. Como discutia no capítulo 12, de 1860 em diante as mulheres russas desempenharam um papel exemplar, muito mais avançadas que suas irmãs do resto da Europa e em todos os demais continentes.
Os debates sobre o papel da família nuclear nas cidades e no campo, e sobre a função do matrimônio, estavam mais avançados e eram mais autênticos na Rússia que em qualquer outra parte durante o final do século XIX e começo do século XX. As revoluções de 1917 aceleraram muito mais este processo, já que estes temas agora não eram abstrações. Era necessário tomar medidas concretas. Marx, Engels e Bebel insistiram em que o capitalismo estava negando os usos e necessidades tradicionais da família. Nas sociedades campesinas, a família atuava como uma unidade coletiva de produção. Todo o mundo trabalhava, ainda que as mulheres muito mais duramente. Clara Zetkin, dirigente do SPD alemão, utilizando o trabalho dos três maiores como ponnto de partida, analisou as diferenças entre uma família campesina e uma proletária. Esta última, argumentava, era uma unidade de consumo, naõ de produção. Isto foi levado mais além pelos teóricos soviéticos depois da revolução. Para Nikolai Bukharin, o desenvolvimento do capitalismo tinha semeado todas as sementes necessárias para a desintegração da família: a unidade de produção transferida para a fábrica, o trabalho assalariado tanto para as mulheres como para os homens e, é claro, a natureza peripatética da vida e do trabalho na cidade. Kollontai estava de acordo que a família estava à beira da extinção. O que era crucial para o Governo bolchevique era fazer a transição para as novas formas o menos dolorosamente como fosse possível, com o Estado fornecendo creches de alta qualidade, escolas, instalações alimentares comuns e ajudando com o trabalho doméstico. Lenin apoiava fortemente este ponto de vista. Suas censuras à família eram caracteristicamente ásperas. Denunciava a decadência, putrefação e obscenidade do matrimônio burguês com sua difícil dissolução, a necessidade de permissão do marido e servidão para a esposa, e suas desagradáveis e falsas moralidades e relações sexuais.
O inimigo era sempre o marido, que evitava o trabalho doméstico e o cuidado conjunto dos filhos. O mesquinho trabalho doméstico, se enfurecia Lenin em 1919, esmaga, estrangula, atrofia e degrada, prende a mulher à cozinha e ao berço, e desperdiça seu trabalho em uma barbaramente improdutiva, mesquinha, enervante, degradante e esmagadora tarefa penosa. Suas soluções eram as mesmas que aquelas de outros líderes revolucionários da época: cozinhas, lavanderias, oficinas de reparações e creches coletivas, etc. Porém, para Lenin, a abolição da escravidão doméstica não significava o desaparecimento das famílias ou lares individuais.
Estas visões se refletiram na arquitetura dos construtivistas. Os edifícios de apartamentos de Moisei Ginzburg, tanto grandes como pequenos, expressaram a nova época. As lavanderias e refeitórios comuns foram considerados um grande sucesso. O parque de jogos para as crianças era visível da cozinha de cada apartamento, e o tamanho do espaço podia ser modificado, movendo enormes paredes de madeira sobre rodas. A visão de Ginzburg estava, como explica em sua obra mestre Época e estilo, amplamente inspirada por seus cinco anos na Criméia, onde teve tempo, apesar da guerra civil, para visitar antigas mesquitas e outros edifícios com os quais aprendeu muito mais do que tinha aprendido nunca na academia clássica de Milão. Descrevia a arquitetura espontânea, impulsiva, do povo tártaro como correndo ao longo de um curso natural, segundo suas curvas e irregularidades, acrescentando um motivo a outro com uma espontaneidade pitoresca que oculta uma ordem criativa distinta. O edificio do Pravda, em Leningrado, construído em 1924, sobre o qual trabalhou felizmente com outros dois arquitetos, estabeleceu sua reputação como um dos melhores expoentes da nova cultura. Seu trabalho foi logo eclipsado pelos poupadores de tempo da época de Stalin, porém felizmente Ginzburg foi deixado só. Morreu comodamente na cama em 1946.
Os bolcheviques estavam extremamente orgulhosos de seus primeiros decretos, a maioria dos quais foram redigidos por Lenin. Para celebrar o primeiro aniversário da Revolução de Outubro, em 1918, o Comitê Executivo Central dos Soviets aprovou unanimemente o novo Código sobre o Matrimônio, a Família e a Tutela. Foi redigido pelo jurista radical Alexander Goijbarg, de trinta e quatro anos na época, que explicava que seu propósito era impulsionar a extinção da família tradicional. O poder proletário, escreveu, no momento em que esperanças como a sua eram bastante comuns, constrói seus códigos e todas suas leis dialeticamente, para que cada dia de sua existência mine as necessidades que existam. O objetivo era uma lei para tornar a lei supérflua. Goijbarg, um antigo menchevique, baseava suas ideias na filosofia política que subjaz em O Estado e a revolução de Lenin. Um bom número de historiadores apontou que durante o primeiro ano da revolução, parecia como se a Comuna de Paris estivesse se repetindo.
A nova lei sobre a família não tinha precedentes na História. As leis czaristas sobre a família estavam marcadas pelas necessidades da Igreja Ortodoxa e outras religiões quando era necessário. Uma comparação com as prescrições contemporâneas wahhabis e da Arábia Saudita é instrutiva:
As fábricas tinham desaparecido fazia muito tempo, porém um bloco de apartamentos de tamanho médio para famílias de classe operária ainda estava no lugar. Todas as cozinhas tinham janelas das quais os parques de jogos para crianças eram permanentemente visíveis. Os muros de madeira sobre rodas variavam a disposição segundo as necessidades. Não pude evitar comparar este Jerusalém, com seus espaços verdes, com a maioria dos brutais blocos de habitação da Grã-Bretanha do pós-guerra. A falta de imaginação na Grã-Bretanha era impactante. Épocas y estilos.
A brutalidade patriarcal era forçada pela Igreja com o mesmo vigor. As mulheres necessitavam a permissão dos homens para praticamente tudo, incluindo um passaporte. A obediência total era forçada e as mulheres não tinham direitos, exceto com relação à propriedade. As leis sobre a família da Europa ocidental, originárias do feudalismo propriamente dito, tinham instituído a propriedade conjunta, o que de forma efetiva significava a propriedade e dominação masculinas. A Igreja russa permitia direitos de propriedade separados enquanto estivessem concernentes os dotes heranças, doações e terras. Este é o caso também na Arábia Saudita. Às mulheres são negados direitos políticos e igualdade, porém podem ter propriedades; as mulheres de negócios funcionam perfeitamente bem.
Uns meses depois de outubro de 1917, um decreto abolia todas as leis czaristas sobre a família e a criminalização da sodomia. As mulheres já não eram legalmente inferiores, tinham direitos iguais aos dos homens; o matrimônio religioso era nulo e só os matrimônios civis estavam reconhecidos pela lei; o divórcio estava garantido quando o solicitasse qualquer um dos dois, e não se considerava necessário motiva-lo. Assim como a manutenção: as mesmas garantias para ambos membros da relação. As leis de propriedade, que se estendiam séculos atrás, foram abolidas, terminando com os privilégios masculinos e suprimindo o estigma da ilegitimidade. A todos os filhos era outorgado direitos iguais, independentemente do matrimônio de seus pais. Isto constituiu uma restruturação radical das leis europeias, ao desvincular as obrigações familiares dos contratos ou certificados matrimoniais. Curiosamente, as adoções privadas foram destituídas sobre a base de que o novo Estado seria um pai melhor que as famílias individuais. Dada a preponderância do campesinato, se temia que facilitasse o uso do trabalho infantil no campo. Os educadores mais utópicos argumentaram que abolir a adoção privada era um passo transicional para que o Estado se encarregasse do cuidado infantil para todos.
Os críticos do novo código denunciaram as medidas como uma capitulação para as normas burguesas. Goijbarg escreveu: Nos gritam: Registro do matrimônio, matrimônio formal… Que tipo de socialismo é este? E N. A. Roslavets, uma delegada ucraniana ao Comitê Executivo Central dos Soviets de 1918, onde foi discutido o novo código, estava lívida ante o fato de que o Estado tivesse algo a fazer sobre o matrimônio em si. Era uma decisão individual e devia ser deixada tal qual. Denunciou o código como uma sobrevivência burguesa: a interferência do Estado na questão do matrimônio, inclusive na forma de registro que o Código sugere, é completamente incompreensível não só em um sistema socialista, mas na transição, e concluía irritadamente, não posso entender por que este Código estabelece a monogamia obrigatória. Em resposta, Goijbarg alegou que ela e outros deviam entender que a principal razão para ter um código dessacralizado era para prover às pessoas que desejassem registrar um matrimônio, uma alternativa à Igreja. Se o Estado não o fizesse, muita gente, especialmente no campo, teria casamentos eclesiásticos clandestinos. Ganhou o argumento, mas após um considerável debate.
No entanto, em 1919, o Governo revolucionário lançava o Zhenotdel (o Departamento para o Trabalho entre as Mulheres Operárias e Campesinas), cujo propósito era a emancipação das mulheres. Sua direção consistia em mulheres que tinham estado ativas neste campo durante os cruciais anos pré-revolucionários – Inessa Armand, Alexandra Kollontai, Sofía Smidovich, Konkordia Samoilovna e Klavdiya Nikolaeva – e entendiam as necessidades especiais das mulheres. Esta libertação das mulheres não era um objetivo para a maioria das mulheres. As socialdemocratas, tanto Vera Zasulich como Rosa Luxemburg, o viam como um desvio em um momento no qual a humanidade em seu conjunto enfrentava gigantescas tarefas. As mulheres do Zhenotdel não viam a si mesmas como utópicas. Simplesmente pensavam que a emancipação das mulheres devia ser uma das tarefas enfrentadas na revolução. Nenhuma delas pensava que poderia conseguir rapidamente ou inclusive durante suas vidas, porém teriam que começar agora ou a questão simplesmente desapareceria num segundo plano. E era necessário empreender ações imediatas em relação à transferência das tarefas domésticas e o cuidado infantil às instituições estatais. Porém, isto para elas não significava gigantescos falanstérios, como imaginaram Fourier, Chernichevski ou Bukharin. As mulheres queriam administrações que em cada cidade fornecessem instituições locais, como creches, refeitórios e lavanderias gratuitas. Dirigindo-se a uma conferência de mulheres em setembro daquele ano, Lenin argumentou que as reivindicações e o trabalho do Zhenotdel não poderiam mostrar nenhum resultado rápido… e não produziriam nenhum efeito brilhante. Trotsky argumentava o mesmo em alguns artigos jornalísticos, citando muitos exemplos da vida da classe operária que sugeriam que a precaução era necessária, ainda que também defendendo a ideia de que a propaganda abstrata não era suficiente para transformar as relações de gênero. Devia existir algumas ações, alguns experimentos para mostrar as saídas a todas as interessadas.
Na realidade, foram, por desgraça, os velhos bolcheviques (homens e mulheres) que se mostraram utópicos. A abolição da propriedade privada não era suficiente. A vitória do conservadorismo na União Soviética após 1930 levou a um Termidor sexual e a reiteração dos tradicionais papeis femininos, inclusive sem mudar as leis, exceto para criminalizar a homossexualidade, em 1934. Em contraste polar, as ideias eficazmente desenvolvidas pelo Zhenotdel foram aplicadas após o final da guerra civil pelos arquitetos que projetaram novos blocos de habitações para trabalhadores, como explicávamos acima.
A nível nacional, as mulheres membros do Zhenotdel foram extremamente ativas em assegurar que as mulheres não fossem ignoradas quando escolhidas para os comitês militares revolucionários, os aparatos locais do partidos, os sindicatos e o departamento político do Exército Vermelho. De novo, a implicação da mulher russa nas guerras partisans e no terrorismo clandestino servia como exemplo. As mulheres camponesas de 1812 tinham despachado habitualmente os soldados franceses do Exército de Napoleão, usando gadanhas ou forcas, ou simplesmente queimando-os vivos.
Durante a guerra civil, muitas mulheres serviram como comissárias políticas e enfermeiras nos hospitais de campanha. A vida partisan era dura, porém as mulheres gostavam da igualdade da qual disfrutavam com relação aos homens, uma tradição que seria destacada mais uma vez durante a Segunda Guerra Mundial. Richard Stites descreve como as enfermeiras capturadas eram habitualmente tratadas com especial brutalidade pelos brancos. Próximo de Petrogrado, em 1919, três enfermeiras foram enforcadas com o avental de seu hospital de campanha com as insígnias do Komsomol [Juventudes Comunistas] inscritas em suas línguas. E milhares de mulheres serviram no Exército Vermelho e lutaram em cada frente e com qualquer arma, servindo como atiradoras, comandantes de comboios blindados, na artilharia. Também atuaram como espiãs. Lenin estava extremamente impressionado pelos informes de Odessa e Baku sobre como as mais educadas mulheres do Exército Vermelho enfrentaram eficazmente os soldados franceses e britânicos que combatiam junto aos brancos e argumentaram – no próprio idioma dos soldados – contra o intervencionismo estrangeiro. Ordenou a criação de uma escola especial de espionagem e desorganização. Esta foi situada em uma grande casa de Moscou, sob o comando do lendário revolucionário georgiano Kamo, cujas façanhas na clandestinidade anticzarista eram incríveis. Aqueles que passaram pela escola (muitos dos quais foram mulheres, inclusive a talentosa Larissa Reisner) formaram o Primeiro Destacamento Partisan de Operações Especiais.
Foi em outras frentes emancipacionistas nas quais as feministas bolcheviques encontraram serias resistências. Houve grandes problemas quando estabeleceram modestas sedes no Cáucaso e Ásia Central ou, para essa matéria, na Ucrânia. As mulheres locais estavam assustadas e tímidas. Os homens ameaçaram as feministas com a violência, inclusive se simplesmente ensinassem a suas esposas a ler em uma das cabines de leitura do Zhenotdel.
Após uma viagem ao Cáucaso, em 1920, Clara Zetkin informou à sede central do Zhenotdel o que as mulheres haviam dito depois de demorar semanas para convencê-las a falar:
Éramos escravas silenciadas. Tínhamos que nos esconder em nossas casas e nos rebaixarmos ante nossos maridos, que eram nossos donos.
Nossos pais nos vendiam com cerca de dez anos de idade, inclusive mais jovens. Nosso marido nos pegaria com uma vara e nos açoitaria quando lhe parecesse necessário. Se queria que nós congelássemos, nós congelávamos. Nossas filhas, uma alegria para nós e uma ajuda na casa, eram vendidas, da mesma forma que nós tínhamos sido.
O trabalho feito pelas mulheres do segundo grupo do Zhenotdel ao longo do país inquestionavelmente deu frutos. Estabeleceu as bases para impor um estrito sistema de igualdade de gênero, inclusive em regiões mais socialmente atrasadas da jovem União Soviética. Estas mulheres corajosas e seguras de si, enfrentaram frontalmente os homens sem armas e nem guardas. No coração de uma cidade muçulmana, mostraram um filme que retratava uma heroína muçulmana que se recusou a casar com um velho que a havia comprado. Em Baku, as mulheres que participavam do clube do Zhenotdel foram atacadas por homens com cachorros (não havia muita diferença entre ambos) e desfiguraram seus rostos com água fervendo. Uma mulher muçulmana de vinte anos, orgulhosa de ter se libertado, foi banhar-se de maiô. Foi cortada em pedaços por seu pai e seus irmãos porque tinha insultado sua dignidade. Ocorreram 300 assassinatos similares (delitos contrarrevolucionários, já que o Estado era afetado) ao longo de três meses só em 1929. Porém, apesar do terror patriarcal, as mulheres ganharam no final. Centenas de muçulmanas e outras mulheres dessas regiões começaram a trabalhar, sendo voluntárias como tradutoras e funcionárias nas sedes do Zhenotdel. E existem informes extremamente comoventes sobre como em cada Primeiro de Maio e Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, milhares de mulheres se despojariam voluntária e insolentemente de seus véus. Tampouco, olharam para trás. A auto-emancipação foi o modelo sugerido pelo Zhenotdel, não uma imposição estatal. E funcionou.
Um bom número de dirigentes bolcheviques se opôs ao Zhenotdel. Rikov, fortemente vinculado aos predominantemente masculinos sindicatos, exigiu que o Zhenotdel fosse dissolvido porque causava divisão. Zinoviev se opôs, inclusive, convocando o Congresso de Mulheres de 1919. Outros queriam usá-lo como forma de apartar as bolcheviques e deixar o autêntico partido aos homens, o que foi o caso de todos os modos. Elena Stasova, a secretária do partido em outubro de 1917, foi liberada de seu posto quando a capital se transferiu para Moscou. Estava chateada (ainda que seu sucessor, Jacob Sverdlov, fosse o organizador mais capacitado disponível) e rechaçou a ideia de ser encaminhada ao Zhenotdel, convertendo-se em uma das secretárias políticas do escritório de Lenin. O próprio Lenin defendeu vigorosamente o Zhenotdel contra todas as formas de reducionismo. Na que foi provavelmente sua última entrevista sobre o assunto (sua interlocutora era Clara Zetkin), respondeu irritadamente quando ela informou que muitos bons camaradas eram hostis a qualquer noção de que o partido criasse órgãos especiais para o trabalho sistemático entre as mulheres. Argumentavam que todo o mundo necessitava emancipar-se, não só as mulheres, e que Lenin havia se rendido ao oportunismo nesta questão. Zetkin escreveu:
Isto nem é novo nem serve de modo algum como prova, disse Lenin. Não se deixe desorientar. Por que em nenhuma parte, nem sequer na Rússia soviética, militam no partido tantas mulheres como homens? Por que o número de mulheres organizadas nos sindicatos é tão pequeno? Os fatos nos obrigam a refletir… É por isso que é correto nós apresentarmos reivindicações favoráveis às mulheres… Nossas reivindicações são conclusões práticas que extraímos das ardentes necessidades, da vergonhosa humilhação das mulheres na sociedade burguesa, indefesas e sem direitos… Reconhecemos estas necessidades e somos sensíveis à humilhação das mulheres, aos privilégios do homem. Por isso, odiamos, sim, odiamos e aboliremos tudo o que tortura e oprime a mulher trabalhadora, dona de casa e campesina, a esposa do pequeno comerciante, sim, e em muitos casos as mulheres das classes possuidoras.
Tariq Ali
8 de março de 2017
Fonte: http://www.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)